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77. Darikapa


Darikapa, o rei-escravo da prostituta do templo

O puro prazer jaz em cada um de nós
Mas a delusão o encobre
Se esforce o quanto quiser, por cem vidas
Para atingir virtude e entendimento espiritual,
Ainda assim, o prazer puro nunca será atingido
Sem a instrução de um guru.

No fim de uma tarde, Indrapala, rei de Pataliputra, e toda sua comitiva de caça estavam retornando da busca por um tigre que estava atacando nas redondezas. Cansados e famintos, o rei decidiu seguir a rota mais curta para o palácio, o que os levou a atravessar o mercado.

Ali ele espreitou alguns de seus súditos se curvando e prestando reverência a outra pessoa que não ele. Irritado com isto, ele seguiu em sua montaria até o centro da aglomeração, onde se deparou com o siddha Luipa. O rei imediatamente o reconheceu. Era o iogue famoso por apenas comer as entranhas de peixe normalmente atiradas pelos pescadores para os cães, ao limparem a pesca do dia.

O irritação de Indrapala se derreteu, e ele fez um cumprimento ao iogue cuja presença agraciava seu reino. “Você é um jovem bonito e de boas maneiras” disse o rei, olhando de alto a baixo para o iogue. “Porque se alimentar de vísceras de peixe? Venha a meu palácio e me permita oferecer boa comida e tudo mais que precise.”

Luipa caminhou ao redor do rei, olhando para ele de cima a baixo. “Vísceras de peixe estão muito bem para mim” disse ele. “tudo que eu preciso é me libertar da roda de nascimento e morte. Você é capaz de me dar isso?”

“Não,” disse o rei. “Mas se você permanecer conosco eu posso realizar todos os seus desejos. Posso até lhe presentear com meu reino, se é isso que você quer”, ele adicionou, testando o iogue.

“Você está me oferecendo um caminho para a imortalidade e juventude eterna? Isso eu aceitaria.” Respondeu Luipa.

“Tudo que posso oferecer a você é meu reino e a mão de minha filha em casamento”, disse o rei.

“Bleh”, disse Luipa, sacudindo a cabeça cheio de nojo. “De que isso me serviria?”

“É mesmo... de que isso me serve?” disse o rei, repentinamente tomado de repulsa por seu próprio estilo de vida. “No final das contas, usar uma coroa não é nada especial. E sustentar tanto poder tem muitas repercussões ruins. É tão pouco benefício para tanta complicação!” E nisso o rei se afastou pensativo.

Muitos dias mais tarde, o rei teve uma conferência privada com seu ministro brâmane. Indrapala confessou estar revendo sua vida, e chegado à conclusão surpreendente de que não era um homem feliz. A vida de luxo, comidas suntuosas, e roupas de qualidade não haviam lhe provido nenhum sentido de satisfação ou realização.

“Decidi abdicar em favor de meu filho, e passar o resto da vida praticando o darma”, disse o rei.

“Será uma enorme honra acompanhá-lo nesse caminho,” respondeu seu fiel ministro.

Depois que o novo rei havia sido coroado e as rédeas do governo passadas para a próxima administração, o rei e seu ministro, agora pouco melhores que os mais pobres mendigos, seguiram a caminho do campo de cremação que se sabia era frequentado por Luipa. O iogue os iniciou na mandala de Chakrasamvara. Porém, como nenhum dos dois tinha qualquer coisa para oferecer em troca da iniciação, eles concordaram em oferecer ao guru os próprios corpos, e assim se tornarem seus escravos.

Como mendigos errantes, Luipa e os dois iniciados viajaram para Orissa, onde permaneceram por algum tempo praticando sua sadhana e esmolando comida. Então seguiram sua viagem por várias cidades, enfim chegando a Jantipur, uma cidade de trezentas mil habitações.

Jantipur era famosa por seu grande templo, que abrigava setecentas dançarinas devotadas a serviço de seu deus. Luipa levou seus escravos consigo ao templo, onde buscava Darima, a madame das prostitutas do templo. Porém seu caminho foi bloqueado por trezentos guardas corpulentos que protegiam a entrada de sua propriedade.

Aos berros, Luipa disse “Tenho um escravo que talvez interesse a madame!”

“Se eu gostar do que ver, pode ser que eu fique interessada em comprar,” uma voz arrastada e entediada respondeu.

Nisso, as portas para o os aposentos das dançarinas se abriram, e dali saiu uma mulher extraordinariamente bela com um corpo espetacular. A única coisa que diminuía em algo sua perfeição era um traço de petulância nos cantos da boca.

Luipa apresentou o rei que se tornara escravo, e Darima o examinou com olho clínico. Muito satisfeita com a mercadoria que estava lhe sendo mostrada, ela ofereceu ao siddha a generosa soma de quinhentas moedas de ouro.

O iogue aceitou a oferta com duas condições: primeiro o escravo precisava ter um aposento próprio, e lhe ser sempre permitido dormir a sós; e em segundo lugar, ele devia ser liberto tão logo obtivesse de volta com seu trabalho o valor de compra. Darima concordou, e o negócio foi fechado.

O rei serviu Darima admiravelmente por doze anos. Ele lavava seus pés, massageava seu corpo, cuidava a preparação cuidadosa de seus alimentos, e atendia todas suas necessidades. Porém, ele nunca esqueceu a instrução de seu guru. Passava todos os dias o dia inteiro servindo sua madame, e todas as noites passava a noite toda meditando em serviço ao darma. Os outros servos acabaram o amando e respeitando devido as inúmeras bondades que tinha para com eles, frequentemente realizando as tarefas em seus lugares. Com o tempo, Darima fez dele o chefe da casa.

Um dia, próximo do final desse período, um rei muito rico chamado Janapa, também conhecido como Kunji, chegou ao templo com quinhentas moedas de ouro, e com a intenção de gastar tudo numa orgia de prazer. O rei-escravo agiu como intermediário para o visitante, e recebeu sete moedas para cada serviço realizado.

Seguiram-se dias e noites de devassidão. Todos os prazeres foram proporcionados, as vontades de todos os sentidos foram realizadas, até que o convidado real começou a se sentir saciado. Depois de um banquete particularmente suntuoso, Kunji passou mal e precisou tomar ar à noite no jardim. O vento da noite estava fresco e carregava um perfume tão delicioso que o rei se sentiu compelido a conhecer sua fonte; sua intenção era levar a flor cheirosa para os jardins de seu próprio palácio. Não era jasmim ou gardênia comuns que o estavam intoxicando, e ele começou a seguir o caminho da fragrância misteriosa por meio da folhagem densa até o parque do templo. Na distância ele vislumbrou um brilho fraco, e se perguntou se a fragrância vinha de lá.

Enquanto Kunci se aproximava, a luz ficou cada vez mais intensa, até que ele se deparou com uma clareira na floresta, o que fez com que o brilho à frente o deslumbrasse. Cerrando os olhos, o rei mal conseguiu reconhecer a forma do escravo de Darima, sentado num trono de joias, sendo servido por quinze garotas de beleza sobrenatural. Ele retornou para a sombra, maravilhado com o que viu.

Tão logo ele recuperou a compostura, Kunci retornou ao templo, e chamou por Darima. Ele a vendou, e pediu que seguisse com ele, pois ele tinha algo incrível para mostrar. Ela seguiu, também atraída pelo forte cheiro no ar, e pelo brilho intenso, ainda que estivesse vendada.

Ao libertar os olhos, ela engasgou de perplexidade, e caiu de joelhos perante aquele que até então havia sido seu escravo. Cheia de remorso por não ter sido capaz de perceber sua verdadeira natureza, ela circumambulou seu trono reverentemente.

“Perdoe-me”, disse ela, se prostrando perante o iogue realizado. “Sou humana, e cometi um erro terrível ao não reconhecer você como o ser realizado que você é. Eu o maltratei. Eu fui má. Por favor, do fundo do coração me perdoe e permaneça conosco como nosso sacerdote. Permita-nos o venerar por pelo menos o mesmo número de anos que você nos serviu.”

O rei-escravo então alçou aos céus, numa altura de sete palmeiras, e fitou a plateia de atendentes, dançarinas, guardas e escravos que havia se reunido diante dele. “Vocês estão perdoados”, ele disse. “Eu agradeço sua oferta, mas meu serviço é para todos os seres sencientes desta terra.”

Todos ali presente se tornaram seus alunos, e ele lhes concedeu instruções sobre a sadhana conhecida como “esvaziar a cidade”, cantando esse verso:

A riquezas fabulosas dos reis
Com seus para-sois, elefantes e tronos
Fica pálida diante de meu estado exaltado.
Eu estou sob a sombra do para-sol da liberação,
Estou montado sobre o grande veículo do mahayana,
E reino sobre o trono dos três reinos —
Tal é o deleite de Darikapa!

O mestre Darikapa teve seu nome conhecido em vários reinos, e então em vários continentes, “O Escravo da Prostituta”. Ele serviu aos seres de forma altruísta por muitos anos, e quando assumiu seu lugar, com seu próprio corpo, na terra pura das Dakinis, setecentos atendentes o acompanharam.


Traduzido por Padma Dorje em 2018, a partir de Masters of Mahamudra e Legends of the Mahasiddhas: Lives of the Tantric Masters, de Keith Dowman, Buddha's Lions: The Lives of the Eighty-Four Siddhas, de Abhayadatta, traduzido por James B. Robinson e Empowered Masters, de Ulrich Von Schroeder. Por favor envie sugestões e correções para padma.dorje@gmail.com. 18/12/23




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