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17. Kanhapa


O de Pele Negra

Assim como não é possível conduzir uma carroça sem rodas,
A prática de generosidade e conduta moral — sem um guru —
não leva ao siddhi supremo.

Assim como o espontaneamente habilidoso abutre,
com suas asas enormes voa alto nos céus,
Da mesma forma as palavras do guru, instintivamente absorvidas,
são o contentamento do iogue.

Nascido na cidade de Somaputri, Kanhapa, também conhecido como Krsnacarya, era filho de um escriba. Mostrando-se promissor desde pequeno, tomou ordenação na grande academia monástica de Somapuri, construída pelo Rei Darmapala. Foi iniciado na mandala da deidade Hevajra por seu guru, Jalandhara.

Depois de praticar sadhana por doze anos, Kanhapa teve, em meio a um terremoto, uma visão de Hevajra e séquito. Esta experiência inflou seu orgulho, e ele acreditou ter atingido o resultado final. Porém, tão logo esta vaidade se assentou, uma Dakini irada o advertiu de que a visão apenas fazia parte das práticas preliminares. Repreendido, ele continuou sua meditação.

Ainda assim, certo dia, sem resistir testar a si próprio, firmou o pé gentilmente sobre uma pedra de granito. Quando o ergueu, descobriu que havia deixado a pegada marcada na pedra. Novamente a Dakini irada retornou, e mais uma vez o mandou retornar para a prática.

Na terceira vez em que saiu do samadhi, descobriu-se flutuando no espaço, cinquenta centímetros acima do chão. Instantaneamente lá estava novamente a Dakini, o advertindo quanto ao orgulho da realização, e apontando para o assento de meditação.

Na quarta ocasião em que ele saiu do estado meditativo, se deparou com sete dosséis flutuando sobre sua cabeça, e sete damarus de crânio espontaneamente retumbando no espaço.

“Agora ninguém vai me dizer que não atingi o resultado,” disse aos discípulos. “Sigam-me a Lankapuri, às margens de Sri Lanka. Lá converteremos os bárbaros ao caminho do Buda.”

E assim ele e o séquito de três mil discípulos se colocaram em direção a cidade de Lankapuri. Ao chegarem ao estreito que separa a ilha do continente, ele decidiu exibir sua capacidade. Com os discípulos com olhos atentos à margem, ele começou a flutuar sobre a água em direção à ilha.

“Nem mesmo meu Guru é capaz de fazer isso!” falou para si mesmo. Porém, tão logo pronunciara tais palavras, caiu feito uma pedra em águas profundas. As correntes o depositaram nas margens, em meio a tossidos e engasgos. Enquanto se virava para cuspir a areia, ele se viu na presença do Guru Jalandhara, flutuando no céu imediatamente à frente.

“Algum problema?” perguntou Jalandhara, muito austero.

Encabulado, Kanhapa confessou o orgulho e as consequências dele. Jalandhara gargalhou estrondosamente, e então sentiu compaixão pelo desencaminhado. “Vá a Pataliputra, onde governa o grande benfeitor, Rei Darmapala”, recomendou, “lá chegando, procure por um aluno meu, que trabalha como tecelão. Caso você faça tudo o que ele disser, não há dúvidas de que atingirá a verdade última — algo que, sinto dizer, você ainda não captou.” Ao falar isto, desapareceu.

Repentinamente, os dosséis e damarus reapareceram nos céus, e Kanhapa percebeu que os poderes haviam sido restaurados — novamente era capaz de caminhar sobre as águas e deixar a pegada impressa nas pedras. Ele e o séquito seguiram imediatamente para Pataliputra.

Lá chegando, deixou os três mil alunos aguardando fora da cidade. Confiante de que encontraria o homem que buscava, seguiu em passos despreocupados pela rua da cidade onde os tecelões tinham suas lojas. Usando um olhar penetrante, rompeu os fios de cada tear que encontrava, até que finalmente encontrou um homem para quem o fio no tear se reatava sozinho. Com este sinal, soube que não precisava mais procurar. Prostrou-se ao homem e o circumambulou. Então implorou que lhe ensinasse a verdade última.

“Você assume o compromisso de obedecer a tudo que eu pedir?” perguntou o tecelão, com firmeza.

“Sim”, respondeu Kanhapa.

O tecelão então o levou para o campo de cremação, apontou para um cadáver fresco, e disse “Consegue comer a carne deste cadáver?”

Kanhapa se ajoelhou, sacou uma faca, e começou a cortar um pedaço de carne. “Não assim, idiota!”, disse o tecelão. “Faça assim!” — e se transformando num lobo, saltou sobre o cadáver, rasgando a carne e comendo com voracidade. Quando terminou de comer, voltou à forma humana. “Só é lícito comer carne humana na forma de um animal,” disse ao aluno atônito.

Em seguida, continuando o ensinamento, o tecelão se agachou e defecou. Separou uma das três porções de excrementos e ofereceu ao aluno. “Coma!”, ordenou.

“Mas e se alguém me vir fazendo isso?” Kanhapa protestou. “Não, não serei capaz de fazê-lo!”

Então o tecelão comeu uma das porções, deu a segunda aos deuses celestiais, e a terceira para os nagas levarem para o mundo subterrâneo.

Então retornaram à cidade, e o tecelão comprou cinco rúpias de comida e álcool. “Chame os alunos, vamos fazer um festim de ganachakra,” ele ordenou.

Kanhapa fez como lhe foi ordenado. Apenas se perguntou como o tecelão planejava alimentar a tantos, não havendo comida suficiente para sequer uma pessoa.

Quando os participantes se reuniram, o tecelão abençoou as oferendas e começou a servir a comida com uma concha. Como que por mágica, quantidades infindáveis de arroz, guloseimas e todo tipo de iguaria apareceram nas tigelas. O festim durou sete dias, e ainda assim não parecia haver fim para as oferendas.

“Não aguento comer mais nada”, disse Kanhapa, cheio de desgosto. Jogando as sobras como uma oferenda aos fantasmas famintos, chamou os alunos, e juntos foram embora.

Mas o tecelão os interceptou e cantou:

Ah, crianças miseráveis, o que vão ganhar
Indo embora daqui?
Vocês estão destruindo a si próprios,
separando a vacuidade do discernimento perfeito
da compaixão ativa da vida cotidiana!
O que vocês ganharão fugindo daqui?
Dosséis e damarus não são nada,
comparados à realização
da verdadeira natureza da realidade!

Kanhapa não quis ouvir. Seguiu em frente e viajou muito até a terra de Bhadhokora, que ficava a 700km ao leste de Somapuri. Nas cercanias da cidade ele avistou uma árvore de lichia cheia de frutas maduras. Sob ela sentava uma frágil garotinha, cantando para si mesma.

Kanhapa acenou para a garota e lhe perguntou se podia pegar algumas frutas.

Ela sacudiu a cabeça, “não pode”.

Neste ponto Kanhapa ficou furioso, “Uma pessoa da sua laia não vai me negar nada!” Gritou, e com um olhar poderoso fez os frutos da árvore despencarem.

Os frutos nem chegaram ao chão e a garota já os havia retornado à posição inicial, usando um olhar igualmente poderoso, e assim revelando sua natureza de dakini.

Porém, Kanhapa estava com raiva demais para entender o sentido da experiência. Em vez de propiciar a dakini, ele a amaldiçoou com um mantra tão poderoso que ela começou a se contorcer no chão e sangrar copiosamente por todos os orifícios.

Uma multidão de pessoas se reuniu ao redor da garota naquele estado, e logo a situação ficou feia. Eles começaram a murmurar uns para os outros “O que se espera de um budista é que ele seja bondoso. Mas esse iogue é um sanguinário!”

As palavras ressoaram fortemente em Kanhapa, e ele retornou ao bom senso. Assim, removeu a maldição, mas infelizmente era tarde demais. A garota já havia entoado uma contramaldição. Ele caiu no chão vomitando e sangrando copiosamente. Neste estado agudo de dor, que apontava morte iminente, ele chamou sua fiel companheira dakini, Bhande. A ela pediu que fosse até a montanha de Sri Parvata, no sul, buscar algumas ervas que só cresciam em suas encostas. Apenas isto o poderia curar.

Muito agitada, a dakini partiu, fazendo os seis meses de viagem em apenas sete dias. Nas escarpas cheias de neblina de um íngreme penhasco ela recolheu as plantas preciosas, e começou a viagem de retorno para Bengal. Porém, quando faltava apenas um dia de viagem para ela chegar ao local onde havia deixado o iogue naquele estado calamitoso, por acaso ela encontrou uma velha chorando aos prantos na beira da estrada. Infelizmente, Bhande não reconhecendo a sedutora que havia amaldiçoado o mestre, foi ver se podia ajudar a velha de algum modo.

“Por que está chorando, vovozinha?” perguntou a dakini.

“A morte do Senhor Kanhapa não é causa suficiente para o choro?” soluçou a velha.

Esta notícia deixou Bhande desesperada. Amarga por todos os esforços em vão, ela jogou fora o frasco medicinal. Ao seguir caminho, a cada curva ela esperava ver a fumaça da pira funerária. Mas não, descobriu o mestre ainda vivo, ainda que muito mal. Quando, com a voz fraca, ele lhe pediu o medicamento, ela só pôde chorar enquanto contava a história de como fora enganada.

Kanhapa se preparou para a morte, sabendo ter apenas sete dias para instruir os discípulos antes de deixar o corpo carmicamente amadurecido e ir para o Paraíso das Dakinis. Ele lhes ensinou a sadhana que hoje é conhecida como Vajravarahi de Cabeça Decepada.

Depois da morte do mestre, Bhande foi atrás da garota que havia jogado a maldição. Ela buscou pelos céus, pelos reinos inferiores, e no mundo dos seres humanos.

Finalmente a encontrou, escondida entre os ramos de uma árvore sambhila. Bhande fisgou a bruxa pelos pés, a atirou no chão e a amaldiçoou com um feitiço tão terrível que a dakini ficou para sempre paralisada e em estado de choque.


Traduzido por Padma Dorje em 1999, a partir de Masters of Mahamudra e Legends of the Mahasiddhas: Lives of the Tantric Masters, de Keith Dowman, Buddha's Lions: The Lives of the Eighty-Four Siddhas, de Abhayadatta, traduzido por James B. Robinson e Empowered Masters, de Ulrich Von Schroeder. Rapidamente revisado em 2022. Por favor envie sugestões e correções para padma.dorje@gmail.com. 18/12/23




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