7. Prática formal
Meditação, tem como aprender sozinho?
É difícil. O que é possível e talvez benéfico é começar mesmo assim. Mas desde postura até certos obstáculos comuns da prática são dificilmente entendidos e resolvidos sem o auxílio presencial de uma pessoa qualificada. É necessário meditar todos os dias? Isso não pode acabar se tornando uma fixação?
Sim, é necessário praticar todos os dias. Isso pode se tornar uma fixação, mas isso depende da qualidade da meditação da pessoa, portanto são imprescindíveis as instruções de um professor.
Caso a pessoa não pratique de forma consistente por alguns anos, ela não será capaz de indentificar os benefícios da prática, e não chegará a conhecer o ensinamento do Buda, muito menos o resultado final do caminho budista. Ouvi que a vida da pessoa quando ela começa a meditar piora. Isso é verdade ou é apenas mais uma lenda?
Meditação em si não, mas quando a pessoa começa a realizar muita virtude, os obstáculos, a princípio, se salientam. Então ela precisa perseverar um tantinho mais. Uma pessoa passional que pratica meditação deixa de sê-lo?
Tudo é impermanente. Uma pessoa pode se tornar muito mais passional praticando meditação, em particular se praticar compaixão, ela deve se tornar mais intensa no trato com os outros, positivamente, é claro. Já li em alguns livros sobre a importância de mantermos a atenção plena durante nossas atividades ao longo do dia como uma pratica complementar à meditação sentada. Poderia se dizer que essa é uma pratica semelhente à shamata pura, porém sem imobilidade?
Ou impura mesmo. Uma sére de objetos em sequência (escrever, alt-tab, ver outro email, ir buscar café, perguntar algo para a chefe, comer, dormir, fazer cocô... se cada objeto vira um foco, e em geral para fazer estas coisas bem, em geral precisamos de um foco, então é impura. Na medida em que treinamos flexibilidade (trocar o foco sem perturbação), vamos ganhando familiaridade com a shamata pura. Isso só serve para que percebamos que a shamata formal é essencial até mesmo para viver melhor. A meditação não implica em não pensar, mas, aprender a pensar de forma a ver as coisas como são e trazer benefício aos seres?
Existem meditações (práticas formais de cultivo de boas qualidades e eliminação de aflições) onde pensar coerentemente é o foco. São muito necessárias quando se começa a praticar. Depois meditação não tem nada a ver com o processo de pensamento, seja porque, no caso de shamata, ele atrapalha o foco, seja porque, no caso de meditações mais sofisticadas, ele pode acontecer, mas não é o foco. Reconhecer as coisas como elas são não exige pensamento, e nem mesmo trazer benefício—é possível trazer benefício com e sem pensamento. O melhor é não haver nenhuma fixação com relação ao processo de pensamento, ele normalmente é aflitivo, mas ele pode ser positivo—ou seja, ele não tem nenhum status separado, melhor ou pior, do que qualquer outro fenômeno. Uma pessoa que senta para meditar e fica a maior parte do tempo sem que surjam pensamentos, como é chamado este estado?
A mera ausência de pensamentos indica uma fixação à não conceptualidade, o que leva a um renascimento como animal. Se ela estiver fazendo shamata, com um objeto ou sem um objeto, seguindo as instruções de seu professor, a ausência de pensamentos pode ocorrer, e ser um bom sinal de prática, mas nesse caso ela tem uma ocupação mental clara, que é a prática de shamata. Mesmo assim, mesmo considerando que essa não conceptualidade ocorra durante a prática de shamata, se essa prática não estiver vinculada a um caminho espiritual, ela só vai produzir um renascimento ou como um animal, ou, no máximo, como um deus mundano da forma ou da não forma, que são estados de grande perda de tempo e ignorância. É possível meditar ouvindo música clássica ou new age?
Da mesma forma que é possível meditar com heavy metal, ou barulho de britadeira, ou barulho de crianças brincando. Mas você não deve deliberadamente colocar um som "para meditar". Quaisquer sons, cores, cheiros, etc, que surjam podem ser incluídos na meditação ou simplesmente serem deixados onde estão, sem que nós nos envolvamos com eles. Se uma das instruções ou outra, isso depende do tipo de meditação que se está fazendo.
Normalmente, para iniciantes, se prefere um lugar o mais silencioso possível. Então se há uma TV ligada, é melhor desligar antes de meditar. Com um rádio ou um som qualquer, que possa ser evitado antes da meditação, também é bom desligar. Depois, quando trata-se de um praticante avançado, mesmo no meio de um show ou de uma feira é possível praticar, e se uma TV ao redor é ligada, desligada, canais são trocados, etc, não interessa. Mas, para pessoas como nós, em geral, é bom buscar, se possível um lugar bem silencioso. Silencioso de sons agradáveis ou desagradáveis, de ambos os sons. Existem quantos tipos de meditação? Quais as mais famosas?
Milhares. Todas elas podem ser classificadas em shamata (calmo permanecer—que não é "permanecer calmo", mas ficar focado num objeto calmamente, isto é, sem agitação grosseira e sutil, e sem torpor grosseiro e sutil) e vipassana, que são as práticas de sabedoria, que analisam os diversos fenômenos (através do instrumento epistêmico, a mente calma, criada pela prática de shamata). As diversas técnicas de meditação servem para moldar a mente e não libertá-la?
Domar a mente é liberdade em muitos sentidos. Mas só depende de até onde você chama de prática ou de meditação. Com certeza a prática e a meditação não são o objetivo do budismo. Após chegar na outra margem, a pessoa não fica dentro do barco. Se a pessoa fica dentro do barco, o próprio barco perde sua utilidade. Achei que meditação era o exercício de transcender a nossa própria mente. Por que existem diferentes métodos de meditações?
Bhavana, "cultivo" em sânscrito, é a palavra comumente traduzida como "meditação". Meditação é qualquer uso sistemático da mente que caracterize um treinamento (cultivo) e produza um resultado. Assim há o livro de Descartes chamado "Meditações", no qual ele simplesmente relata coerentemente seus pensamentos sobre certos assuntos. É um uso perfeitamente válido da palavra.
No budismo são ensinados muitos cultivos—práticas, meditações. Eles visam a eliminação das emoções aflitivas e o completo desenvolvimento das qualidades espirituais, tais como generosidade e sabedoria.
A prática budista tem duas subdivisões amplas: meditação e pós-meditação, ou prática formal e prática na vida cotidiana, respectivamente. A prática de pós-meditação também pode envolver treinamentos e meditações, mas como a pessoa não estabelece uma fronteira artificial de tempo e espaço (ela não senta numa postura específica por um certo tempo em um certo lugar), isso é chamado de pós-meditação (pós-formal) ou prática na vida cotidiana. As duas práticas são essenciais, e uma não funciona sem a outra. Mesmo que uma pessoa pratique mais de 10 horas por dia formalmente, ela ainda dorme, come, e assim por diante, e nesse período ela pode e deve fazer meditação informal, prática na vida cotidiana, prática de pós-meditação.
Dentro da prática formal, ela pode fazer uma infinidade de práticas, tais como prostrações, oferendas de diversos tipos, liturgias complexas ou simples, danças, posturas e movimentos como os da hatha ioga, isto é, uma infinidade de práticas, todas para eliminar as emoções aflitivas e revelar as qualidades inatas e perfeitas da mente incondicionada. Dentro dessas práticas, há uma infinidade de práticas em que se permanece em silêncio, imóvel e com a coluna ereta. As mais comuns são as práticas de shamata, que visam aquietar a mente, de forma que ela fique desperta (luminosa), nítida (clara) e estável (sem distração). Quando a mente está nessa posição, e se sustenta nessa posição sem oscilação por algumas horas, outras práticas mais avançadas de meditação podem ser ensinadas e praticadas. Várias práticas de shamata diferentes são ensinadas de acordo com a capacidade e particularidades dos alunos: o que funciona bem para alguns, não funciona bem para outros. A prática de shamata, por si só, não produz sabedoria, portanto ela é uma prática preliminar para as práticas que visam revelar a sabedoria. Em geral a primeira prática de meditação que se faz no budismo é uma forma ou outra de shamata, junto com alguma reflexão coerente, formal, sobre um conjunto de ensinamentos. Isso é comum em grande parte das tradições budistas.
Em algumas tradições, como no zen, se fala em transcender a própria mente. Mas isso não deve cair num misticismo misterioso. Nós temos acesso a mente básica em meio à mente confusa, e todas as práticas formais e informais vão se alinhar com a revelação dessa mente básica—ou seja, ou elas vão produzir esse reconhecimento diretamente ou vão produzir condições e circunstâncias para que no futuro práticas que visem esse reconhecimento direto possam ser feitas.
O método principal no budismo é tomar refúgio no Buda, no Dharma e na Sangha—e esse refúgio final é muito importante. É com a comunidade de praticantes que obtemos feedback sobre o que estamos fazendo. Existe uma série de práticas ou entendimentos da meditação que são inúteis e que até podem causar loucura ou doença: por exemplo, instruções do tipo "vá além de sua mente" ou "destrua o seu ego" ou "não pense em nada" ou "esvazie sua mente", são interpretações errôneas, parciais, pobres, infelizes, decadentes, insidiosas, espúrias—enfim, são um pastiche de instruções piedosas, essenciais, que eventualmente, num determinado ponto da prática, poderiam, em algum caso ou outro, serem úteis. Se você diz para uma pessoa praticar isso, e ela tem uma mente determinada e fica 10 horas por dia pensando em ir além da mente, não pensar, destruir o ego ou num conceito de vazio, é absolutamente certo que a pessoa vai ficar doente da cabeça. Se ela fizer uns 15 minutos por dia, ela possivelmente vai só perder tempo. Por isso ela precisa de uma comunidade, e em especial de um professor qualificado, para que não faça uma meditação baseada em fofoca sobre práticas de meditação verdadeiras, ou simplesmente se torne presa de algum slogan ou ideologia, ou mesmo de suas próprias maquinações.
Ir além da mente pode ser convidar a mente do guru, praticar a mente do guru e se unir à mente do guru, reconhecendo a inseparatividade e a natureza da realidade. No vajrayana em particular a meditação principal e mais avançada é chamada de ioga do guru. A meditação sobre a respiração é só um estágio para apaziguar a mente para em seguida focarmos a mente em alguma outra ideia? Ou ela já é uma ideia em si?
Existem algumas práticas budistas que envolvem pensar de forma sistemática—mas a meditação shamata, que tem como uma das formas o foco na respiração—não envolve o foco numa idéia, mas numa percepção sensorial, no caso, a sensação do ar entrando e saindo do nariz.
A prática de shamata pode ser feita noutro objeto, possivelmente até mesmo um conteúdo mental (uma "idéia", desde que estejamos considerando um objeto estável, e não um fluxo)—mas em geral o foco é num objeto simples, do sentido da visão ou do tato, algumas vezes o som de um sino, ou um campo de percepção completo e "aberto" dos seis sentidos, mas essa é uma prática de shamata mais avençada.
A prática de shamata com certeza é uma prática preliminar, sendo essencial para outras práticas budistas. Mas em geral as práticas posteriores não implicam a noção de idéia, a não ser que usemos o termo numa acepção vasta de "conteúdo mental". Sim, há meditações com conteúdo mental após shamata. Já as praticas nas quais se pensa ou reflete sobre temas, são anteriores ou coadjuvantes com a prática de shamata, e não mais avançadas. Então depende do que se entende por "idéia". Para meditar direito é preciso aprender a respirar?
Você deve respirar naturalmente. Já ouvi pessoas falando que respiramos muito mal. Mas o esforço consciente para a melhora da respiração não é comum no budismo. Se ela melhora com o tempo, melhora naturalmente. Há algumas práticas de meditação em que se respira de forma bastante artificial, mas elas estão em contextos específicos e devem ser cuidadosamente aprendidas de um professor qualificado. Quando pratico meditação em casa eu preciso recitar algum texto sagrado ou coisa do tipo? Existe um tempo mínimo de meditação?
Você precisa fazer a prática de acordo com o que seu professor ensinou, inclusive tempo e se há ou não textos antes e/ou depois da prática em si, e que textos, em que língua. Tudo vai depender da instrução de seu professor.
Em geral toda prática formal tem três etapas—no início pelo menos fixamos a motivação (de fazer a prática para o beneficio temporário e último de todos os seres) e retomamos votos (pelo menos refúgio). É comum, no mínimo, recitar o voto de refúgio. Então fazemos a prática principal, e ao final dedicamos o mérito—também ajuda ter uma recitação para fazer essa dedicação. Budistas rezam?
Depende da forma de budismo—todos possuem alguma forma de recitação e alguma forma de trazer benefício aos outros com a prática formal. No budismo tibetano as liturgias contém muitos tipos de recitação: votos, oferendas, confissões, decações de mérito e assim por diante. No vajrayana o uso de mantras é o cerne da prática chamada "estado do desenvolvimento", onde nos auto-visualizamos como um Buda. Entre as atividades desse Buda, além de considerar o benefício de todos os seres, podemos considerar o benefício de um ser em particular. No caso do mantra, a reza não é tanto uma formulação de um pedido a um ser mais capaz, mas a própria expressão da atividade de fala desse ser.
Mas, de uma forma que vale para o mahayana em geral, digamos que vemos uma criança comendo sorvete, e então regozijamos com aquele prazer temporário da criança, e então lembramos de um ser que sofre—e dedicamos esse mérito a ele, com o sem uma formulação do tipo "dedico o mérito dessa ação (regozijo com o mérito alheio) ao benefício temporário e definitivo de todos os seres e em particular para a saúde e remoção de obstáculos desse ser". Segundo o mahayana, aquele ser acumula bom mérito devido a essa interdependência. Você usa muito o termo "rezar". Como são a oração dos budistas? É parecida com a de outras religiões?
Existem muitos usos diferentes da fala na prática formal budista. Externamente, uma pessoa vendo um budista ou um hindu, muçulmano ou cristão, não vai ver, fora a língua, grande diferença no que concerne à fala. No entando, muitos dos usos da fala, da recitação, dentro do budismo, são bem diferentes e possivelmente inexistentes em outras tradições. Isto porque há instruções de corpo e mente atreladas—nunca se faz uma prática só em termos da fala. A pessoa pode estar recitando um sutra—um diálogo do Buda ou de um Bodisatva com um aluno—e treinando a mente através do estabelecimento de uma interdependência auspiciosa com aquelas palavras. Ou ela pode estar fazendo o estágio do desenvolvimento do vajrayana—descrevendo a mandala enquanto a visualiza. Ela pode estar fazendo oferendas, aspirações, dedicações de mérito, confissões, votos e mais uma vasta gama de gêneros ou formas textuais—acompanhadas pelos mais diversos elementos em corpo (posturas, gestos de mão) e mente (visualizações, roteiros de meditação). Sem falar em danças e instrumentos musicais.
Quando se diz "rezar por alguém", isto pode ser um mero pedido formulado a um Buda, Bodisatva ou protetor do dharma. Mas pode também ser um mérito gerado e dedicado a um ser, grupo de seres, ou causa específica. E pode ser um meio hábil peculiar do vajrayana para a remoção de obstáculos, ou o treinamento direto a partir do resultado, que é a expressão própria da fala de um Buda. Tudo isso pode ser chamado de "rezar". Se a pessoa tem uma perspectiva mais teísta, ela pode se valer dos métodos inferiores. Se ela tiver uma perspectiva não-dual, ainda assim a fala como uma expressão da energia e compaixão de um Buda não deixa de soar. Porque que ao praticar meditação estou gerando carma positivo? E porque é tão difícil praticar?
O objetivo de fazer qualquer prática budista é atingir a iluminação, através da eliminação das emoções aflitivas e da geração das perfeições, paramitas. A iluminação não é obtida para benefício próprio, mas para benefício dos outros. Mesmo que fosse em benefício próprio, ao beneficiar a si próprio a pessoa também gera mérito.
Assim a prática formal não só é uma forma de gerar mérito como pode, se bem feita, ser a melhor forma de gerar mérito. E de fato, tudo deve se tornar prática, no dia a dia da pessoa—isto é, tudo deve se voltar para a gernação de mérito em sabedoria.
Em outras palavras, "prática" significa geração de mérito e sabedoria. Apenas a mera intenção de gerar mérito e sabedoria, já gera mérito e sabedoria em alguma medida.
As práticas de meditação ensinadas no budismo são todas esforços conscientes de revelar a natureza da realidade, o que é o benefício último para si próprio, e nunca sentamos sozinhos, e sim com todos os seres. Assim, é causa para o benefício definitivo dos outros também. Assim o mérito é incomensurável.
A dificuldade surge do nosso carma e de nossos hábitos. Por isso a prática fica progressivamente mais fácil. Em alguns anos, o obstáculo de fato se torna o prazer, e a facilidade, em praticar—a fixação nesses estados. Porque colocar uma mão sobre a outra com os polegares tocando-se ao praticar meditação? Existe um sentido energético?
Em certo sentido se pode usar a palavra "energético"—mas não é muito místico, é fácil de entender. Essa posição das mãos permite que os dedões fiquem quase se tocando. Uma instrução zen é que os dedões tem uma pressão um contra o outro como se estivessem segurando uma finíssima folha de papel. Esse é o aspecto "energético", isto é, se a pessoa durante a meditação fica tensa, ela tende a apertar os dedões um contra o outro. Se ela está com muito torpor ou distração, os dedões se abrem. Então é um "meditômetro" para ela mesma e até mesmo para o professor, principalmente no início, com o torpor e a tensão muito grosseiras com que começamos.
Porém é bom lembrar que nem todas as formas de meditação incluem esse mudra. Há vários outros mudras que podem ser usados, de acordo com a prática, e mesmo simplesmente deixar as mãos repousadas, com a palma para baixo, sobre os joelhos. Quando eu for meditar, devo ir alternando as pernas a cada sessão? Numa a direita por baixo, noutra a esquerda pro baixo?
Sim, você pode fazer isso. Você pode até alternar as pernas dentro de uma sessão, desde que se programe para isso, digamos, bem no meio da sessão. Só não pode trocar arbitrariamente, é necessário criar uma disciplina. Essa disciplina não deve ser tão apertada que se transforme em estresse e danos para o corpo, nem tão frouxa que não permita a formalidade da prática.
A metáfora algumas vezes usada para domar a mente é a de domar um cavalo. Você não põe um cavalo chucro num cercado muito estreito—caso contrário ele vai coicear e se machucar, além de destruir a cerca. Você dá uma cerca ampla, e aos poucos você vai colocando ele num cercado mais e mais estreito—e quando ele estiver domado, você nem precisa de cerca alguma. Porque às vezes perdemos a capacidade de movimentar as pernas ao praticar meditação sentados? Achei que era por impedir a circulação de sangue, mas um dia aconteceu tão rápido que não pode ser só isso...
É só isso sim, só que uma variação mínima na posição faz uma diferença imensa. O ideal é começar com períodos curtos, e depois aumentar, porque também a pessoa aprende com o corpo a sentar melhor. Algumas vezes eu sento e daí uns 10 minutos eu vejo que fiz alguma coisa errada. Daí depende um pouco da ocasião e de quanto tempo eu demoro para me dar conta—e da gravidade da questão circulatória. Algumas vezes eu admito dar uma ajustadinha—mas se mesmo assim não dá certo, daí o melhor é sofrer um pouquinho do que abandonar a meditação e ficar sobre o poder do macaco mental.
É preciso reconhecer que a nossa mente e o nosso corpo não estão acostumados no seu estado natural, e se prendem em posições que vão trazer sofrimento. É um ensinamento, de certa forma. O que devo fazer quando insetos sobem em mim durante a meditação?
Nada. Deixa eles caminharem. Ratos e baratas também. Mas se você é iniciante, deve procurar um lugar limpo e sem animais que possam vir perturbar sua prática.
Quando terminar o tempo programado de meditação, daí você pode usar o intervalo para a próxima sessão para tirar algum amigo indesejado. É comum dormir meditando?
É bastante comum cair em torpor grosseiro. No início, quando a postura da pessoa ainda não é muito boa, ela "pesca" para frente várias vezes. Depois ela pode desenvolver uma postura em que ela dorme sem cair para frente, e enfim, até mesmo de olhos abertos. Nesse caso, o torpor já está mais sutil, e só pode ser superado através das instruções de um professor. É verdade que alguns praticantes conseguem "meditar" enquanto dormem? Ou tem sonhos mais lúcidos?
Sim. Ambas as coisas. Devemos meditar no intuito de nos libertarmos de algum conceito?
Sim, a prática de shamata é essencial para a não-conceptualidade, e a não-conceptualidade é um objetivo importante, embora também se torne um obstáculo, se houver fixação nela.
A não-conceptualidade é mais usual do que pensamos—embora conscientemente logo passemos a pensar, o primeiro momento de cada experiência sensorial é não-conceitual. Também coisas como o bocejo e o espirro dão lampejos de não-conceptualidade que podem ser ampliados com a meditação. E o sono profundo, é claro, é não-conceitual também. Então ela é corriqueira, só precisa ser reconhecida e utilizada na prática—e é bom lembrar que ela não é o objetivo final da prática.
Porém, de todo modo, antes e ao mesmo tempo em que praticamos shamata, nós refletimos sobre os ensinamentos budistas. Ao descobrir do que e porque queremos nos libertar, então a prática de shamata ganha mais sentido, bem como todo o resto do caminho, e então é possível que tenhamos mais diligência e perseverança com base nessas reflexões.
Por isso é importante refletir (pensar) sobre idéias como sofrimento, impermanência, carma e a raridade da possibilidade de praticar o dharma, antes de se engajar em práticas mais avançadas. Shamata, por outro lado, pode ajudar a pessoa a voltar a mente a reflexão, portanto é uma pratica que se faz não ao mesmo tempo, no sentido de na mesma sessão de prática, mas se alterna, desde o princípio, shamata com a reflexão nos quatro pensamentos.
A instrução de shamata que a pessoa recebe, é aquela que ela aplica. Se for respiração, ela foca na sensação tátil do ar entrando e saindo das narinas. Recebi duas instruções que aplico, e em particular, eu não faço a prática com a respiração. Numa utilizo a sensação tátil do corpo imóvel, e na outra um objeto no campo visual, uma flor especialmente desenhada pelo lama. Se tudo que pode ser dito é falso, então é (quase) completamente inútil tentar "acessar" a natureza última, operar por dentro dela através de compreensão cognitiva, certo? Ou seja, melhor sempre priorizar a meditação ao estudo?
O problema é que nossa meditação também, nesse momento, não serve para isso. Nossa prática não possui esse tipo de acumem logo de cara. Portanto é preciso lidar com os nós conceituais formados pelo hábito, e assim é preciso debater e estudar, sob a supervisão de um professor e no contexto de uma sanga. Assim esse estudar e debater não vai contribuir para proliferar a conceitualidade, mas para diminuí-la. Essa é uma diferença crucial.
Em outras palavras, se você meditar errado, você vai criar hábitos que vão levá-lo para ainda mais longe do resultado. Se você estudar errado, você vai proliferar conceitualização. Assim o ponto essencial é o relacionamento com um professor qualificado que vai fazer o controle de qualidade do que quer em que você se engaje. Há pessoas que precisam de muito estudo, outras de muita prática formal. Que tipo de estudo, que tipo de prática formal? É uma farmácia vastíssima. Precisamos de alguém para nos prescrever de acordo com um diagnóstico preciso.
Segundo Alan Wallace, conceitualmente é possível chegar até o penúltimo passo no caminho. Apenas o último passo é "experencial". Evidentemente, nem todo mundo precisa chegar conceitualmente até esse penúltimo passo: há quem tenha o mérito de não precisar estudar muito. Então, se eu meditar apenas uma hora por dia, mesmo com um auxilio de um professor, estarei distante da liberação?
Muito provavelmente sim, mas sua vida vai melhorar. É difícil dizer com certeza porque a pessoa eventualmente tem méritos de vidas passadas e avança rápido até mesmo sem muita prática. Mas não é bom contar com isso.
A pessoa pode manter essa prática e fazer alguns retiros por ano. Pelo menos um retiro de uma semana, melhor um retiro de um mês, com bem mais prática. Ocasionalmente ela pode fazer um retiro de 3 meses, 6 meses, um ano, três anos ou vários anos. Mas isso vai de acordo com o aproveitamento da prática dela, e só o professor pode saber. Ou seja, se a pessoa estiver no nível de mal conseguir aproveitar os 15 minutos diários, não adianta tentar forçar um mês de 10h por dia. Da mesma forma, se a pessoa sedentária quer correr uma maratona, ela vai condicionando o físico caminhando até estar apta a correr, e aos poucos ela vai ganhando folego para corridas mais longas, até que ela pode se tornar um maratonista. Para ela se tornar um maratonista profissional, daí ela vai ter que correr várias maratonas. Um retiro é como uma maratona, a pessoa precisa estar condicionada para aproveitar.
Mas, como meditação não é ginástica, a analogia só vai até aí. O essencial é o relacionamento com o professor. Com esse relacionamento, a prática vai sempre ser adequada e sempre ser benéfica, independente do grau de realização que será atingido. E de fato a pessoa deve, desde o início, abandonar a perspectiva de realização, e trabalhar com o que está presente, da maneira que ela consegue. Isso é muito mais saudável.
Também há muitas formas de meditação, e práticas budistas que vão além da meditação. Essas instruções algumas vezes fazem a pessoa avançar muito rápido. Quanto tempo de meditação diária é recomendado para um praticante que não vive em regime monástico?
Isso depende de vários fatores, o melhor é ver com o seu professor (não é recomendado se engajar em prática formal sem um professor). 5 a 15 minutos no começo (até mesmo sem professor), não vão ser problema. Mas pelo menos uma hora por dia (aí sim, sempre com professor) é mais próximo de uma prática de manutenção.
É mais o menos a diferença entre um atleta profissional e aquela pessoa que caminha ou vai na academia para manter a forma. Uma hora por dia é basicamente higiene, manutenção. A pessoa não vai avançar muito. Se ela quer ser um atleta, daí 10, 14h por dia—mas ela não pode sair de cara nesse nível, ela vai ter que condicionar seu corpo, fala e mente para poder praticar, com contentamento e qualidade, esse tempo todo. Pode ocorrer liberação espontânea? Pode ocorrer liberação sem meditação?
Sim, isso só depende do mérito da pessoa. A iluminação se revela por dois fatores: mérito e sabedoria. Com o mérito acumulado, a sabedoria pode ser acumulada/revelada de sopetão. Na meditação, percebo que há um observador. Este observador também é ilusório? É fruto da ignorância?
Claro, ele está sendo observado, não é mesmo? Esse outro observador que observa o observador... esse é um pouco mais ignorante. Mas o ponto não é pensar nessa ignorância. Ignorância, nesse nível, é uma forma de liberdade.
Mas o que importa, vou assumir que você seja um iniciante, é como esse observador serve na sua prática de meditação. Para shamata, é ele que vai permitir a mindfulness, isto é, é ele que vai verificar se você está praticando ou não, e recolocar sua mente vez após vez sob o objeto. Então o observador é extremamente importante nesse âmbito de prática. Então pode afiar o observador aí—se ele estiver interessado na sua prática de shamata ele é bastante útil. Se ele estiver só incomodando como o usual, daí pode ignorar.
Mas sobre a natureza do observador, e que aspectos dele são aprisionamento ou liberdade, ignorância ou sabedoria, daí só com a prática de vipassana, e essa sob a orientação de um professor qualificado. Sou praticante, gostaria que você falasse um pouco sobre a prática de metabavana. Como essa prática pode pacificar as relações?
Não sei, não faço essa prática, mas com certeza ela é maravilhosa, e Sua Santidade a recomenda. Ocasionalmente eu faço tonglen. Acho que é parecido. É um treinamento em compaixão—e gerar compaixão é colocar os outros numa mandala de sabedoria—lidar com eles e reconhecê-los como professores—, onde tudo fica mais fácil. Como as pessoas podem ser nossos professores? Levando em consideração que nós estamos buscando iluminação e elas não.
Não professores do dharma, ou pelo menos não no sentido de dharma como ensinamento do Buda. Mas professores sobre nossas próprias emoções aflitivas. Sua Santidade o Dalai Lama sempre diz que os chineses que causaram sofrimento ao Tibete são professores—e o treinamento mahayana diz que precisamos encarar aqueles que nos trazem dificuldades como professores bondosos que evidenciam nossas próprias falhas. É claro que eles não podem ensinar o dharma do Buda, mas eles são inestimáveis em nos apontar nossas faltas ocultas. Então são dois tipos de professores que aqui estamos falando. Como reagir da melhor forma possível diante de uma crítica e/ou de um elogio, sabendo que ambos são vazios?
Os elogios podemos ignorar completamente—agradecendo polidamente ou o que for convencional de fazer, externamente, e internamente esquecendo completamente.
Com relação as críticas, daí temos que separar aquelas que são úteis daquelas que vem das emoções aflitivas. Em geral, na medida do nosso respeito pela pessoa, tomamos essa crítica e mudamos de acordo com o que foi dito. Se não temos respeito, podemos esquecer completamente. De toda forma, o aspecto pessoal e emocional da crítica devemos descatar, vindo de onde vier. Apenas o aspecto objetivo, muitas vezes dito "construtivo", deve ser levado em conta. Li sobre a prática de Tonglen num livro do Sogyal Rinpoche. Porém, quando tento praticá-la, fico com receio de o sofrimento realmente vir para mim. O que devo fazer?
O melhor é perguntar a um professor. O segundo melhor é abandonar o medo. O terceiro melhor é fazer uma outra prática, que esteja mais no nível da sua coragem e habilidade. A meditação me deixou frio, não exalto mais emoções boas nem ruins. Por isso , não tenho medo nem raiva, porém, também não tenho compaixão. Socialmente, as vezes, é um problema, pois tenho que expressar emoções que não tenho. Isso é normal na pratica?
É normal em meditação mal feita, mal supervisionada, falsa meditação e meditações não budistas. Ás vezes acontece no zen, quando o professor ou o aluno não são muito bons e o aluno entende as coisas errado—chama-se doença zen. No budismo tibetano é extremamente incomum esse tipo de doença—existem outros problemas que surgem, mas esse é mais comum no zen.
Mas mesmo no zen, se a pessoa procura se informar com o professor, ela vai entender que está meditando errado. Esse tipo de meditação leva aos infernos. Pode ocorrer liberação espontânea? Pode ocorrer liberação sem meditação?
Sim, isso só depende do mérito da pessoa. A iluminação se revela por dois fatores: mérito e sabedoria. Com o mérito acumulado, a sabedoria pode ser acumulada/revelada de sopetão.
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