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1.3. Budismo e ciência


Você poderia apontar o principal ponto de convergência entre budismo e ciência?

A convergência é o método experimental, ao contrário de outras religiões onde você precisa acreditar, no budismo você coloca os ensinamentos a prova através da prática, em condições controladas, esperando obter os mesmos resultados de outros pesquisadores. Essa é a semelhança.

"Não acreditem em qualquer coisa porque um sábio falou, porque se acredita em geral, porque está escrito, porque é considerado divino ou porque outra pessoa acredita. Só acreditem no que vocês mesmos julgam ser a verdade." É assim no Budismo?

Foi o que o Buda disse e está registrado no cânone em páli, mais precisamente no Sutra dos Kalamas. O cânone em páli é aceito por todas as formas de budismo.

A maioria dos cientistas aceita a Teoria do Big Bang como válida. Segundo a maioria esmagadora o Universo se encontra em expansão. Isso não vai contra a noção de um universo cíclico, apregoada pelo budismo?

O problema é a noção de que algo exista "lá fora", dentro do tempo e do espaço. Tempo e espaço só existem em função de avidia, ignorância.

As bases epistemológicas da física são embasadas em avidia. O físico desenha seus modelos e a partir dele desenha experimentos e traça conclusões. Mas os modelos que ele desenha são embasados nas suas próprias concepções limitadas. Vez que outra há uma "revolução" na física, quando se percebe que os modelos já são insuficientes. Você pode ler sobre isso no famoso livro de Kuhn, sobre a estrutura da revolução científica.

Desde Aristóteles, o que a palavra "física" significa mudou, e no século XX mesmo, já mudou bastante. Só na mecânica quântica há 5 modelos principais, contraditórios uns com os outros, que explicam e permitem cálculos razoavelmente.

O ponto principal é entender que o que os físicos estão observando é determinado pelas suas próprias condições de cognição — seus hábitos, e enfim, avidia. É por isso que ocorrem "revoluções" na física — porque ela é embasada em avidia.

Mas, se você não for capaz de entender o que significa dizer que não existe uma realidade independente do observador.

Em 10 anos de pesquisa na física a duração do universo desde o Big Bang variou 10 bilhões de anos. Isto é, as formiguinhas pesquisam no seu tempo de formiga. Basta uma descoberta nova, e todos os cálculos vão por terra. Agora mesmo, por exemplo, semana passada, descobriram que o próton é menor do que se pensava. Isso muda todos os cálculos. Além do que, não se sabe o quanto de "matéria escura" há, ou não há (e para a sua questão, isso é determinante, na questão da expansão ou não expansão).

O certo é que a física que se desenvolve durante o período de vida de um ser humano — digamos, exagerando, 100 anos de idade — não é confiável. O que a física mudou desde 1910 (já tínhamos a relatividade geral!) é absurdo, e o que vai mudar até 2110, impossível de mensurar. A ignorância é vastíssima, ainda mais operando com uma epistemologia capenga (que a maioria dos físicos não está nem um pouco disposta a discutir).

Assim, o darma não precisa se curvar perante o que são especulações. Sabe-se como fato coisas como a lua não ter luz própria. Isso é certo. O Big Bang, por mais aceito que seja, ainda é uma teoria. É especulação. Por mais próxima da realidade que uma especulação seja, 99.999999% ainda não são suficientes, é especulação, não é fato. Então, deixemos as especulações de lado, nos fixemos em entender como é que a ignorância, que é uma qualidade da mente, produz tempo e espaço, estabeleçamos bases epistemológicas corretas, nos preocupemos com o sofrimento, que nos é diretamente ligado — e então, só então, consideremos especulações ou séries de TV — porque elas estão na mesma categoria — perda de tempo.

Como o Budismo lida com a ideia de Big Bang e de um possível início para o universo?

A noção de um início para o tempo é paradoxal. O Big Bang explica porque as galáxias se afastam, mas não muito mais do que isso, e está limitado pelos limites epistêmicos de um universo observável. Sem entrar em consideração sobre como mudam as teorias sobre vastas quantidades de tempo em tempos muito curtos. Nos últimos 20 anos, o universo variou uns 5 bilhões de anos — e é nessas ferramentas epistêmicas que as pessoas confiam para falar sobre "início do universo", ou pior "início do tempo"... E umas duas semanas atrás o próton diminuiu um pouco, daí acho que eles vão ter que recalcular tudo agora.

Então, enquanto for uma teoria — e pode permanecer uma teoria virtualmente para sempre — e considerando que a perspectiva budista sobre o tempo é um pouco, hm, mais VASTA do que meros bilhões de anos....... não há problema. Se algo for comprovado, sobre o início do tempo (se é que algum dia surgir algo além de uma formalização sobre o tempo, mais no sentido de uma definição bem adequada...) daí o budismo muda. Todo mundo já concorda que, apesar do que o abidarma diz, a lua não tem luz própria. O budismo segue a evidência empírica acima da inferência.

Mas em geral, preciso confessar isso, tudo que PODE mudar no budismo, com "descobertas", não é essencial para o budismo.

O Budismo tem algum ponto de vista sobre o Princípio Antrópico, o fato das leis físicas serem amigáveis à existência de vida inteligente, o que em teoria não seria necessário?

Para o budismo as leis físicas são fruto dos modelos de investigação humanos, e portanto não existem nas coisas — o próprio mundo externo não é tido, pela maior parte das escolas budistas, como existente senão como uma projeção.

O Budismo funciona no nível subatômico? Porque lá, segundo a interpretação dominante, há uma aleatoriedade intrínseca e a causalidade não funciona muito bem.

São meras aparências de sonho, sonhadas em instrumentos de sonho. Portanto, funciona muito bem, exatamente como o resto do sonho, sem diferença. Os problemas epistemológicos da física até mesmo apontam para questões comuns às budistas. As questões dos modelos, paradigmas e assim por diante. Das seis interpretações que calculam razoavelmente bem a teoria quântica — e que são completamente diferentes — o budismo só não trabalha bem com as interpretações realistas (que também são as da física clássica em geral). As interpretações que pendem mais para o idealismo e o instrumentalismo coabitam perfeitamente com o budismo. Já vi um lama louvando a Interpretação de Copenhagen como basicamente madhyamaka. E acho que Sua Santidade o Dalai Lama, em conversa com físicos, chegou a expressar alegria semelhante.

Agora, o que não funciona na física pequena é a causalidade e determinação clássicos. É só um modelo diverso de causalidade, e não aleatoriedade, mas o trabalho com nuvens de probabilidade, o que é bem diferente de mera aleatoriedade. De toda forma, a física realista precisa ou do superdeterminismo ou da aleatoriedade, para fazer sentido. No budismo, o físico é um epifenômeno da mente, portanto as interpretações físicas do realismo são necessariamente problemáticas. Uma causalidade física realista, por exemplo, só pode explicar pseudocausas e pseudo-resultados. Esse mundo fantasmagórico tem explicações fantasmagóricas. A operação da causalidade budista não opera em nenhum dos quatro modelos aristotélicos (causa eficiente, etc.) deste mundo fantasmagórico (físico).

Um átomo de ouro, uma vez que veio a existir, não é geralmente permanente?

Tenho um pequeno conhecimento de física. Átomos são coisas compostas (embora o nome: ainda não se descobriu uma coisa não composta na física). Portanto todo e qualquer átomo, se tiver muita sorte, só tem duas chances, no longo prazo: resfriar a zero kelvin (e há muita teoria sobre o que aconteceria nesse caso: possivelmente se dissiparia em radiação gama). A outra possibilidade é ele se aproximar de uma massa vasta, como uma estrela e eventualmente se colapsar, quando essa estrela tiver seu fim. Isto é, dependendo da teoria, se o universo se expandir indefinidamente, ou se contrair eventualmente, em ambos os casos a integridade de todo e qualquer átomo é seguramente corrompida.

Além disso, há dois sentidos de "permanente" — um é que o objeto é eterno, e não se dissipa, e o outro é que o objeto não muda — temos a tendência de nos referir a nós mesmos bebês e a nós mesmos hoje como a mesma pessoa, o mesmo objeto. A explicação anterior é sobre o sentido de permanência de um objeto em termos daquela combinação peculiar de constituintes dele vir ou não a deixar de ser uma base de designação. No segundo caso, evidentemente, como um objeto cujo o interior é "uma nuvem de probabilidade", ou com objetos girando numa velocidade próxima a da luz ao redor de um núcleo razoavelmente mas não totalmente estável, é mais fácil mostrar a impermanência do átomo. Dentro dele uma coisa sequer está "num lugar" enquanto se mede a velocidade dela! (Segundo pelo menos uma das seis interpretações da mecânica quântica que calculam razoavelmente bem as coisas.)

E, como curiosidade, o exemplo deveria ser com o átomo de chumbo, que é ligeiramente mais estável do que o átomo de ouro. (Em termos e sua integridade interna, não de sua facilidade de combinação química).

A Matemática tem alguma importância no Budismo?

As listas são um método mnemônico comum. Os números particularmente grandes são de interesse para certos ensinamentos. Já aritmética, álgebra, geometria, etc. não parecem ter relevância alguma, bem como conceitos matemáticos ou filosofia da matemática.

Como a teoria biológica da evolução das espécies é encarada no Budismo? Quando ainda não existiam (supostamente) espécies inteligentes, já existia darma?

Não. Mesmo com espécies inteligentes não existiu darma por muito tempo.

O budismo não tem problema com a evolução das espécies pelo menos se não se coloca como uma teleologia por si só. Isto é, do ponto de vista estrito evolucionista, um estuprador que impregna a vítima é mais bem sucedido do que um monge como o Dalai Lama, que não deixará prole. Se conclusões morais são traçadas a partir do evolucionismo, aí há um problema. Como uma mera percepção de fenômenos que se repetem num padrão, a partir do qual não são traçadas ideologias, não há problema algum com a evolução das espécies.

O Budismo tem alguma teoria sobre a origem da vida?

Não que eu saiba, embora eu mesmo já tenha tentado vincular os doze elos aos conhecimentos biológicos atuais. Mas nunca vi ninguém fazer isso — basicamente porque não parece fazer diferença para a prática da pessoa, e o budismo não está aí para explicar as coisas.

Uma vez que existem mesmo deuses, eles podem ter intervindo no processo de evolução das espécies que a ciência contemporânea propõe ter acontecido?

Nunca ouvi nada a respeito. Mas, caso sim, provavelmente da mesma forma que os humanos intervém desde milênios atrás — reprodução seletiva. Ou, de forma não deliberada, como no surgimento dos cães, que se docilizaram através de cruzas entre dóceis que ficavam próximos dos humanos.

Com certeza não da forma que certos tirtikas (não budistas) propõem, onde uma castanheira pode surgir de uma semente de amoreira, porque há um surgimento mágico. (Um tópico de debate comum na madhyamaka, que nega esse tipo de surgimento.)

Os deuses estão dentro do sonho, que surge por interdependência, portanto eles não reconhecem que é um sonho, e estão também sujeitos a interdependência. Dessa forma, eles não podem agir magicamente — quer dizer, com certeza pode soar mágico para nós, mas não pode operar além da interdependência.

O que um budista pensa do ateísmo materialista militante de Richard Dawkins, Christopher Hitchens, Sam Harris e similares?

Eu pessoalmente acho que em geral as posturas são bastante infantis, e claro, atacam um alvo que se estrutura principalmente nos EUA, alguns tipos de fundamentalismo cristão. Quanto a religiosidade em geral, as visões são bastante limitadas, particularmente em Hitchens (preciso lembrar de rezar pelo seu câncer!) e Dawkins. O End of Faith, por outro lado, é leitura recomendada — ou mesmo mandatória, para quem quer se tornar aluno — por Dzongsar Jamyang Khyentse Rinpoche.

O que falta em Dawkins (Hitchens é uma espécie de publicitário) é uma visão mais crítica da ciência — verdadeiramente crítica. Muitas dificuldades epistêmicas, muitas das metafísicas subjacentes como premissas ocultas da ciência são, de fato, religiosas. Por um lado então, a ciência como a crença predominante entre os formadores de opinião, se torna um tipo mais perigoso de religião — uma que oculta suas crenças ou pelo menos seus pontos cegos, seus pontos incomprovados e quiçá incomprováveis. Hoje mesmo li num jornal brasileiro um doutor matemático qualquer, por exemplo, dizer que ao atravessar a rua efetuamos muitos cálculos inconscientemente. Isso é pitagorismo disfarçado de ciência — não há evidência de que isso aconteça, por mais que ele acredite assim. E, da mesma forma, muitas das coisas que os cientistas dizem são oraculares — quantas pessoas acreditam que o Big Bang explique algo mais do que a movimentação atual dos corpos? A não localidade de leis físicas, por exemplo, não é algo comprovado, mas todos nós, inclusive eu, só conseguimos pensar em leis físicas que funcionam uniformemente — ou pelo menos variam uniformemente — de acordo com o espaço e tempo. Leis descontínuas, leis como leis dos estados norte-americanos — para usar uma metáfora — são inimagináveis, e, com certeza, para um físico, é indesejável pensar nesses termos. Por enquanto, quando o espaço se curva, nós adequamos essa curvatura às leis — isto é, fazemos emendas. Mas quando a física tiver uma nova revolução, nós vamos ver um conceito central como esse (não necessariamente esse) ser quebrado, e então vão mudar a maioria dos modelos em várias áreas da física. O realismo ou instrumentalismo, dependendo da ciência, nunca são desafiados — "isso é coisa de filósofo" era o que eu ouvia na física — se os cálculos fecham, ou é porque é assim ou é porque é suficiente. Mas aí não tem explicação efetiva nenhuma, e de fato, para quem conhece, já se sabe que o papel da ciência é cada vez menos "explicar". Enquanto não é falsificado, é aceito — é assim que alguns teóricos dizem que funciona a ciência. Mas em geral esse "aceito" é popularmente considerado muito mais do que isso, e é por isso que as pessoas tomam a ciência como tomam a religião, por seus hábitos.

A maioria das críticas contra a religiosidade o budismo até pode partilhar — embora, por compaixão, muito do budismo pseudoteísta seja adequado de ser ensinado, para pessoas que não tenham capacidade de praticar algo melhor. Agora, a epistemologia budista, e o jeito que o budismo trata doutrinas filosóficas como o idealismo e o realismo, em debate, pode ajudar a filosofia da ciência, eventualmente. Não que isso seja relevante para o budismo mais do que uma boa publicidade momentânea com o que parece ser mais respeitado na contemporaneidade.

Quando eventualmente se diz que a Lua tem luz própria, isso não pode ser algo espiritual e não material?

Uma metáfora? O abidarma é uma categoria de textos que lida com o sentido direto. A interpretação dos textos budistas segue algumas escolas, mas nenhuma delas diria que o que o abidarma está dizendo é metafórico. Sua Santidade o Dalai Lama disse que o abidarma é retificável. Quando a categoria sutra, com certeza ali seria mais difícil admitir um erro — mas, ainda assim, segundo o próprio ensinamento do Buda, se há evidência empírica, a evidência vale mais do que o suporte textual. Por sorte há poucas afirmações de verificação empírica, pelo menos como a entendemos hoje, na categoria sutra.

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