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1.1. Budismo e questões contemporâneas


Como valorizar o espiritual em uma sociedade que preza cada vez mais o material? Ir contra a maré não geraria isolamento?

A dicotomia material/espiritual não é natural do budismo. O Buda lidou com um sofrimento que é bem fácil de compreender: a insatisfatoriedade de todas as coisas. Em outras palavras, a dicotomia ajuda no que chamamos de "materialismo espiritual", que é utilizar de ideias espirituais no mesmo estilo materialista de sempre.

Um dos antídotos para isto é viver sem essa dicotomia, mas prestar atenção na insatisfatoriedade, porque até mesmo coisas aparentemente espirituais são profundamente insatisfatórias.

Dessa forma as prosperidades mundana (riqueza, poder, fama, longevidade e saúde) e espiritual (sabedoria de reconhecer a realidade como ela é) não são objetivos excludentes. O que a pessoa precisa trabalhar são os hábitos arraigados, as ideias errôneas (como buscar satisfação onde não vai haver satisfação) que impedem a realização da prosperidade (de ambos os tipos).

Em outras palavras, uma mente de contentamento mundano e espiritual só é possível no contexto da prática que evita as aflições mentais e promove as qualidades incomensuráveis e paramitas.

O isolamento não é verdadeiramente sequer possível. Uma pessoa pode criar uma solidão artificial para enfatizar certo treinamento da mente, mas ela nunca vai estar completamente isolada dos seres — afinal ela respira e come, pelo menos. Então se ela tem uma verdadeira mente de renúncia, ela renuncia às limitações da mente, e considera com proximidade e amor todos os seres-mães, em particular os que tomam contato direto com ela, mas até mesmo a quem lembra dela.

Por outro lado, qualquer pessoa que já foi um consumidor — todos nós nesse planeta — conhece a experiência da insatisfatoriedade. Consumir portanto nos une num frenesi de minutos de felicidade com um grande desapontamento, e talvez até culpa pela condição do planeta. Dessa forma, nem a pessoa menos espiritual poderá se sentir isolada numa perspectiva material, e portanto é possível a comunicação.

O que você acha das novas tecnologias e inovações científicas na busca pelo estado de buda? Ajudam, atrapalham ou o caminho segue o mesmo?

Em geral atrapalham, porque perde-se mais tempo com o que não é essencial.

Agora, nada impede que sejam integradas, se o praticante tiver capacidade para tanto.

Muito do sofrimento do mundo entre os humanos é causado pela falta ou pela má distribuição dos recursos. Pessoas que supostamente têm o poder de ver o futuro não poderiam mitigar muito isso sem prejudicar ninguém?

E elas o fazem. Ainda assim, não parece ser o suficiente.

Segundo o budismo, a causa de nosso sofrimento é nossa responsabilidade. O que os outros podem fazer por nós é extremamente limitado. Mesmo um Buda. Se um Buda fosse onipotente, não haveria sofrimento no mundo. Mas o Buda não tem capacidade de transformar as ações que já cometemos, e que nos levaram a vivenciar miséria. Tudo que ele pode fazer é ensinar sobre generosidade — a verdadeira causa da prosperidade — e se tivermos mérito, vamos ouvir.

Se não tivermos mérito, vamos acreditar em noções como "recursos", "distribuição" e assim por diante. Isto é, vamos estar reificando o sonho.

Qual a posição do Budismo sobre a questão bioética de produzir artificialmente novas espécies?

Pode haver carma positivo, carma negativo e carma misto, ou neutro. Isso varia de acordo com as intenções e meios daqueles que se engajam em tais atividades, como em qualquer outra. As únicas ações inerentemente negativas são aquelas desvirtudes de mente indistinguíveis dos próprios venenos/aflições mentais — porque são irredutíveis: desejo, aversão e ignorância.

O que o budismo pensa da ecologia?

Em geral os mestres budistas contemporâneos são extremamente voltados para a ecologia e redução de impacto e consumo consciente.

Um dos motivos pelos quais se toma votos monásticos é diminuir todo tipo de impacto — interpessoal, no ambiente, em si mesmo.

No Budismo o homem é considerado superior à mulher?

No hinayana, pelo Buda ter dado seu exemplo como homem, houve certa misoginia. Hoje em dia ninguém se diz "sou um praticante do hinayana".

Para o mahayana, o Buda surgiu como homem nessa era pelo contexto cultural onde surgiu, como uma manifestação que precisa estar vinculada as expectativas dos seres a serem treinados. Mas há uma infinidade de grandes praticantes mulheres, bodisatvas mulheres e Budas mulheres, considerados no mahayana.

No vajrayana, que se foca em sabedoria, a mulher é claramente superior. Um dos 14 samayas básicos do vajrayana é nunca considerar mal uma mulher, porque ela é exatamente a sabedoria. Nos casais em união, o masculino representa compaixão e meios hábeis, e o feminino, sabedoria. Evidentemente, para as mulheres que praticam vajrayana, o voto serve com relação aos homens - -mas a relação não é simplesmente simétrica. Padmasambava claramente disse que, pelo vajrayana, a mulher é capaz de atingir a iluminação mais rapidamente, e teve uma mulher tibetana como principal aluna, Yeshe Tsogyal.

A maioria dos meus próprios professores é mulher.

Há algum motivo para haver tão poucas mestres mulheres, se compararmos com a quantidade de homens? Seria apenas cultural? Isso me chama atenção, pois, em geral, nas sangas há mais mulheres praticando do que homens.

No Brasil temos a principal figura no Zen, no Vajrayana e no C'han chinês — as três são mulheres. No theravada e na terra pura, ainda não.

É meramente cultural e circunstancial.

Ouvi que quando o Buda foi convencido a permitir o monasticismo feminino ele disse que por causa disso a "verdadeira lei" permaneceria firme apenas 500 anos em vez de um milhar. É verdade isso?

500 anos a menos (acho que a duração total é discutível: 2.500, 5.000 e 10.000 anos são números mais comuns), e seria o darma (que não é "a verdadeira lei" — esta terminologia teria implicações teístas e dogmáticas que são um desfavor para o ensinamento do Buda).

Mas isto é simples explicar: não é culpa do Buda o machismo da sociedade, então se o machismo cria obstáculos para a sanga feminina, e que dificultam o darma, isso é devido a essas condições, não ao Buda. É preciso entender que o Buda não criou as coisas nem tem poder sobre as circunstâncias do mundo. Em todo caso, o Buda criou, apesar disso, a sanga feminina (de monjas).

O budismo tem algo a dizer sobre a preocupação das pessoas de hoje com os problemas emocionais, de relacionamentos amorosos etc.?

Como muitas pessoas perguntam, muitos professores falam sobre isso. O budismo, quando bem segue o exemplo do Buda, apenas reage ao sofrimento dos seres-mães da forma que ele surge.

Os problemas de todo tipo, não só de relacionamentos, parecem ser mais intensos nos dias de hoje. As aflições mentais são descritas pelos mestres budistas como estando bastante descontroladas nestes tempos.

É possível que o budismo se torne muito popular no acidente em pouco tempo? Isso é necessariamente benéfico?

É possível, muitas coisas são possíveis. Mas acho que o budismo já foi mais popular uns 10 anos atrás. Não é necessariamente benéfico, mas é provavelmente benéfico.

O budismo ou algum mestre famoso já se manifestou a favor de algum movimento político? Por exemplo, dizendo que o socialismo causa menos sofrimento que o capitalismo, ou algo assim?

O Dalai Lama se diz socialista. E todos os professores budistas que eu conheço atacam o consumismo. Porém a prática budista é muito mais efetiva do que ideologias, em trazer benefício duradouro aos seres-mães, então eles se focam nisso.

Como participar de competições, mas sem permitir que aflições mentais nos controlem? Quando competimos, queremos ser superiores aos outros, não é?

Não necessariamente. Algumas vezes participamos de competições da mesma forma que um avô joga damas com uma criança: ele não se preocupa com ganhar ou perder, mas com tornar o jogo interessante para o oponente.

Quando não é assim, quando a competição se coloca como uma forma de estruturação social — como é comum hoje em nossa sociedade — podemos simplesmente ser cordiais, ter espírito esportivo, e nos dedicarmos a ganhar, sem guardar qualquer tipo de má vontade para com os oponentes. Isso, na verdade, nos ajuda a focar a mente e jogar melhor. Aprender a perder é também importante. Isso vale para um concurso público, por exemplo — em todos os âmbitos onde há competitividade e estudo, de forma geral, especialmente se a competição é com um grupo vasto e diversificado, temos algo a ganhar ao nos aliar a competidores mais próximos. Estudar juntos, por exemplo. Ao guardarmos uma mente o mais livre de competitividade internamente, mais livres estamos para exercer nossas qualidades da forma mais vasta possível, e dessa forma nossas chances aumentam. Podemos competir sem sustentar uma mente competitiva: isto é o melhor em todos os casos. Todos os treinamentos da mente vão ajudar a pessoa a ter mais liberdade perante nossos hábitos, inclusive a competição.

Algumas vezes começamos a competir mesmo quando não há uma competição ocorrendo.

Por outro lado, seria também interessante que nossa sociedade não incentivasse a competição exageradamente. Alguma competição aparentemente aumenta a eficiência das buscas humanas mais ordinárias, porém eficiência também não é um valor por si só. Como nossa cultura enfatiza demais a competição, pode ser adequado diminuir um tanto o valor da competição de forma mais geral, para que retornemos a um nível de competitividade mais equilibrado.

O budismo é a favor da separação da igreja (religião institucionalizada) e do estado? Caso sim, quão universal é essa tendência no Budismo atualmente?

Acho que não são todas as formas de budismo que seguem nessa direção, mas em particular aquelas que querem dialogar com o mundo moderno e continuar existindo. A relação da sanga com o estado começou separada, e não tem motivo nenhum para ser melhor ou pior qualquer das circunstâncias. Existe perigo de distorção das duas formas, mas o período atual no mundo determina que existe mais possibilidade de liberdade e de prática religiosa efetiva, mesmo budista, num estado laico. Quando a religião se envolve no estado, é uma perda principalmente para a religião, principalmente para os religiosos, que tem que se ocupar de miudezas de curto impacto espaço temporal, e não da prática espiritual que perpassa milênios, dezenas de governos e várias formas de governo — que dizer das pequenas picuinhas de um estado democrático. Com a mente na vastidão e na profundidade, a política é como astrologia ou fofoca. É completamente abismal considerar mestres que coadunam bem as duas coisas, como Sua Santidade o Dalai Lama.

Do ponto de vista do Budismo, o comércio de drogas deveria ser proibido ou permitido pelo Estado?

Nunca vi nenhuma autoridade budista falar sobre o assunto. No meu ponto de vista a transição de uma situação para a outra é causadora de disrupção social. Se não fosse sido proibido em primeiro lugar, talvez fosse mais benéfico — olhando em retrospectiva — não proibir. As corporações hoje já tem muito poder político, tanto as legais quanto as ilegais — legalizar só facilitaria o lobby droguista. Mas essa não é a opinião "budista", é só minha opinião. Em geral, a não ser num estado budista, o budismo não tem que se meter nos assuntos de estado. Alguns estados budistas hoje (Butão, por exemplo) lutam pela separação de igreja e estado. Essa é a instrução dos lamas aos governantes, fazer essa separação.

Que ação o Budismo pode sugerir em relação às culturas onde se pratica a mutilação genital feminina e outras violências que aleijam e mutilam pessoas?

Os ensinamentos budistas são claros no que o relativismo cultural não é nem próximo da verdade nem da compaixão. Portanto é evidente que culturas inteiras podem estar erradas, não em tudo, mas com certeza em muitos de seus princípios. O budismo só é a favor da preservação de elementos culturais que sejam benéficos ou neutros, e esse benefício e neutralidade são objetivos e não dependem de cultura para cultura. Ao esclarecer como o benefício é objetivo e o relativismo moral pernicioso, as tradições religiosas benéficas avançam no benefício geral dos seres-mães.

O que o Budismo diz sobre tradições culturais aparentemente cruéis, como as touradas espanholas?

Qualquer um que participe ou meramente regozije com práticas cruéis, sofrerá no futuro. Portanto é um objeto de compaixão.

O budismo não é culturalmente relativista — frequentemente culturas inteiras tem aspectos seus que são profundamente equivocados e levarão a sofrimento profundo a muitos no futuro.

Como o Budismo encarava a escravidão quando ela existia?

A única noção de escravidão mencionada nos textos budistas é a de alguém que não tem liberdade para praticar o darma porque está sob ordens de outro — como a maioria das pessoas que trabalha, hoje em dia. Embora seja possível praticar algum darma, no nosso "tempo livre", não somos verdadeiramente livres se temos obrigações e agendas a cumprir. É por isso que o ideal do iogue, que vive de restos e mora em cavernas ermas, sem dever obrigações a ninguém, foi exaltado como o melhor modo de prática. Após o resultado ser obtido, nenhum âmbito é evitado. Para uma pessoa que domina um estado de samadhi, mesmo algum nível baixo e considerado obstáculo para meditações mais profundas no budismo, mesmo se ela estiver dentro de uma cela ou em meio a trabalho forçado, ela possui uma liberdade mental muito maior.

Evidentemente, o budismo sempre foi contra utilizar animais para carga — que dizer de comer seus corpos? E, então o que dizer de explorar outros seres humanos, que são muito mais capazes de compaixão e de fazer prática espiritual.

De certa forma, uma pessoa que pratica o budismo não pode nem mesmo prender sua atenção para algo neutro ou negativo por um instante, porque ela está tirando a sua liberdade de praticar naquele momento. Ela só pode atrair sua atenção para algo positivo para você e para todos os seres. Que dizer então de desviar toda a vida da pessoa para trabalhar para sua felicidade e a da sua família, sem nenhum benefício para ela ou para todos os outros seres? O budismo, assim, nunca defendeu a escravidão.

Se o Budismo é uma tradição superior e/ou mais eficaz, por que vocês ainda não dominaram o mundo?

Infelizmente o carma negativo da maioria das pessoas neste mundo permite muito pouca felicidade. Porém, segundo os ensinamentos budistas há mundos em que a virtude e as raízes da virtude são cultivadas extensivamente, mundos mais felizes — alguns inclusive sob direção budista, e que portanto permitem não só circunstâncias gerais melhores, mas boas condições para a prática espiritual que leva à iluminação.

Segundo o budismo, nosso próprio mundo também já esteve um pouco melhor. E pode voltar a melhorar também. Ou pode piorar muito. O próprio conceito de impermanência, junto com o conceito de carma, explica muita coisa.


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