3.3. Carma
O que é carma na visão budista?
É o assunto mais complicado do budismo, que apenas um Buda pode entender completamente. Há algumas diferenças entre as noções de carma nas variadas (centenas) escolas budistas, e uma boa diferença entre estas visões de carma e as milhares de perspectivas hindus. Há uma maior diferença ainda entre a visão de carma budista e a de religiões novas como o kardecismo. Porém é difícil falar desse assunto num contexto assim sem uma pergunta mais específica.
Carma significa ação, e implica que as ações tem consequências. Assim é uma conexão causal não vinculada a natureza, num sentido externo, como nas ciências, mas ao aspecto das ações, isto é ao agente, ao indivíduo como motor intencional. O que é o carma segundo o budismo? É como uma justiça divina?
De forma alguma. É uma relação impessoal entre causa e efeito, sem julgamentos, só que não ocorre apenas no nível físico, mas principalmente em como as coisas se manifestam para nós em nossa consciência. (O mesmo vento pode ser agradável para um e desagradável para outro, dependendo das ações passadas destes). Posso dizer que o carma nada mais é do que a interdependência natural sem a lucidez?
Não é possível dizer que os três venenos ou as aflições mentais sejam naturais. Então carma é a interdependência através dos três venenos, não natural, e sim, sem lucidez. O carma se encontra só nos seres vivos?
Só nos seres dotados de consciência, o que exclui as plantas. Que tipo de consciência? Apenas seres humanos?
Não, todos os seres capazes de sentir, em particular, de sentir dor. São as ações ou sentimentos que geram carma ruim? Podemos fazer uma ação boa e gerar carma ruim (ou vice-versa)?
A intenção é o crucial, e ela não é nem bem um sentimento nem bem um arrazoamento. Ela é o elemento de liberdade presente num possível impulso. Assim, segundo o budismo, mesmo a negligência ou indiferença é vista como uma intenção.
É ela que define o carma, a intenção. Se a pessoa tem intenção de beneficiar, e boas e claras razões para acreditar que aquela ação beneficiará — mesmo que ela eventualmente prejudique em algo, de modo geral ela será benéfica a quem agiu, ainda que possa ser caracterizada pelas eventuais consequências funestas a outro (ou seja, da mesma forma, o resultado pode ter algo de bom, ou algo de principalmente bom, com algumas características ruins). Mérito é carma?
Sim, carma positivo normalmente chamamos de mérito. Para a iluminação (resultado da prática budista, ser igual a um Buda) são necessárias duas coisas: carma positivo e sabedoria. Apenas carma positivo (mérito) não é suficiente. Por que é preciso acumular méritos, ou seja, gerar carma positivo?
Para viver melhor, e no caso do darma, para ser capaz de ouvir ensinamentos e ter tempo e outras condições apropriadas para praticá-lo. Quando você então reflete sobre os ensinamentos, os pratica e obtém certos resultados, há um resultado em que você chega que não é mais necessário acumular mérito. Mas mesmo quem chegou nesse resultado segue acumulando mérito como um exemplo para os outros. O que são méritos para o Budismo? É possível perder méritos, como assim? Em quais atividades se perde e se ganha méritos? Como isso ocorre dentro da lei da interdependência?
Mérito é carma positivo. Quando fazemos os outros felizes, a interpendência é nós mesmos sermos felizes. Na exata medida em que esses méritos são pessoalizados, transformados numa posse, eles são fragilizados. Os méritos que alguém acumula para si podem ser perdidos muito facilmente. Segundo Shantideva, um instante de raiva destrói o bom carma acumulado através de atividades virtuosas por vidas incontáveis. É por isso que uma prática central no budismo é oferecer estes méritos aos outros. Dessa forma esses méritos se unem como uma gota a um oceano, e dessa forma são mais dificilmente "secos" pelas aflições mentais. Uma parte daquela gota vai estar em todo o oceano, que nunca vai ser completamente seco (metaforicamente falando).
A impermanência vale para os carmas positivos e carmas negativos. Nenhuma experiência de felicidade criada por causas vai ser eterna, bem como nenhuma experiência de sofrimento é definitiva. Mas como um instante de raiva pode destruir tanto mérito?
Digamos que você recebeu um apartamento impecavelmente pintado, fruto do seu mérito acumulado. Porém, um tempo após a entrega, você deixa desatendida uma panela cheia de óleo no fogão, e ela se incendeia. Por acaso você consegue evitar um incêndio, mas as paredes antes impecavelmente brancas, agora estão cobertas por uma camada de fuligem gordurosa. Se alguém já tentou limpar fuligem da parede sabe que não é tarefa fácil. Uns minutos de desatenção causarão dias, senão semanas, de trabalho. Talvez seja necessário acumular todas as inúmeras causas para uma repintura, que geralmente começam com dinheiro, e uma reordenação de prioridades.
Da mesma forma, uma pequena desatenção no trânsito pode causar mortes, que podem levar familiares a depressão, e ao custo que isso implica para todos ao redor e a sociedade como um todo.
Portanto, é fácil entender como um instante de desvirtude na sua mente enche de fuligem todos os seus esforços virtuosos por um longo tempo. Da exata mesma forma que um instante de desatenção pode levar a sua morte, e jogar por água abaixo a maioria de seus esforços contínuos nessa vida, coisas como educação e carreira – que não chegam a uma fruição e acabam não produzindo os benefícios que poderiam produzir (e por isso se fala em "morte extemporânea", i.e. "fora de hora"). Não consegui entender bem isso de dedicar méritos fazer crescer exponencialmente o bom carma. não é injusto com pessoas que fazem milhares de atos bons e não os dedicam? E ainda por cima os "perdem" por um momento de ira?
Quando você pergunta sobre justiça, você concebe que o budismo tenha, como as religiões teístas, uma noção de uma realidade que é feita para Deus, e, algumas vezes, feita para os seres humanos. No budismo a realidade é o que é. Não foi o Buda que inventou as regras do carma, e aliás, o budismo não afirma nenhuma forma de deus que as teria planejado ou arquitetado. As noções de carma surgem por simples observação a partir da meditação, portanto elas não podem ser "justas" ou "injustas". O budismo não propõe nenhuma teleologia cósmica, apenas, dada uma situação real, propõe certas medidas para evitar o sofrimento.
De toda forma, é interessante a observação de que o carma, para quem não tem um caminho espiritual, é quase que aleatório, porque a pessoa não tem noção das causas e consequências, e nem geralmente uma mente disposta a esse exame. Isso é totalmente verdade.
O mesmo tipo de reflexão surge quando uma pessoa que foi "boa" nessa vida, no budismo acaba podendo renascer, na próxima vida, numa circunstância bem infeliz. Primeiro, não sabemos o carma das infindáveis vidas passadas antes dessa. Depois as circunstâncias do momento da morte são muito imponderáveis: ela pode morrer com raiva, ela pode ter vários tipos de morte ruim. De toda forma, a bondade que ela exerceu nessa vida é uma força positiva que tem uma consequência positiva: nem que seja irrisória, em alguns casos, perante, como se diz, "um momento de raiva".
Esse tipo de reflexão evita que pensemos no carma como um mero videogame, onde tudo é linear e compreensível. Não podemos nos portar de forma aleatória, mas por outro lado, não podemos garantir nenhum resultado. O que significa gerar mérito? Acumular mérito leva por si só à liberação total?
Gerar mérito significa agir coerentemente na direção da felicidade temporária e definitiva para você e para outros seres. Isto é, além de não prejudicar os outros, trazer benefício. A palavra "coerente" é importante, está ligada ao treinamento da mente, isto é, percebemos que nossos obstáculos em trazer felicidade aos outros são nossas tendências e hábitos negativos — assim os identificamos e produzimos antídotos, e geramos hábitos positivos. Dessa forma, tanto a ação direta em benefício dos outros quanto o treinamento para a ação mais coerente (a prática formal), ambos geram méritos.
O acúmulo de méritos é necessário, mas não é suficiente para atingir a liberação ou a iluminação completas. Além do acúmulo de méritos é necessário treinar na sabedoria, o reconhecimento da realidade, da vacuidade, em todas as coisas. Isto é, usando o símile famoso do sonho, reconhecê-las como um sonho. A beleza feminina é vista no Budismo como algo positivo ou como uma possível "armadilha"?
A beleza de qualquer gênero, e mesmo de animais, é um fruto do carma positivo ligado essencialmente a prática de paciência ao longo de várias vidas.
Nosso apego pela beleza, nossa e dos outros, no entanto, é negativo. É possível admirar algo sem apego, mas não é comum. Com a prática é normal que se torne mais comum admirar sem apego.
Quando vemos alguém belo, devemos regozijar pelo mérito dessa pessoa. Quando vemos um casal onde um é feio e o outro bonito, devemos regozijar pelo mérito do feio em usufruir de sua bela companhia. Dessa forma, nós mesmos acumulamos méritos. E a feiura então é fruto de mau carma? E quanto ao Buda, ele é o mais belo dos seres?
Claro. Porém, como todas as coisas, os juízos também são interdependentes, e coemergentes — o que quer dizer que pela nossa falta de mérito, achamos belo o que não é tão belo, e achamos não tão belo o que é efetivamente belo — se nosso carma for realmente ruim, achamos belo o que é feio, e feio o que é belo. Então o mérito faz o belo não só do ponto do objeto quanto do ponto do observador.
Quando no zen se diz "qual é o som de uma só palma", é interdependência, coemergência. A palma que bate na outra tem um som, a que bate na parede, outro som. É a mesma palma, sons diferentes. O mérito afeta o objeto observado, o instrumento de observação, o modelo utilizado para desenhar o instrumento, os órgãos dos sentidos e a consciência — tudo de forma interdependente. Praticar compaixão altera nossa aparência física? Percebi que pessoas boas tem boa aparência e pessoas malvadas, aparência ruim.
Isso não é absolutamente acurado, mas de forma geral, bem geral, e com um grão de sal, é verdade.
Particularmente, mesmo uma pessoa com boa aparência hoje, se for "malvada", com certeza foi boa em vidas passadas. A boa aparência é o resultado de bom carma nesta e em vidas passadas, embora as circunstâncias precisem estar presentes — ou seja, o bom carma pode se manifestar a qualquer momento ou levar muito tempo para se manifestar. Por isso surgem as exceções.
É importante não confundir causa com resultado. O fato de uma pessoa ser bonita hoje não quer dizer que hoje ela seja uma boa pessoa. Ela está vivenciando o resultado de boas ações que praticou antes, possivelmente em muitas outras vidas. Ela pode ou não seguir produzindo esse bom mérito, e portanto hoje pode ou não ser uma boa pessoa.
Ainda assim, todas as experiências positivas são frutos de mérito. O mérito, sem sabedoria, é totalmente mundano, isto é, ele só diz respeito a coisas temporárias, felicidades que no fundo são insatisfatórias. É através da motivação e da sabedoria que o mérito vai se tornar coadjuvante na iluminação. 447. Posso ser belo, sem ter méritos? A beleza pode não ser uma experiência positiva? O que acontece, por exemplo, no caso de uma menina ser bela em uma aldeia com homens agressivos, por exemplo, que a estuprem?
A circunstância geral da beleza é positiva. Ela pode, claro, ser coadjuvante de condições negativas. A beleza, como o resultado de todos os méritos, é fonte de sofrimento, no sentido mais profundo de sofrimento no darma, mesmo quando é evidentemente "boa". Os méritos negativos (o carma negativo) é fonte de sofrimento e o carma positivo também é fonte de sofrimento, e é isso que quer dizer dukkha, insatisfatoriedade.
Por outro lado, normalmente o que se diz é que o estupro não tem a ver com beleza ou mesmo sexualidade, e é sim apenas uma forma de violência. Uma pessoa nascer numa cultura de estupro é fruto de mau carma sem dúvida, e se algo é usado como justificativa para esse estupro, por parte dos estupradores (como aparência ou modo de vestir), isso é apenas uma junção de circunstâncias e causas, que tem a ver com o carma ruim de todos os envolvidos. Infelizmente, os perpetradores do crime estão fazendo um ser sofrer, e gerando mais sofrimento para si no futuro, enquanto que a vítima pode ou não usar essa triste oportunidade como purificação de carma – isto é, na medida em que ela tiver raiva ou queira vingança, a experiência será ainda mais negativa para ela. Se há uma coisa boa no carma ruim é que ele pode ser purificado. Isso não quer dizer que ela não vá a polícia ou algo assim, apenas quer dizer que ela não faz isso por raiva ou vingança, mas para proteger outras mulheres. Conhecer e se interessar pelo budismo nesta vida é sinal que você provavelmente acumulou méritos?
Claro. E você acumula méritos para, caso você não se ilumine, você tenha alguma chance de encontrar os ensinamentos novamente. Como estes ensinamentos sobre as verdadeiras causas da felicidade temporária, e sobre a felicidade definitiva, são raros, e eles permitem não só um sonho bom, uma vida boa, mas a possibilidade de dar sentido a toda a existência, e atingir um estado de liberdade, criatividade e compaixão vastas e profundas, beneficiando extremamente a si próprio e aos outros, gerar méritos com isso em mente, em particular com o benefício dos outros em mente, é o melhor motivo para amealhar méritos. Por que nos períodos de saga dawa e luas cheias os carmas são potencializados?
Pela interdependência com as aspirações dos budas, bodisatvas e praticantes do passado que fizeram práticas intensas sob as mesmas circunstâncias na mesma época.
Isto é, através da interdependência com eventos como a iluminação do Buda e a repetida prática da sanga ao longo dos milênios, a nossa própria prática, ao preencher essas aspirações e estar em continuidade com esses períodos em que se convencionou dar mais intensidade à prática, ela se torna mais efetiva. Se carma positivo é necessário, por que são feitas as práticas de dedicação de méritos?
Porque elas incrementam o mérito. Ou seja, oferecer mérito gera mérito.
Dedicar o mérito apenas incrementa o mérito que pode e deve então ser novamente dedicado. Com relação ao mérito passado acumulado, se dedico todo o meu mérito acumulado em todas as minhas existências para o benefício de todos os seres, esse mérito é "perdido", e desviado aos seres? No caso, eu propriamente não teria mais mérito, enfrentando talvez situações ruins ou tendo menos oportunidades, para poder aliviar o sofrimento dos seres? Se sim, isso não poderia atrasar o próprio desenvolvimento?
Gerar mérito gera mais mérito, que então você dedica de novo.
Dessa forma tanto o seu mérito pessoal quanto o mérito coletivo aumentam. E quanto ao seu mérito pessoal, se você não o dedica, você pode perdê-lo todo por um instante de raiva, por exemplo. Com relação a dedicação de mérito no presente ou futuro, como ao fazer uma doação e dedicar o mérito a saúde de uma pessoa, como ocorre essa relação?
A dedicação de mérito opera pela interdependência. Ao reconhecer a interdependência e a vacuidade, a inseparatividade entre os seres se torna óbvia. Dessa forma você incrementa sua sabedoria com relação à realidade, e ao mesmo tempo cria uma semente potencial no outro, para os méritos dele mesmo aflorem. Qualquer circunstância negativa no outro pode servir de gatilho para que você dedique o mérito, mas se sua dedicação vai produzir aquele benefício, isso vai depender de circunstâncias e do mérito da outra pessoa. Em todo caso, você ajuda, mas o melhor é não guardar expectativas quanto a resultados. A dedicação de méritos é feita principalmente para que o ser venha a se iluminar, e também tenha encontre boas condições ao longo de suas muitas vidas. Mas isso é a perder de vista. Então, quanto mais eu gero benefício aos outros, mais eu me aproximo da iluminação? Mas acho melhor não pensar muito nisso então, para não gerar apego ou moeda de troca...
Quanto mais você beneficia os outros, melhor é o seu sonho. Para colocar isso na direção da iluminação você precisa dedicar os méritos, e para dedicar os méritos perfeitamente, você precisa de sabedoria. Assim mérito e sabedoria vão levá-lo a iluminação. Apenas mérito, não.
O Buda falava de carma positivo (mérito) como algemas de ouro, e carma negativo como algemas de ferro. Sem sabedoria, o mérito só produzirá felicidades temporárias e condicionadas, que são, em suma, insatisfatória, e portanto, mais uma forma de sofrimento disfarçado. Isso significa que quando eu ofereço meus méritos a todos os seres, realmente estou compartilhando meu carma positivo? Pessoas recebem estes méritos? Saem da minha mente e afetam outros seres?
O efeito que isso tem sobre os outros seres depende dos méritos deles. O efeito que isso tem sobre você, curiosamente, é o de transformar o mero gerar de méritos em sabedoria. É um passo na direção de reconhecer o sonho, e não apenas sonhar algo melhor, que é o que méritos ordinários, não dedicados, produzem. O mérito é transferido de um ser ao outro?
A noção de separação entre os seres surge com a ignorância. Parte da prática de dedicação de méritos envolve reconhecer a inseparatividade natural entre todos os seres. Considerando-se os seres nos infernos ou os famintos ou os semideuses e deuses ou todos os não humanos que não conseguem praticar o darma, quando dedicamos os méritos a todos os seres, isso os ajuda de alguma forma? É só através disso que conseguem sair de seu estado e nascer como humanos, com chance de iluminação?
Sim, os ajuda. Mas essa não é a causa única que pode impelí-los na direção de renascimentos melhores e, eventualmente, da iluminação.
Eles também contam com méritos de incontáveis vidas passadas, além do que o carma nunca é infinito, então uma hora se esgota. Uma combinação desses três fatores: ajuda externa, mérito próprio e impermanência é o que faz que nenhum dos reinos seja "eterno" pra ninguém. Dedicar o mérito é multiplicar o mérito?
O mérito depende de quanta sabedoria da inseparatividade se tem. Quanto maior sua sabedoria, mais mérito. E dedicar incrementa mérito e sabedoria, dependendo pode "multiplicar" intensamente o mérito.
Dedicar mesmo uma ação irrisória para um único ser pode produzir iluminação, se se tiver a sabedoria de um quase-buda. Não haveria como, por exemplo, ter acumulado mérito o suficiente para renascer como um semideus, doar esse mérito todo para a iluminação dos seres e assim ter que renascer novamente como humano por causa da transferência de mérito? Ou mesmo como animal?
Bom, temos dois equívocos aqui.
O mérito de um deus ou semi-deus, do ponto de vista do darma, é inferior a de um ser humano. O ser humano tem mais chance de praticar o darma.
Então podemos falar em mérito mundano e o mérito que leva no caminho espiritual.
O mérito de renascer no reino dos deuses ou semi-deuses é um obstáculo a iluminação, então é uma forma de carma negativo, sobre certo aspecto. Esse é o primeiro equívoco.
O outro é que o mérito seja uma quantia absoluta, como num banco. Ele não é. Ele depende totalmente da sabedoria que reconhece a vacuidade. Assim o seu mérito de dedicar pode ser infinitamente maior do que o mérito da ação, isso dependendo da sua sabedoria.
A prática de dedicação de méritos em si incrementa a sabedoria. Portanto os méritos aumentam para todos. E não só isso, o seu mérito pessoal é protegido ao ser oferecido. Ele permanecendo vinculado a uma entidade impermanente, também é impermanente. Quando ele se vincula à inseparatividade, à vacuidade, então o mérito se torna infinito e indestrutível. E é isso, também, juntamente com a própria sabedoria, que produz a iluminação. Iluminação significa sabedoria incessante reconhecendo a vacuidade e mérito infinito, um estando inextricavelmente ligado ao outro. Qual a diferença entre mérito mundano e mérito que leva ao caminho espiritual? Dedicar é uma maneira de transformar mundano em espiritual?
Sim, dedicar é uma prática que leva a transformar o mérito aparente em mérito verdadeiro. Reconhecendo inseparatividade e vacuidade, isto é, através da própria prática do darma que ele fortalece e torna possível.
O mérito mundano é aquilo que as pessoas ignorantes consideram que é mérito, isto é, condições temporárias "boas" de todo tipo, como riqueza e carisma. Se essas circunstâncias impedem a pessoa de praticar o darma, porque ela fica muito envolvida nelas, na verdade elas não são meritórias, elas só parecem meritórias. O mérito verdadeiro é o mérito que leva à iluminação, então esse é o mérito espiritual. Qual a diferença entre ter mérito e não ter. Pode dar um exemplo?
Ter mérito significa encontrar circunstâncias propícias para o desenvolvimento de sabedoria, e portanto, da iluminação.
Os seres nos reinos superiores tem mérito no sentido de terem boas condições mundanas, mas elas não levam a sabedoria, nem a iluminação. Pelo contrário, os levam a não ter interesse em coisas profundas, e na prática do darma, por exemplo.
Milarepa uma vez quebrou o único objeto pessoal que possuía, uma tigela de barro, e cantou de felicidade porque a tigela havia lhe dado mais um ensinamento sobre a impermanência. Isso é mérito, do ponto de vista do darma. Ao rezar para alguém acreditando que isso lhe refresca alguma coisa, o praticante não está se comportando como se fosse um Deus oculto que se compadece de todos os seres? Se a intervenção for eficaz, de quem é o mérito? Seu? Do Buda? De algo oculto?
Qualquer um pode dedicar mérito. O que é oculto para a maioria das pessoas é este fato. Fora isso, não há nada de especial nisso. E mesmo uma pessoa com muita prática de meditação e muito eficiente em dedicar os méritos — não tem o poder absoluto e unilateral de curar alguém — isso depende do mérito de ambos. É uma combinação dos dois fatores.
Curiosamente, quem mais se beneficia com o dedicar de méritos a alguém é a própria pessoa que dedica. O objeto da oração recebe algum benefício, coemergente com o mérito que tenha gerado por si só, mas o benefício maior é de quem ora. Portanto é possível até mesmo fazer uma segunda, uma terceira, uma "n" dedicação de méritos. Se ao gerar esse mérito mantivermos esse mérito apenas para "nós mesmos", sem dedicar, daí o mérito é naturalmente mais sujeito à impermanência, dura muito pouco, e é muito pequeno. Por isso é minha melhor vantagem não ser egoísta com meu mérito: quanto mais verdadeiramente não egoístas somos, melhor nos damos.
Se a intervenção é eficaz — por exemplo, se, ao menos em parte, devido a uma oração de alguém, um papel que a pessoa a ser beneficiada precisaria recolher do chão é resgatado antes de cair, e ele não precisa se abaixar — o mérito é tanto de quem orou quanto de para quem se ora. E podemos sempre dedicar vez após vez.
No budismo sempre dedicamos o mérito a todos os seres sem exceção, e, se estamos com alguém em mente por algum motivo, adicionamos essa pessoa ou pessoas em particular. Então o mérito é de todos os seres — cada virtude pode elevar, através da interdependência, a condição geral de todos os seres. Se meu animal de estimação morreu, eu posso dedicar méritos para ele renascer uma terra pura?
Sim, mas não é certo que isso vai acontecer. De toda forma, algum benefício o animal obterá. Você gera méritos e os dedica em nome do animal, e ademais, para o benefício de todos os seres. Como se dedica méritos?
Existe a dedicação de méritos e a prática de dedicação de méritos. A dedicação de méritos é o que um Buda faz com seus méritos. Nós fazemos a prática, isto é, nos aspiramos dedicar os méritos. Nós fazemos um gesto artificial que imita os Budas, e enquanto a sabedoria vai brotando, a artificialidade vai se dissipando, e a dedicação se torna natural. Podemos usar uma formulação como "dedico meus méritos como todos os Budas os dedicam", ou alguma entre centenas ou milhares de preces já compostas e tradicionais. Podemos fazer através de uma prece, em voz alta, ou, se formos capazes, através de um samadhi, uma realização meditativa — o melhor deles sendo a realização da vacuidade. A dedicação de méritos só é possível com a sabedoria — então treinamos na dedicação de méritos para revelar a sabedoria, e nos ocupamos da sabedoria para possibilitar a dedicação de méritos. Uma pessoa morre e deixa um testamento, nele ela diz que todos os bens devem ser doados aos pobres e instituições de caridades. Mesmo depois de morta, essa pessoa acumula esses méritos?
Claro. Se uma pessoa se inspira por um poeta que morreu há séculos, mesmo que ele não tivesse intenção de publicar aquele poema, ele gera muitos méritos. Que dizer então de ações de generosidade que perpassam gerações?
Mas também é possível dizer que ela já gera os méritos ao fazer o testamento. Supondo que alguém doe dinheiro para um mendigo na rua e depois esse dinheiro seja gasto com drogas, por exemplo. Mesmo que a motivação do doador seja positiva, como fica essa questão?
O carma é essencialmente bom, com elementos ruins na medida da indiferença e negligência com que foi oferecido o dinheiro. Além de estar atento, interessado e cuidar do outro ao máximo, também, ao fazer oferendas, devemos abandonar os preconceitos. Um advogado defendendo um assassino, e talvez até o absolvendo, estará gerando carma negativo para si?
Uma pessoa gera carma na medida em que ela age intencionalmente e com isso prejudica os outros. Se uma pessoa ajuda outra por compaixão, ela não gera carma ruim. Se por negligência ela solta no mundo uma pessoa que vai continuar causando negatividade, então, nesse caso ela gera mau carma ligado a sua negligência. Mas então não é necessariamente negligência? Digo, ele sabe que o rapaz matou alguém, e o ajuda a ser absolvido porque esta é sua profissão. E ajudar alguém por compaixão, mesmo que isso acabe causando mal de outra pessoa, ainda é uma boa ação?
Pode ser negligência ou não. Se ele o absolve sabendo e podendo saber que ele pode cometer mais crimes, é negligência. Senão, a pena humana não é substituta para o sofrimento que inevitavelmente ele vai ter. Na visão budista a prisão só é adequada se não é punitiva, mas para evitar que cometam crimes, e, para, se possível, recuperar a pessoa de forma que ela seja confiável novamente.
Então, um advogado que absolva alguém em que ele não deveria confiar, porque vai seguir cometendo crimes, esse advogado gera mau carma. Já um advogado que absolve alguém que não cometerá mais crimes, não gera carma.
Vou repetir: na medida em que criação de sofrimento e intenção negativa (mesmo que indiferença, negligência) estejam juntas, nessa mesma medida o carma (a causa do sofrimento futuro) é gerado.
A prática de compaixão inclui pensar nos outros, então não é compassivo soltar alguém de quem se tem bons motivos para desconfiar vai causar sofrimento aos outros. É, de fato, uma desvirtude, vai gerar mau carma. Um jornalista que por exemplo trabalha fazendo investigações sobre a possível má conduta de agentes públicos está gerando um carma ruim ao denunciar falhas, gestão em causa própria e corrupção, sabendo esse profissional que seu trabalho prejudicará o denunciado?
Não, a não ser que ele não tenha evidências e seja uma denúncia vazia. De outra forma faz parte da regulação de um estado democrático o "quarto poder", isto é, a denúncia pela imprensa livre. Ao ser negligente e não denunciar falhas, interesses não republicanos e corrupção, aí sim, ele de fato estará gerando mau carma.
Veja que há uma diferença entre uma pessoa pública, e em cargo público, e a denúncia quanto as faltas de uma pessoa comum. No caso da pessoa comum, se for o caso, procura-se uma autoridade que possa impedir aquela pessoa de cometer a falta — e em qualquer caso que não vise remediar a situação, mas mero sensacionalismo, isto é inadequado. Em outras palavras, o jornalismo que expõe, digamos, o alcoolismo de uma pessoa famosa para meramente animar as emoções torpes do público, está gerando mau carma enquanto jornalista.
Em outras palavras, a ética budista em muito se coaduna com a ética convencional do jornalismo, que todo mundo entende, mas que poucas pessoas seguem, num mundo em que o lucro e a popularidade parecem os fatores mais importantes. A estrutura das grandes corporações da informação muitas vezes não permite que uma pessoa seja ética na prática do jornalismo — daí a pessoa precisa pesar bem, e se o benefício que ela trás não for superior aos problemas que ela gera no mundo, em alguns casos pode ser adequado abandonar a profissão por não ser conducente a uma vida feliz para si e para os outros. Não consigo acreditar que estou adquirindo todos esses méritos incríveis só porque acendi umas velas desejando que o sofrimento do mundo acabe. O que você pode dizer sobre isso?
Tudo que é feito com boa intenção na direção do darma, produz um mérito exponencialmente multiplicado através da conexão e interdependência dessa ação com as ações de todos os Budas e Bodisatvas do passado, do presente e do futuro. Então mesmo uma oferenda simbólica feita com com essa interdependência e uma boa intenção com certeza produz muito mais méritos do que outras ações no mundo, motivadas pelo mero autocentramento, ou motivadas pelo benefício meramente temporário dos outros. O que não quer dizer que se deva abandonar qualquer atividade meritória, mesmo que ela não tenha interdependência explícita com as atividades formais de praticantes do passado, e os meios hábeis ensinados por seres realizados. Se ela for virtuosa, ou mesmo apenas tiver a aparência de ser virtuosa (não produzir benefício "palpável"), e for feita no contexto da dedicação de méritos e com motivação pura, ela é importante. Isso porque antes de tudo, o darma é um treinamento da mente para abandonar a reificação da energia de hábito que nos afasta da virtude, então mesmo um "teatro" virtuoso tem impacto sobre a mente. A prática formal É artificial, e também por isso é especificamente desenhada para lidar com a energia teimosa de nossos hábitos arraigados. Existem "banhos", rituais ou "trabalhos energéticos" para "amenizar o carma"? Tais práticas têm alguma utilidade no budismo? E a meditação, melhora o carma?
Não. Quanto a última pergunta: a meditação pode produzir carma positivo, e no vajrayana existem meditações muito específicas para purificar carma mais velozmente, mas no geral a meditação só produz carma positivo, sem influenciar no carma já gerado. Quando a gente percebe que fez no passado coisas que possivelmente geraram carma muito ruim, o que é possível fazer para tentar purificar isto?
Remorso, confissão, votos de não repetir e aceitação, paciência consigo mesmo. Há, nas várias formas de budismo, métodos diversos. No vajrayana esses quatro métodos são estendidos vastamente através da prática com a visualização do Buda Vajrasatva, que fez, enquanto no caminho, o voto de ajudar com esse tipo de questão.
É uma prática feita por todos que praticam o vajrayana, independente de escola ou linhagem. É possível a anulação do carma por meio da redenção e arrependimento de seus atos negativos?
Não, o método para purificar carma (sem sofrer as consequências dele) é particular do vajrayana. É preciso aprendê-lo de um professor qualificado. O remorso ou arrependimento é apenas uma de quatro etapas necessárias. Quais são todas as etapas?
1. Reconhecer o erro; 2. Arrepender-se; 3. Confessar (perante uma fonte de refúgio); 4. Fazer o voto de não repetir.
É a etapa 3, e o método através de mantra e visualização, que determina que tipo de purificação é efetivada. No mahayana confessa-se para a sanga, ou para o amigo espiritual, ou para um Buda visualizado. No vajrayana confessa-se com uma visualização bastante específica. Assim, no mahayana a purificação é efetiva mas não muito ampla, e no vajrayana ela é efetiva e ampla — no sentido de que se ela é feita de acordo com os métodos ensinados numa linhagem pura, os sofrimentos gerados por aquela ação negativa são totalmente extirpados. Mas mesmo a purificação no nível mahayana é extremamente benéfica e essencial para a prática — isto é, é essencial fazer essa prática continuamente, dia após dia, em qualquer caso. Há alguma forma de dar um calote no carma?
Quando se diz "dar calote" no carma se quer dizer que a pessoa não deve achar que sofrendo voluntariamente ela vai estar pagando alguma coisa. Se ela pode não sofrer, ela deve evitar o sofrimento — ela não precisa, só porque se considera culpada de algo, ficar numa situação de sofrimento.
Gerar mérito e sabedoria é a melhor proteção quanto ao carma. Você cria circunstâncias boas e assim o que seriam 500 bilhões de anos no inferno se transformam em 15 minutos de dor de cabeça.
Enfim, quando uma pessoa está muito próxima da realização, ela chama todos os credores cármicos para devorarem dela tudo que puder ser devorado. Em outras palavras, tudo que pode ser devorado, destruído, não é fonte de refúgio. Estivemos dando solidez e criando apego por este corpo e essas coisas em que confiamos, mas nenhuma dessas coisas é causa verdadeira de felicidade. Assim, uma pessoa que esteja acima da esperança e do medo chama os demônios para um banquete, e assim purifica vastas quantidades de carma — ou o esgota completamente — numa única vida, numa única sessão de prática.
Nós, que somos mais tímidos, pedimos para que o carma fique lá, escondidinho, para quando desenvolvermos essa visão destemida. De que forma que a vítima de uma agressão pode usar o fato como purificação de carma?
Isso, ela naturalmente purifica carma ao sofrer não voluntariamente. Na medida que ela se coloca disponível ao sofrimento, sem que isso seja benéfico a ninguém, nessa medida não haverá purificação. É importante explicar isso, porque senão a próxima pergunta será "porque um Budista não se autoflagela para purificar carma, ou não manda alguém bater nele?"
Porém, na medida em que ela sente raiva ou outras aflições mentais com relação ao agressor, ela gera novas propensões, e se ela revida em corpo, fala ou mente (planejando um revide), embasada em aflições, e não em compaixão por si própria e pelo agressor, ela gera carma. Então ela não aproveita a oportunidade de purificar o carma sem gerar mais carma, que é gerar compaixão.
Se a pessoa tem uma doença, por exemplo, e fica autocentrada, ela não purifica muito carma. Agora, se ela gera compaixão através do próprio sofrimento, porque entende melhor o sofrimento de muitos outros com a mesma condição, ela purifica muito carma e gera mérito.
Por isso é uma oportunidade em aberto, ao contrário de outras tradições, onde o sofrimento é sempre um "ensinamento". No budismo você pode transformar o sofrimento numa boa coisa, ou pelo menos praticar algo bom em meio ao sofrimento, mas depende só de você. Não há casos em que um pequeno sofrimento no curto prazo nos poupa de muito sofrimento no longo prazo? Mas somos muitas vezes míopes e não conseguimos avaliar direito. Como lidar com essas substituições intertemporais de sofrimento?
Não precisamos sofrer se o sofrimento for evitável, a não ser que tenhamos boas justificativas, de acordo com nosso entendimento atual, de que o sofrimento vale a pena no longo prazo. Se temos um âmbito temporal realmente curto, de alguns minutos ou meses, precisamos desenvolver uma visão de anos e, considerando ou não o renascimento, centenas e milhares de anos — pelo menos em boa motivação para com os outros, que é o que traz verdadeira felicidade aqui e agora também.
A própria prática budista, meditação, por exemplo, dificilmente é agradável por um longo tempo no início. Mas não devemos igualar o que é agradável com o que é benéfico, também desde o princípio. Nos países em que há pena de morte, para quem vai o eventual mau carma das execuções?
Para quem quer que regozije com a morte. Também para aqueles que por negligência (ou aversão, ou outro veneno ou aflição mental compostos) tenham permitido aquela morte em particular (o juiz, os carrascos, o júri etc.). Isto com relação ao carma de matar, que precisa ser específico — você tem carma ruim ao causar a morte sem um alvo específico, mas não é o carma (ruim) completo de matar (por isso comprar carne é carma ruim mas não é carma de matar). Assim, por exemplo, os legisladores e governantes tem carma ruim ao legislar pena de morte (e todos que apoiam, ou meramente regozijam), mas não é o carma de matar. O carma completo de matar exige que o alvo, o objeto, aquele que morre, seja conhecido, e não uma generalização. Então se você regozija com a pena de morte, você tem um carma ruim — mas o carma pior é quando você regozija pela morte de um detento em particular. A diferença é entre o alvo do seu regozijo ser uma abstração ou uma pessoa específica. Mas todo carma ruim, é... ruim. O cap. X (8-12) do Darmapada aparentemente fala de um monte de castigos já nesta vida para quem fere os mansos e os que se comportam bem. É assim mesmo ou isso é licença poética?
O resultado de carma negativo sempre pode se dar nessa mesma vida. Não temos certeza sobre quando ele vai se manifestar. Aprendi que no budismo o carma não é visto como um castigo, mas sim como o reflexo de estruturas mentais. Como então o budismo explica acidentes trágicos com pessoas que ajudam muito as outras?
Se o carma fosse tão linear, nenhum ladrão poderia experimentar felicidade após o crime, mas de fato há muita felicidade falsa em usufruir do roubo, talvez por toda uma vida. Não obstante, em vidas futuras o sofrimento causado se manifesta.
Da mesma forma, todos nós temos muito carma positivo e negativo acumulados por incontáveis vidas sucessivas. Se todo nosso carma negativo se manifestasse agora, mesmo que nessa vida não tenhamos feito nada de errado, vivenciaríamos um sofrimento muito pior do que uma morte em uma catástrofe.
Da mesma forma, nosso carma positivo não se manifesta todo de uma vez.
As causas e condições precisam se formar, para então a nossa experiência subjetiva colocar um rótulo positivo ou negativo nela, de acordo com tendências habituais de muitas vidas acumuladas.
Se o carma funcionasse de forma imediata ou relativamente imediata, ninguém cometeria desvirtude. As pessoas cometem desvirtude porque não sabem que estão bebendo veneno. Se elas passassem mal após o primeiro gole, não tomariam o segundo. Elas seguem bebendo veneno porque parece gostoso, até que um dia o colesterol finalmente entope uma veia crucial. Mesmo que ela saiba que vai entupir, ela segue mais o impulso e o hábito do que o conhecimento de que no futuro aquilo vai dar errado. Tudo é carma? Ou seja: uma criança que sofre qualquer tipo de violência está pagando por erros cometidos no passado?
Sim, todo sofrimento vem de produzir sofrimento no passado. Mas não existe a noção de "pagar", porque se a pessoa (criança) apenas sente raiva enquanto está sofrendo, ela está apenas gerando mais carma — então ela não purifica nada. É um pouco pior, por certo ângulo.
Por outro lado, é incorreto pensar "ela fez, agora paga", e não ajudar por algum motivo de vingança "na vida passada ela foi um assassino, agora tem o que merece". O ensinamento de carma não nos dá nenhum tipo de perspectiva de "vingança" impessoal da natureza, e sim a perspectiva de grande compaixão por aqueles que produzem hoje as causas de grande sofrimento futuro. Então em vez de ficar "satisfeito" pelo sofrimento da criança hoje, por más ações do passado, você fica é triste pelos que hoje cometem más ações, porque eles vão sofrer como ela. Isso nos faz ter compaixão de quem produz sofrimento, não só de quem simplesmente sofre.
Se a pessoa não tem essa perspectiva, ela apenas pensa em culpa e responsabilidade — e o ponto aqui é compaixão. Você não diz "muito bem", não está nada bem. E quando você mesmo sofre, você não pensa apenas "puxa, eu fiz algo muito errado", você pensa "que ninguém passe pelo que estou passando", isto é, que ninguém gere estes resultados. Essa é a perspectiva correta com relação ao carma. Em outras palavras, quando vemos um malfeitor sofrendo (e só quem sofre é malfeitor), nós não regozijamos, nós temos compaixão. Da mesma forma, quando vemos um malfeitor se "dando bem", nós não ficamos com raiva, mas apenas novamente, temos compaixão, porque sabemos que eventualmente as causas encontrarão condições de produzir resultados — gerando sofrimento.
Compaixão na causa e no resultado. Essa é a perspectiva correta. Ademais, carma é um ensinamento provisório, isto é, não é o que de mais profundo o Buda ensinou. É essencial refletir sobre carma, mas também é essencial refletir sobre a insubstancialidade de todas as causas e condições como sonhos bons e pesadelos. Até se uma pessoa é destra, canhoto ou ambidestra é por causa do carma?
Claro, até se uma pessoa tem uma pintinha no nariz. Não existe no budismo efeito sem causa. Porque algumas pessoas morrem mais cedo que outras? Seria efeito do carma?
Sim, a morte extemporânea, fora de hora — isto é, numa idade em que normalmente não se espera que a pessoa devesse morrer — se deve a ter matado seres, nesta ou em outras vidas. Assim, se a pessoa quer ter uma longa vida, e ter o mérito de uma longa vida nesta e em outras vidas, ela deve proteger a vida de outros seres. Afinal, as doenças são causadas por bactérias, vírus e defeitos genéticos ou pelo mau carma? E se é pelo carma, qual o sentido de se tomar vacinas e remédios?
A causa primária de todo sofrimento é a ignorância. Ela produz o mau carma, que produz as fragilidades, que produzem as causas eficientes. Você pode extirpar o sofrimento pelos ramos ou pela raiz, e de fato, do jeito que você puder. Mas é melhor pela raiz. Enquanto você não elimina a ignorância, você lida com as causas eficientes, indo no médico e tomando remédios. Uma coisa não exclui a outra, e você não precisa abandonar nenhuma tentativa de evitar o sofrimento.
Mas é importante entender uma causa que explica o funcionamento de algo (causa eficiente) e uma causa que explica o porquê último de algo (causa primária) — essa é uma diferença teísta e aristotélica, mas serve nesse contexto. Se a pessoa tem um determinado distúrbio no corpo, você pode dizer que é por causa de uma bactéria — mas porque o sistema imunológico dessa pessoa deixou a bactéria entrar e ficar? Daí você vai para ambiente e genética. Mas porque o ambiente é assim? Porque a genética é assim? Por causa do carma. E porque o carma é carma? Por causa da ignorância. Essa é a causa primária. O budismo não acaba vendo deficientes, por exemplo, de uma forma que pode ser injusta, já que suas mazelas são consequência de algo que fizeram? Isto não é apenas um dogma?
Qualquer coisa que produza sofrimento é fruto de mau carma. Não existe sofrimento sem ações negativas que o geraram. No entanto, em vez de nos focarmos no preconceito nas pessoas que sofrem devido a suas ações passadas, que tal evitar completamente o preconceito contra aquelas que agem negativamente? Todos nós temos o potencial para qualquer ação negativa, por pior que seja. Porque então nos consideramos melhores ou olhamos com desdém para aquelas que agem, hoje, negativamente? Eles são objetos de compaixão maior do que aqueles que sofrem os frutos de suas ações passadas. Não é vergonha nenhuma sofrer — há grande vergonha em olhar para aqueles que agem negativamente (agora e no passado) com uma mente preconceituosa.
Justiça é ver os seres com equanimidade, sem preferir uns pelos outros, sem vê-los nas suas necessidades peculiares. Injustiça seria, por exemplo, uma visão que tivesse por um deficiente maior compaixão do que por alguém que, agora, age negativamente. Mas as pessoas são assim, de um elas sentem pena, do outro aversão e raiva. Justiça é evitar pena por um e desprezo por outros, e usar simplesmente a compaixão.
E, ademais, ninguém precisa acatar nenhum ensinamento budista sem o colocar em teste. Então, por definição, não existem dogmas no budismo. Nesse caso que você cita, uma mera reflexão sobre compaixão e equanimidade — ausência de preconceitos — já purifica qualquer ideia errônea que uma pessoa que pensou as coisas pela metade poderia ter com relação ao ensinamento do carma. A mesma compaixão que você tem pelas crianças sofrendo de câncer no hospital você precisa desenvolver por aquele que hoje mata e vende drogas, e que está gerando sofrimentos ainda maiores para si no futuro. Olhar uma pessoa que sofre ou que vai sofrer e ver apenas um culpado é grande ignorância. "A mesma compaixão (...) você precisa desenvolver por aquele que hoje mata e vende drogas" Se o budismo é verdadeiro, tudo bem. Mas se é equivocado, essa negação da responsabilidade dos seres por seus atos me parece perniciosa. Não é?
Carma é responsabilidade. O que é negado é culpa. Onde você leu que não há responsabilidade?
Evidentemente que não é pernicioso, caso contrário as civilizações budistas — onde todos acreditam nessas coisas, e onde, embora existam poucos crimes, existem crimes — seriam consideradas bárbaras e infelizes — o que não acontece. De fato, essa seria a verdadeira atitude de um cristão também — para um cristão que leve a sério a palavra do Novo Testamento.
A ideia de julgar quem comete negatividade como se aquela negatividade fosse algo mais que um obscurecimento adventício, que seja uma espécie de marca permanente de mal cravada no cerne daquele ser, é a ideia mais perniciosa que existe. É a reificação do "eu" assumindo sua mais hedionda forma. "Ninguém precisa acatar nenhum ensinamento budista sem o colocar em teste" Como se pode colocar em teste de maneira razoável a afirmação de que a deficiência adquirida ou congênita de alguém é fruto de mau carma?
Através da prática de meditação. Ao estabilizar seu foco, regular a exposição, encontrar a nitidez perfeita para a análise dos fenômenos internos e externos, a interdependência se torna clara. Eventualmente você pode até lembrar das incontáveis vezes em que você mesmo foi deficiente (porque se fixar nisso? Cada circunstância em que você sofreu, até por um motivo frívolo), e cada uma das causas.
Um conhecimento completo de todas as causas e condições só um Buda pode ter. Mas um conhecimento parcial de carma/interdependência é razoavelmente fácil de obter. E, além disso, pensar de acordo com isso, aceitar o experimento de pensamento, é o mais benéfico para você e para os outros. Então a pessoa já se beneficia no mero examinar cuidadosamente essa questão e fazer os experimentos. Como o budismo explica o porquê de coisas horríveis acontecerem com determinadas pessoas? Se for para "pagar por suas atitudes na outra vida" como existiria uma "justiça" nisso, caso a pessoa seja uma pessoa realmente boa/pura nessa encarnação?
Bom, primeiro você está supondo que o budismo considere o samsara justo: ele não necessariamente é justo. Justiça é um valor humano. No budismo não se propõe que a realidade ou as coisas que acontecem sigam necessariamente ditames e expectativas de seres humanos ou divinos. Já que não há uma noção de criação, as coisas podem perfeitamente não ser justas. O Buda não tem responsabilidade nenhuma pelas coisas serem do jeito que são — ele apenas ensina um caminho para superarmos o sofrimento, que é também uma experiência de ser senciente, não uma coisa que exista por si só na estrutura das coisas.
Depois, essa pergunta é comum e creio que já a respondi algumas vezes. O fato da pessoa não saber que fez algo de errado não a exime da responsabilidade pelo que fez: se sofremos algo hoje, é porque em momentos passados causamos sofrimento. Se hoje somos virtuosos e causamos felicidade aos outros, é bem provável que nossas experiências futuras reflitam estas ações — mas todos nós temos uma pilha de experiências boas e ruins criadas por ações no passado, e o momento em que essas experiências ocorrerão é totalmente indeterminado.
De outra forma, não "pagamos" através de sofrimento: nós purificamos o carma, não o "pagamos". Essa é uma diferença crucial. Não há uma contabilidade, nem uma culpa. Há apenas responsabilidade, e o fato, até mesmo confortador, de que as experiências de sofrimento tem origem no fato de que causamos sofrimento a outros — mesmo que sejamos quase perfeitamente virtuosos nessa vida, vamos reconhecer algumas ações nossas que causaram sofrimento. Da mesma forma que fomos capazes dessas pequenas ações, podemos, no passado e no futuro, ter causado/causar sofrimento, e vir a sofrer as consequências. Dessa forma todos os nossos sofrimentos atuais nos lembram do sofrimento dos outros, isso tira o peso de nosso próprio sofrimento, já que desenvolvemos compaixão por outros que sofrem da mesma forma, e mais do que isso, desenvolvemos compaixão por aqueles que causaram esses sofrimentos, inclusive nós mesmos, porque agora conhecemos o resultado dessas ações.
É mais nesse sentido a reflexão sobre o carma do que nos fazer sentirmo-nos culpados ou impotentes perante o sofrimento. No conflito entre China e Tibete, exílio dos tibetanos, etc. não está havendo injustiça?
Só se você acredita que o sofrimento é realmente causado por um agente externo, então você é simplesmente uma pessoa com visão convencional. Já um praticante — e isso vemos vez após vez os lamas, alguns que foram torturados, dizerem — vê o que sofre como carma. E tem compaixão dos agressores.
Por compaixão pelos agressores é que devemos evitar que eles produzam mau carma, e portanto fazer o possível para evitar suas ações negativas. Pela indignação de uma noção de justiça embasada na crença da existência inerente de um "eu" o sofrimento só vai se proliferar.
É difícil de entender que se não temos carma, o agressor não é capaz de nos agredir? Ele é um agente de purificação. Quando olhamos alguém perpetrando um crime, devemos ter mais compaixão do criminoso do que da vítima. A vítima não está gerando sofrimento futuro, e o sofrimento atual dela pode ser usado como purificação. Ela está em situação muito melhor que o agressor. O agressor sim, quanto vai sofrer depois? A nossa fragilidade, o fato de que temos um telhado de vidro disponível para o agressor, vem do fato que criamos condições para isso no passado.
Enquanto se agir pensando no agressor como uma entidade externa capaz de produzir sofrimento, nunca irão cessar as causas de sofrimento. Sabedoria é reconhecer a realidade da inseparatividade, e portanto, ser capaz de compaixão. Essa é a diferença essencial entre um praticante e um não praticante: se você age por raiva, você não está praticando. Você precisa agir por compaixão, e então você pode, com a sua compaixão, fazer o que for possível para beneficiar o agressor. Beneficiar o agressor significa encerrar sua negatividade — da forma que for possível. Se você não encerrar a negatividade do agressor, sendo capaz disso, você não tem compaixão, nem sabedoria. Se você é capaz de liberar o agressor e não libera, onde está sua compaixão? Com compaixão você pode usar quaisquer meios para liberar o agressor — sem compaixão, mesmo que você fique passivamente sofrendo, você gera mais carma e não beneficia ninguém. Muito mais carma ainda, se revidar, ou regozijar.
Você precisa incluir o agressor em sua mandala. E o agressor nesse caso, o povo chinês, é tão fácil de incluir... eles são vítimas de ideologias estrangeiras, cheias de visões errôneas, o materialismo totalitarista marxista — e agora com uma pitada do que é pior no capitalismo — como não ter compaixão?
Às vezes, quando eu falo essas coisas, me surpreendo que o que as pessoas sabem sobre budismo são coisas como "desapego de posses materiais" e "reencarnação". Esse tipo de visão é googolplex vezes mais importante do que abandonar posses (e isso só é importante para o hinayana, a forma mais inferior de budismo), e bem mais importante que a noção de renascimento. Sua Santidade o Dalai Lama chega a dizer que isso é mais importante do que o refúgio no Buda — e até pelo simples autointeresse, se a pessoa refletir bem e fizer os experimentos, sem se filiar a religião alguma e fazer prática alguma, a pessoa deveria adotar tal visão.
A noção de carma do budismo parece meio radical demais. Não consigo, por exemplo, sequer imaginar o que um ser teria que fazer para merecer uma temporada em alguns dos infernos que os textos descrevem. Parece injusto, cruel demais.
"Se eu acredito no Carma? Não, eu não acredito. Se eu pratico de acordo com o carma? Sim, eu pratico." Essas foram as palavras de Phakchok Rinpoche ensinando aqui no Brasil.
Os sofrimentos e prazeres inimagináveis dos reinos bem inferiores e bem superiores são ensinados exatamente para rompermos com nossa fixação na nossa perspectiva humana limitada. Ao desenvolver compaixão por essas situações muito extremas, o que acontece é que nossa própria mente se flexibiliza.
O samsara não é o mundo, mas um sonho causado por aflições mentais. O maior problema das pessoas que não acreditam em infernos e reino dos deuses não é elas não acreditarem nesses reinos, mas elas acreditarem demais na experiência humana, e não serem capazes de duvidar dessa experiência — e, mais importante, reconhecer sua transitoriedade.
Segundo o budismo, esse corpo aqui também é um corpo sonhado — e não só é sonhado, mas é foco de grande apego, que é uma distorção emocional, nós confiamos muito nele, nós nos identificamos com ele — e isso leva ao sofrimento, porque ele evidentemente não dura muito.
Em essência, por exemplo, todos nós somos capazes da mesma compaixão. No nível atômico, o mesmo número de átomos de um led, a lampadinha que indica que o Caps Lock do seu teclado está acionado ou não, e de uma estrela tem a exata mesma energia. Se tem a mesma massa, eles tem a mesma energia. Mas, por causas e condições, um está sendo excitado por um pouquinho de eletricidade, e o outro está no meio de uma reação termonuclear, assim essa energia num caso liberada e no outro apenas um pouquinho de luz é emitida. Da mesma forma, podemos desconfiar de assimetrias muito mais profundas, em termos de felicidade e sofrimento, do que as que estamos acostumados como humanos.
Mesmo que porventura não existisse o inferno, ou o reino dos deuses, refletir sobre extremos de felicidade maiores do que os que achamos possíveis é imprescindível. O maior benefício de pensar nessas coisas não é vir a acreditar em algo, mas duvidar melhor da experiência humana e de seus limites.
O ponto essencial é que vemos o sofrimento — algumas vezes sofrimentos enormes, no reino humano, e não vemos as causas deles. O carma dá uma explicação, que é basicamente o fato de que o sofrimento tem causa, não é "gratuito", não é aleatório.
Sem entrar no mérito do que é real, a vantagem em acreditar num mundo que tem coerência, é que você tem algum poder sobre esse mundo. Se o mundo não tem coerência alguma, então caímos no existencialismo, niilismo, desespero e assim por diante. Que o mundo seja assim é um fato, mas mesmo que o mundo não fosse assim, seria vantajoso se iludir dessa forma.
E não só vemos grandes sofrimentos — no reino humano mesmo — mas vemos muita ação negativa.
Não há justiça nenhuma no carma, como não há justiça na água ferver porque foi esquentada. Justiça é um atributo pessoal — se você é teísta, então o mundo espelha algo da justiça de sua divindade. Mas no budismo o mundo não tem características pessoais. Ele não espelha nenhum tipo de qualidade que um ser inteligente poderia ter.
Carma é um ensinamento interessante por duas razões: uma, ele não é tão importante quanto parece. Carma, e o ensinamento sobre carma, faz parte da ignorância, da delusão. É um ensinamento temporário, para seres com problemas mais fundamentais. Claro, nós estamos nessa classe, e faz todo sentido refletir sobre carma. Mas desde o princípio é bom saber que o carma, todo o carma, pertence à mente ignorante. Em outras palavras, o carma é vazio, não tem existência intrínseca, não é independente, é temporário, é composto. Tendo isso em mente, o segundo aspecto interessante é que só um Buda entende carma. Os textos dizem que um Buda é capaz de olhar para a cauda de um pavão e saber a causa de cada uma das cores. Ou seja, ele entende como cada ação passada causou aquele DNA especifico e não outro. Os animais também geram carma? Se sim, como ele funciona? Como o animal sabe o que está fazendo?
Animais geram carma porque possuem aversão, desejo e ignorância. O mais difícil é entender como certos animais gerariam carma positivo — e há alguns que geram praticamente nenhum carma positivo em toda sua existência — portanto é uma circunstância bem triste, é quase como um gatilho pronto para renascimentos ainda inferiores. Mas, por sorte, o carma é impermanente, e uma hora, após centenas de vidas em renascimentos inferiores, pode começar uma curva ascendente.
Não saber o que se está fazendo faz parte da geração de carma ruim em qualquer dos reinos. Um ser humano não sabe também o que está fazendo quando cria as causas de sofrimento futuro. Se soubesse, não agiria assim. Sabedoria é bem diferente de racionalidade, e os animais possuem alguma racionalidade, ainda que rudimentar.
A ideia de que os animais são irracionais é teísta, embasada na ideia de que alguns seres são criados diferentes. Se a pessoa acredita na evolução das espécies, então ela é obrigada a concordar que não existe nada essencialmente diferente entre um homem e um outro mamífero qualquer, ou pelo menos um outro ser qualquer com um cérebro razoavelmente desenvolvido. Não é uma diferença qualitativa, é uma diferença quantitativa. Gato ronronando gera bom carma?
O ronronado ainda não é bem entendido, mas se o gato, como alguns pesquisadores dizem, está expressando algo como "não sou um perigo", sim, ele está gerando mérito. Tudo depende da intenção do gato — e sim, o gato pode não ter grande clareza de sua intenção, e por isso a chamamos de "instinto", ainda assim esse instinto foi criado por uma energia de hábito, ao longo de muitas vidas — por isso é um renascimento relativamente ruim, já que não há a menor possibilidade do gato (nesta sua vida de gato) refletir sobre suas ações e tentar direcionar seus hábitos. Ainda assim, facilmente reparamos que há gatos de melhor ou pior índole — mesmo que tenham recebido basicamente o mesmo tratamento quando filhotes. Isso indica que há diversidade genética, mas que mais do que isso, há diversidade na formação de hábitos (que segundo o budismo, é o que está por trás de um ser surgir em meio a uma determinada configuração genética e ambiental). A simpatia que uma pessoa tem por uma espécie animal em detrimento de outras pode ter relação com vidas passadas?
Sim, mas não necessariamente porque ela renasceu mais como aquele animal — pode simplesmente ter desenvolvido o hábito, como pode ter desenvolvido o hábito nessa vida. Vírus e bactérias que provocam doenças são dignos de compaixão?
Só seres sencientes são dignos de compaixão. No momento, em geral, não se considera seres sem um sistema nervoso sencientes — mas há alguns professores budistas que dizem que já que uma bactéria vai atrás de alimento e elimina dejetos e evita o que não é bom para ela — isso já seria "proto-" apego e aversão, e assim, trataria-se de um ser digno de compaixão. De modo geral, no budismo, seres que não sentem não são dignos de compaixão. Plantas não são dignas de compaixão (mas isso não quer dizer que seja sempre certo matá-las). Bactérias são um caso ainda não resolvido, mas como no budismo há uma série de seres sencientes sutis e minúsculos, então, embora não sejam os mesmos, é adequado sentir compaixão pelos incontáveis seres em qualquer milímetro cúbico de ar. Se as bactérias por acaso forem sencientes, podemos incluí-las. Atrelar o caráter de senciente à presença de um sistema nervoso não é materialista? Plantas não são dignas de compaixão?! Eu pensava que existia alguma evidência de que elas têm sentimentos. Especialmente as plantas carnívoras. Se uma colônia de cupins está destruindo uma árvore de 200 anos, de que lado ficar? Simpatizo mais com a árvore.
Esse critério é o máximo que a ciência atual pode prover. Podemos utilizá-lo "com um grão de sal". O critério budista efetivo é a verificação empírica, através da prática de meditação.
As plantas carnívoras são um objeto de debate no budismo, mas ainda há consenso de que plantas não tem sensações, muito menos sentimentos — e portanto não são seres sencientes, e não são objetos apropriados de compaixão. Os cupins, por outro lado, com certeza são, ainda mais um número grande deles. Li que as plantas possuem um sistema nervoso químico, e que seres unicelulares agem como uma grande rede consciente. Para mim, tudo é digno de compaixão. Porque não seria assim?
Essas teorias não são comprovadas. Se forem, com certeza será útil pensar dessa forma.
Já que não há definição científica de consciência — nem uma boa definição de "sentimento" fora da área da psicologia (em que você precisa de expressões como a fala e os gestos). Então... o melhor conselho é que, se você quiser ter compaixão até mesmo por uma mesa, tudo bem, pode ajudar no seu treinamento de compaixão. Se todo mau sofrido é consequência de ações passadas, como se deram os primeiros crimes?
No sentido relativo, todo sofrimento vem de ações passadas. No sentido absoluto, não há os três tempos de passado presente e futuro. O Buda não respondia perguntas sobre causas primeiras porque elas invariavelmente não levam a nada.
O Buda aconselhava a analisar, na nossa experiência diária, se produzir sofrimento aos outros não causava sofrimento em nós mesmos, e daí ampliar indefinidamente para o passado e para o futuro. Indefinidamente é uma boa palavra. Não há primeiras causas no budismo, porque um sonho não é algo autocontido. Você já viu um sonho começar? Quando você acorda, você lembra uma experiência, e lembra uma sequência de fatos, mas não lembra como, quando e porque esse sonho começou. E de fato, a hora no sonho é a mesma hora acordado?
Para o budismo tudo que diz respeito a carma ocorre no tecido do sonho. Com relação a sua resposta à "tudo é carma?" Se todo mal sofrido hoje é consequência de más ações passadas, os que praticam crimes hoje são impelidos por alguma força? Ou seja, são instrumentos do carma?
Não. O carma é a ação em si, e a ação ocorre por uma combinação de fatores externos e internos — mas o fator determinante não é causal, é de, propriamente, um agente incondicionado. Se tudo fosse condicionado, não haveria possibilidade de alguém acabar com carma. Assim, por mais que as circunstâncias externas e internas levem alguém a cometer algo, existe sempre uma liberdade, que é a natureza de Buda. Apenas um Buda revelou essa natureza completamente, e portanto é completamente livre, e não gera carma algum. Todos os meus impulsos são devido a carmas passados? É possível agir sem ser influenciado pelo carma?
Quanto a primeira pergunta: não! De forma alguma. Seus impulsos são em certa medida moldados por hábitos e pelo resultado de carmas passados, mas não essencialmente. Você sempre possui a liberdade de não agir de acordo com os hábitos. Se suas ações fossem determinadas simplesmente pelas ações passadas, então não haveria necessidade de prática — que é o que o liberta de seus impulsos habituais e permite liberdade de ação. Nesse caso as pessoas simplesmente não poderiam se libertar do samsara, isto é, não haveria Budas. Um Buda é exatamente alguém totalmente livre de impulsos do hábito, e que age totalmente livre. Ele não possui carma nenhum.
Então é possível agir além dos impulsos, os impulsos não são totalmente determinados, e o carma pode ser esgotado. Mas, na nossa situação atual, não temos liberdade e agimos por impulsos, que são em certo grau determinados, e portanto não temos liberdade. Aquilo que o fumante chama de "liberdade", no budismo é chamado de aprisionamento. Tem a aparência de uma escolha deliberada, mas não é. Existe motivação e ação dentro do samsara que não surja exclusivamente do carma? É correto considerar que quanto menos condicionados, mais conseguimos agir por liberdade ou toda ação é necessariamente cármica?
Existe uma confusão entre carma-ação e carma-resultado. O carma resultado não influencia decisivamente nas ações. Existe sempre liberdade. A ação pode ser filtrada ou condicionada pelas aflições mentais, mas sempre existe liberdade perante as aflições mentais — só não é muito frequente, para nós, que temos prática ruim, exercê-la.
Então sim, quanto menos condicionados pelos hábitos e aflições, mais livre é a ação — até a ação iluminada de um Buda, que é totalmente livre de aflições, hábitos e condicionamentos. Esse potencial já está presente em todos os seres, mas em geral não é exercido. Não há justiça e vingança divinas (nêmesis) no Budismo?
Não. O carma é absolutamente impessoal.
Todos os seres ignorantes, é claro, podem cometer vingança, inclusive deuses mundanos. Mas isto os fará sofrer no futuro, e quem é vítima dessa "vingança" só tem essa fragilidade por carmas que cometeu no passado — como acontece entre seres humanos.
Justiça é uma prática budista chamada "equanimidade". Não é uma característica impessoal das coisas. A equanimidade implica ter compaixão por todos os seres que sofrem, independentemente de gostarmos ou não deles.
O carma não é justo, ele é meramente exato. Então, se há alguma justiça no budismo, é uma das qualidades a desenvolver, não algo que existe e a que estamos simplesmente sujeitos. Quem faz a contabilidade do carma?
Se você esquentar a água, ela ferve. Não precisa nenhum intermediário, tal como um grupo de anjos, para fazer cada uma das bolhas. A menos que se pense no universo como dotado de um propósito moral, aplicando uma justiça do tipo "olho por olho, dente por dente", qual é o propósito de afirmar a relação causal entre específicos (matei, serei morto, ou viverei uma vida mais curta; cometi conduta sexual imprópria, nascerei em lugares sujos, com parceiros desagradáveis, etc.)?
Tudo que pode ser explicado quanto a isso, o nexo causal ético como reconhecido pelos meditadores no budismo, é, como todo o resto do budismo, verificado empiricamente através da prática.
Uma situação particular não é normalmente reconhecida como causada por outra situação particular — só para quem possui onisciência. Eu só posso inferir, de forma geral, que se sofro, é porque causei sofrimento. Os sofrimentos específicos e as causas específicas, só podem ser reconhecidos através de uma "memória total", coisa que só um Buda possui. E generalizações são só isso: generalizações. Isto é, de forma geral conduta sexual imprópria provoca renascimento em lugares sujos. Nem sempre, mas os professores do passado afirmaram haver uma tendência de correlação (no caso mais que correlação, algum nexo causal) entre as duas coisas.
No budismo não há deus ou teologia subjacente ao processo cármico: dentro do contexto do carma, positivo ou negativo, tudo é sofrimento. O Buda não inventou nem criou o mundo e as regras da ignorância. A ignorância opera totalmente independentemente da vontade do Buda.
Se você reparar, outras pessoas fazem perguntas exatamente ao estilo que você está fazendo, isto é, "mas porque o budismo explica as coisas assim, isso não soa bem": do ponto de vista do budismo, ele não tem responsabilidade, nem o Buda, sobre como as coisas são. Apenas há uma depuração epistêmica dos modos de observação (é só através do reconhecimento direto das operações da mente que o nexo causal ético pode ser reconhecido). Agora, se não soa correto para você, o budismo não tem responsabilidade nenhuma sobre isso. Ou você desiste de perseguir as únicas ferramentas epistêmicas que permitiriam esse exame, ou você as executa. Do jeito que você fala, me parece que você considera essas ideias absurdas ao ponto de não valerem o exame de, supostamente, várias vidas de meditação. Então, não há muito que se possa fazer.
O Buda (e o budismo por extensão) não tem responsabilidade nenhuma sobre como as coisas são. As pessoas em contato com tradições outras pensam que, como há um deus criador, etc., justiça divina, um plano para as coisas, etc., que a explicação budista também implique essas coisas, e esteja talvez diretamente ligada a elas. O Buda não é um "grande arquiteto", não tem responsabilidade nenhuma senão sobre como aliviar o sofrimento dos seres. O que se apresenta, não foi o Buda que fez, a sua ignorância, não foi o Buda que produziu. O que o Buda apresenta é só uma identificação objetiva dos fatos através da depuração de ferramentas epistêmicas (meditação). Mas porque causas produzem efeitos correspondentes? Como essa determinação se forma?
Na causalidade material é fácil de acreditar, não? Se você plantar uma semente de macieira, vai nascer maçã, e não jiló.
Bom, a causalidade material é subsumida na causalidade ética. Isto é, um pequeno conjunto de coisas (como todo o nosso universo material) parece se portar de forma relativamente coerente (se isso, então aquilo), mas isso se deve ao fato de nossas estruturas mentais produzirem esse tipo de sonho de materialidade.
Em outras palavras, a explicação funcional (semente de maçã, macieira) é um subconjunto pequeno da explicação ética: os seres humanos e as maçãs existirem num mesmo mundo e terem conexão, e uma pessoa particular ter acesso a uma maçã particular num momento particular. Essa explicação não pode ser fornecida de forma funcional, porque envolve agência.
Porém há uma analogia entre a causalidade funcional e a causalidade ética, elas não são de forma alguma a mesma coisa, e nem se portam exatamente da mesma forma: mas elas tem o mesmo tipo de coerência causal. Isto é, resultados quaisquer não surgem de uma ação determinada. De uma ação determinada, surgem resultados determinados. O nexo opera exatamente da mesma forma.
Como os mundos todos, e todas as conexões materiais, são pequenos subconjuntos das conexões éticas, isto é, o mundo material é um pequeno subconjunto do mundo mental, fica fácil entender que as relações causais também existem, de forma análoga, nas conexões que não são meramente funcionais. Em outras palavras, não pode nascer um tipo muito diferente de sofrimento para o agente um sofrimento causado por esse agente. Quer dizer, algumas vezes pode ser difícil inferir uma causa em particular a partir de um efeito, porque, da mesma forma que com o mundo material, nem todas as variáveis são sempre conhecidas. Mas pela observação, mesmo sem entender porque, podemos inferir que de determinados elementos, outros elementos particulares surgem, e nunca certos outros elementos particulares.
Num sentido último, o nexo causal (seja ele material ou o mais amplo, ligado à mente), é fruto da ignorância. As estruturas da ignorância possuem um efeito de retroalimentação, que é a própria reificação ou teimosia, a renitência dos aspectos causais. De fato, o fato da ignorância ser previsível (não exatamente racional, mas bastante determinada), é o que permite que ela seja reconhecida e dissolvida. Se a ignorância fosse um processo totalmente livre, ela não geraria o carma, e nem a poderíamos identificar como ignorância. É porque a ignorância se estrutura que uma estrutura pode ser reconhecida e derrubada. Se ela fosse apenas uma massa amorfa de qualquer coisa (como algumas pessoas inferem a realidade seja, e são chamadas de "niilistas" pelo budismo), não haveria sentido em qualquer tipo de ação, a favor ou contra essa massa amorfa. Como há estrutura, podemos nos rebelar contra a ignorância, e isso é o darma. Mas eu não consigo reconhecer a causa de um resultado cármico, embora eu consiga reconhecer causas materiais, como uma semente de maçã produzir uma macieira. Por que isso é assim?
Claro, eu e você podemos observar que derrubar um copo de vidro da mesa, 99% das vezes, vai produzir a quebra do copo. Veja aí que há uma generalização, porque em alguns casos o copo, dependendo da construção, e também do material que encontra no chão, não vai quebrar se cair de uma determinada forma especifica. Mas de forma geral, essa é uma causalidade imediata. Nada tem a ver com moral.
Quanto tempo levou para os seres humanos entenderem que era a terra que girava em torno do sol? Rádio e eletromagnetismo, quanto tempo demorou para observar, gerar os instrumentos, etc., para detectar essas coisas e entender suas causalidades puramente materiais?
Então, é claro, sem shamata, da mesma forma que sem um laboratório, você consegue examinar parte bem pequena da causalidade (geralmente puramente material ou sensorial) que 1) opera dentro do tempo que você consegue manter atenção; 2) dentro do escopo que os sentidos imediatos, pouco cultivados e sem treinamento, podem exibir. Evidentemente um dos resultados automáticos de shamata é lembrar vidas passadas e conseguir discernir padrões que a pessoa normalmente não discerne.
Tsongkhapa disse que é como ver uma tapeçaria detalhada numa sala escura. Uma pessoa sem meditação é como alguém nessa sala com uma vela fraca e oscilante. Através de shamata se consegue aumentar a luz dentro da sala (a qualidade da atenção), e conseguir uma luz não oscilante (estabilidade). Então se consegue ver a tal tapeçaria detalhada. Causalidade material como ser capaz de apenas ver que ali há imagem qualquer, e que se está numa sala. Conseguir ver o carma (existe uma expressão no darma que é "o olho que vê o carma") exige uma mente muito estável e clara: do tipo que vê o que está no quadro, e não só isso, que é capaz de interpretar a imagem no quadro, reconhecer os rostos, ocorrências, entender os sentimentos, as intenções, etc.
Você falar com meditadores é falar com alguém que tem um laboratório e tem um treinamento no uso desse laboratório. Ora, eu não sei medir a glicose no sangue, mas entendo que é possível fazer isso. Não sei nem como exatamente, que tipo de reagente, que tipo de processo, examina a glicose no sangue e fornece uma porcentagem. 500 anos atrás, ninguém imaginava isso ou a possibilidade disso. Hoje qualquer um acha banal. Da mesma forma, numa tradição de contempladores, há coisas que são observadas de forma banal, empiricamente, por gente que estabilizou muito a mente e que é, para a mente, como o pessoal que sei lá, usa um acelerador de partículas ou MRI, ou consegue mapear todo o DNA de um ser vivo... está muito além do que eu ou você conseguimos sequer imaginar ser possível, porque é a mente que cria todas essas aparências — então na verdade todos esses fenômenos são menos complexos e menos elaborados, e são subsumidos, sobre os eventos mentais que um meditador que medita há varias vidas, reconhece.
O Buda conseguia, por exemplo, saber que a dor de cabeça que ele sentia naquele exato momento se devia ao evento específico dele uma vez ter assistido pescadores capturarem alguns peixes e ele ter um leve sentimento de regozijo com os peixes apanhados. E também era capaz de estabelecer casos gerais, como o copo que normalmente quebra a cair de determinada altura, mas nem sempre. Por exemplo, fala rude provoca nascer em locais com acesso difícil, como com estradas pedregosas. Sempre? Não. Mas há uma tendência entre essas duas coisas terem uma relação causal, da mesma forma que, no mundo material, muitas vezes relações inesperadas ou contraintuitivas frequentemente ocorrem, e algumas vezes leva um tempo para entender que, por exemplo, o problema de morrerem tantos bebês ao nascer se deve a não fazer assepsia. Depois é um ovo de colombo, e a relação causal é entendida pela existência de microorganismos, mas antes desse fato, a ligação entre limpeza e infecção não é óbvia.
E basta olhar a adaptação natural das espécies que você vê um exemplo de não carma, mas complexa causa material. Cada um dos elementos em cada uma das espécies teve uma função adaptativa em algum momento. Ninguém sabe exatamente porque o pavão precisou todas aquelas cores na cauda, mas ele não as desenvolveu por acaso: na disputa por recursos reprodutivos, naquela espécie, se mostrou vantajoso surgir aquele fenômeno. O carma é bem mais complexo e bem mais amplo que essa mera causalidade natural, que já é bastante complexa. Mas padrões podem ser reconhecidos. Então cada ser senciente possui um carma próprio? Ou não existe uma "particularidade" no carma?
O carma é o que produz particularidades e generalidades. Os seres só "possuem" carma no modo de falar. Eles são a projeção de seu próprio carma, exceto sua essência, que é a natureza de buda. É uma essência livre de essência, e, claro, livre de carma. No caso das catástrofes naturais, elas são consideradas resultados cármicos para o Budismo?
Tudo que acontece e é percebido como negativo, neutro ou positivo é resultado de carma. Não existe nada que é percebido como positivo, neutro ou negativo que não seja resultado de ações positivas, neutras e negativas, respectivamente. Existe uma explicação no Budismo para as causas de grandes catástrofes naturais que matam milhares de pessoas?
Carma coletivo. Outro dia eu estava vendo um desses documentários de vida animal, e lá tinha um cardume de piranhas devorando um peixe. Também quando uma multidão, num estádio de futebol, por exemplo, regozija perante um ato de violência, todos acumulam o mesmo carma — ou um carma semelhante em certa medida, e diferente na medida em que cada pessoa tem uma percepção ou intensidade ligeiramente diferente com relação ao mesmo acontecimento. Um carma coletivo — como por exemplo, uma universidade que entra em greve e os alunos, servidores e professores são prejudicados — é por conta de carma negativo em vidas passadas de todas as pessoas envolvidas?
Ou nessa mesma vida. Se há sofrimento com a experiência, o carma é negativo. Se há alívio ou felicidade, o carma é positivo. Se há ambas as coisas, o carma é misto. Se para uma pessoa é uma experiência positiva em curto prazo, negativa no longo prazo, o carma é negativo. Se para outra é negativo no curto prazo, mas positivo no longo prazo, o carma é positivo. É difícil saber, durante a experiência, mesmo havendo felicidade ou sofrimento presentes, se o carma que causou isso foi ruim ou bom. O drama é que muitas vezes a pessoa nem vem a saber, e a maioria das pessoas nem imagina que isto possa estar ligado a carma.
Agora, outro aspecto da questão é que, além de cada pessoa envolvida poder estar passando por uma experiência diversa — e as que possuem a mesma experiência tem um carma mais coletivo, e assim por diante, o que não fica claro é se você está usando a palavra carma no sentido de causa ou resultado. Essa equivocidade é presente algumas vezes na tradição budista mesmo. Mas vamos falar em criar carma (carma propriamente dito, ação intencional), e sofrer carma. Nessa situação alguns criam, outros sofrem. Alguns positivo, outros negativo. É uma situação complexa. As pessoas que causam a greve — o governo, os negociadores, os sindicatos, e assim por diante — tem seus motivos: bons, ruins, neutros. De forma correspondente a cada um dos motivos, um resultado advirá. As pessoas que sofrem a greve, da mesma forma, sofrem o resultado de carmas (ações) bons(as) e ruins, dependendo da experiência atual e da experiência passada, nesta ou em outra vida. A AIDS pode ser consequência de carma coletivo?
Toda consequência similar, possui uma causa similar. Se as pessoas se engajaram em conjunto no exato mesmo ato, ou se apenas no mesmo ato em tempos diferentes, ou se engajaram em conjunto numa desvirtude composta, ao mesmo tempo, mas com atos diferentes... tudo isso determina similaridade, em algum nível. Duas pessoas na fila de atendimento médico partilham carma coletivo, duas pessoas com a mesma doença partilham carma coletivo — em que ponto se dá essa coletividade, é difícil determinar. Mas os resultados, o próprio resultado do carma, é um indício de que que há uma interdependência. Se há simetria na causa, há simetria no resultado — mesmo considerando que pequenas variações são possíveis, dado o vasto carma passado, e diferenciado, de cada um.
Assim, duas pessoas que tem resfriado, ou que tem dois olhos, ou que tem a pele da mesma cor, ou tem uma pintinha na bochecha, assim por diante, partilham algum carma. Os dois resfriados podem ser bem diferentes, e uma delas pode perder o emprego, ou ser atropelada, por ficar sonolenta pelo remédio que tomou, enquanto a outra não sofre nada além do próprio resfriado. Mas alguma coisa em comum elas tem. Um corpo humano é um carma coletivo, já que há muitos outros corpos humanos. A língua portuguesa é o carma coletivo dos que falam português... e assim por diante.
No caso de tragédias repentinas onde muitos são afetados pela mesma coisa fica mais claro pensar "todos eles partilharam uma ação".
Uma vez Dzongsar Khyentse Rinpoche disse que ele e muita gente devem ter prejudicado muito esse tal Dan Brown numa vida passada, para tanta gente acabar lendo o "Código Da Vinci". Eu só vi o filme. Portanto eu posso só ter regozijado enquanto todo esse pessoal que leu o livro apedrejava esse sujeito, e por isso, tanto tempo depois, eu tenho que sofrer por só duas horas. Se o acaso não existe e tudo é consequência do carma acumulado anteriormente, vale a pena, do ponto de vista budista, tomar providências para tentar se proteger do acaso, como contratar seguros e colocar trancas nas portas?
Toda providência é boa, porque estamos nos protegendo das circunstâncias que possam fazer o carma surgir. Por exemplo, não deixamos nossos objetos desprotegidos porque alguém pode os roubar. O objeto ser roubado é ruim para nós, que perdemos o objeto, mas é muito pior para quem rouba — então protegemos o outro de gerar carma. Isso é compaixão.
Em outras palavras, o carma precisa encontrar condições para se manifestar — então se pudermos e enquanto pudermos "calotear" o carma, devemos fazer isso. Inevitavelmente vamos pagar, mas não sabemos quando, nem como. Então é compassivo para com nós mesmos e para com os outros evitar a negligência de criar as condições em que toda a montanha de carma acumulado em infindáveis vidas passadas se manifeste agora. E, da mesma forma, ao gerar carma positivo, criamos condições para a montanha de carma positivo acumulada por eras incontáveis se manifeste o mais prontamente possível.
Não existe proteção quanto ao acaso, mas proteção contra as condições, e, efetivamente, contra o próprio carma — contra gerar o carma, e contra permitir que ele se manifeste enquanto não temos condições de lidar com ele — de preferência o mais tarde possível. Você diz que criação é incompatível com a interdependência. Isso parece estranho porque interdependência aparece no pensamento de filósofos teístas como Leibniz. As coisas não podem ser interdependentes em razão de alguém as ter planejado assim?
Não creio que a interdependência apareça em qualquer outro sistema de pensamento fora do budismo. E, não, se há alguém planejando independentemente, não é interdependência, é mera dependência. Levando-se em conta a interdependência, o carma não é sempre fundamentalmente coletivo?
Não, os carmas é que criam as individualidades, inclusive a diferença entre um coletivo e outro. O que se quer dizer com interdependência de um carma é que uma ação afeta todos os seres, e isto está correto. Mas ela afeta todos os seres diferentemente. Também, quando estamos nos referindo ao carma como resultado dessa ação, estamos nos referindo ao agente, e não ao que essa ação resultou a todos os outros seres, e a um ser em particular. O budismo acredita em coincidências ou dá outra explicação para isso?
Não acredita em coincidências, é só carma. O acaso não existe no Budismo?
Nas variantes realistas do budismo existe uma causalidade independente, física — mas qualquer sofrimento ainda assim possui causas e não surge do nada.
As variantes realistas do budismo são consideradas inferiores pelo mahayana. No mahayana todo e qualquer fenômeno é ligado a todos os outros, e há intercausação entre todos eles. Portanto, não há espaço para o acaso.
É preciso frisar, no entanto, que não há determinação nas ações dos seres. A natureza de buda é totalmente indeterminada e acausal, e assim as ações não são frutos do acaso, mas tampouco são frutos de determinação. Quanto as pessoas que nascem em lugares onde o budismo é minoritário e acabam se tornando budistas. Elas descobrem e se aproximam do budismo por acaso ou estão predestinadas a isso?
Para o budismo não existem os extremos de acaso ou predestinação. Nem o acaso nem o destino, mas o mérito amealhado através do cultivo de hábitos e ações positivas ao longo de várias vidas é o que produz circunstâncias felizes. A interdependência pode ser cultivada, e no caso do budismo, há o cultivo deliberado da interdependência auspiciosa com os ensinamentos. Assim, mesmo numa cultura onde o budismo é predominante, é o conjunto de virtude amealhada através de ações e hábitos positivos, e a interdependência cuidadosamente cultivada com os ensinamentos, que vai permitir que a pessoa não apenas participe de sua cultura como um observador indiferente, mas que se aprofunde nos ensinamentos. Evidentemente, numa cultura que não promove esses valores, isso é ainda mais raro, mas da mesma forma indica que a interdependência foi cultivada. O que quer dizer no budismo a palavra "interdependência"?
De uma forma simples, significa que cada evento está interconectado com todos os outros. "Criar uma interdependência" significa agir de forma que um padrão se forme. Portanto, se a pessoa quer ter conexão com alguém, dar um presente a essa pessoa é uma forma de ser lembrado. E mesmo quando não for lembrado, existe aquela ação e suas consequências.
Há os doze elos da originação interdependente, e muitos ensinamentos profundos sobre interdependência. No fundo, interdependência é a própria vacuidade, o fato de que não existem eventos discretos, ou uma essência para os eventos. O sonho surge por interdependência, e interdependências auspiciosas nos fazem felizes, enquanto interdependências inauspiciosas nos fazem sofrer.
Pensando numa resposta anterior, em que alguém falava em destino ou acaso, de fato é importante entender que a interdependência não cai em nenhum desses extremos. Esse é um entendimento bem raro — a maioria de nós opera como se as coisas ocorressem aleatoriamente, ou já estivessem registradas em pedra. O budismo chama esses dois extremos de niilismo e eternalismo — os termos só são usados dessa forma por budistas. Num desses extremos o agente é vítima de uma construção impessoal, e no outro o agente é vítima de uma construção pessoal, como de um deus. Em ambos os casos, não há possibilidade de responsabilidade, moralidade ou qualquer coisa do tipo. É por isso que os cristãos precisam inventar o conceito de livre-arbítrio, caso contrário o "problema do mal" (como Deus faria os outros sofrerem) não teria solução. No budismo não há sequer livre-arbítrio (que ocorre num mundo determinado por deus — exceto em termos das consciências que ele criou, estas sim, livres). No budismo, como não há criação, não há nada determinado, ainda assim, as coisas se relacionam umas com as outras através de padrões "cicatrizes" que tendem a se solidificar, e que assim produzem os mundos e seus aprisionamentos. Não existe uma coisa que esteja por trás de todas as outras, ou tenha precedência de qualquer tipo. Pode se falar em "criação contínua", mas mesmo isso é forçar a barra.
Os doze elos são ensinados para explicar como a mente que é naturalmente lúcida acaba sucumbindo a um processo de delusão que produz os nascimentos, em particular, os nascimentos condicionados, embasados em tendências habituais e aflições mentais. Se eu dirigir carro ou outro transporte que polui, não estaria eu produzindo carma negativo?
Mesmo que ele não polua, mesmo que você esteja puxando um carro de coleta de papel e a roda passe por uma formiga. Na medida em que sofrimento é criado, carma se forma. A base do carma é a intenção, nesse caso, a própria negligência ou indiferença é a base de intenção para a formação do carma. A negligência é considerada intencional e só surge através do esforço — é contra-intuitivo, mas é a visão do budismo. A compaixão, por outro lado, é sem esforço. Nossos hábitos são tais que vivenciamos, na nossa perspectiva superficial, o oposto.
Outras coisas que geram carma (normalmente negativo) são: caminhar, se mover, respirar, comer, vestir, falar, etc. O nosso corpo humano é de extremamente alta manutenção cármica, o que significa que precisamos gerar muito mais virtude do que estamos consumindo. Um segundo de experiência humana desperdiçada em atividades neutras ou negativas consome quantidades tais de virtudes passadas, e cria tais condições de sofrimento para tantos seres, num âmbito tão vasto espaço-temporal, que a única solução é produzir virtude de forma ainda mais vasta. Segundo os ensinamentos budistas, o ser humano é capaz de produzir virtude como nenhum outro ser — portanto tal atitude é possível a qualquer um de nós. Então não há saída para o carma?
Através da prática da virtude de forma vasta, todos os seres que são constantemente prejudicados pela nossa mera existência como seres humanos se conectarão com um caminho virtuoso. Sem praticar virtude, não há saída.
Enquanto temos nosso corpo, nosso corpo gera impacto. Se esse impacto vai ser predominantemente positivo ou negativo, é nossa prerrogativa — nós decidimos. Algum impacto negativo sempre será gerado enquanto houver um corpo — assim é imprescindível gerar virtude de forma vasta. De forma que esse impacto negativo se torne irrisório perante o benefício gerado. Mau carma futuro pode agir no presente?
Não, se você ainda não agiu não tem carma. Carma é ação. O carma funciona no tecido da própria ilusão de coerência causal.
Porém, como o passado é indefinidamente enorme, e a quantidade de ações passadas boas e ruins é incomensurável, qualquer coisa que acontecerá no futuro pode já ter acontecido, e assim, o seu carma presente pode guardar essa semelhança — porque nunca sabemos quando as causas e condições vão se manifestar para que uma avalanche de carma positivo ou negativo do passado se manifeste. É possível gerar sofrimento mesmo sem aflições mentais?
Sofrimento aparente e temporário, sim. A longo prazo, na soma total das coisas, sem aflições mentais, não há sofrimento. Esse sofrimento aparente e temporário se dá pelo carma passado do indivíduo, que se manifesta devido as condições das ações, mesmo que feitas sem aflições. Quando parece que alguém nunca se dá bem com relacionamentos amorosos pode ser por causa de carma negativo em outras vidas?
Sim, e mais do que isso, quando discute-se as desvirtudes, a desvirtude de comportamento sexual inadequado produz esse resultado, entre outros.
Em outras palavras, uma pessoa ao causar sofrimento a si e a outros através da ação sexual, no futuro encontra sofrimentos tais como renascimento nos infernos, e, em casos mais suaves, parceiros desagradáveis e instáveis em vidas futuras — bem como nascer em locais sujos e poluídos. Amizades extremamente unidas sem nenhuma razão aparente (como características semelhantes etc.) pode ser consequência de geração de carma positivo em vidas passadas?
Sim, todas as pessoas que tem simpatia por nós, se temos bom carma, foram seres a quem beneficiamos em vidas passadas. Se temos mau carma, em algumas circunstâncias é possível que tenhamos simpatia por aqueles que prejudicamos, e que vão nos fazer sofrer muito possivelmente.
Em suma: qualquer sensação agradável ou pequena felicidade, de qualquer tipo, em qualquer circunstância, adveio de produzir sensações agradáveis e pequenas felicidades a outros seres em vidas passadas ou nessa vida. "Má sorte" ou "boa sorte", como podem estes serem resultados de minha ações passadas?
Com a interdependência, não há lugar para o fortuito. Tudo que ocorre está interligado com todo o resto. Segundo os ensinamentos, a causalidade, que brota da ignorância, produz resultados de acordo com as ações. Assim, se você causa sofrimento, você sofre. Se você traz felicidade, você vivencia felicidade. Como explicar a existência de pessoas que tem características muito positivas misturadas a outras muito negativas?
Todos nós temos potencial para qualquer combinação possível de hábitos e tendências, e qualquer um de nós tem o potencial de revelar as qualidades inerentes da natureza de buda. Qualquer situação em termos de hábitos é adventícia e temporária. Mas e quando simultaneamente causamos felicidade para alguém e sofrimento para outro?
Temos um carma misto, e, se nas exatas mesmas proporções, neutro. Nesse caso, só perdemos tempo. Por isso carma neutro é considerado carma negativo. Ganhar na loteria ou num outro jogo de azar qualquer é fruto de bom carma, mau carma ou não dá pra saber?
Num caso específico, com sabedoria, dá para saber. Como pode ser ambas as coisas — e carma misto, um pouco bom e um pouco ruim — , portanto, no geral, não dá para saber.
Retorne ao índice. Envie suas perguntas, correções e sugestões para padma.dorje@gmail.com. Última alteração em 2017-10-28 07:09:41.
• Budismo
Perguntas & Respostas
0. Sobre o Autor
1. O que é budismo?
1.1. Budismo e questões contemporâneas
1.2. Adaptações culturais
1.3. Budismo e ciência
1.4. Budismo e filosofia
1.5. Budismo e psicologia
1.6. Budismo e saúde
1.7. Budismo e crenças diversas
2. Como começar
2.1. Formas de budismo
2.2. Hierarquia e estilos de vida
2.3. Compromisso
3. A insatisfatoriedade do samsara
3.1. Apego ao eu
3.2. Aflições mentais
3.3. Carma
3.4. Morte, renascimento, reinos
5. Ética
5.1. Ética prescritiva
5.2. Aborto, pena de morte, eutanásia, suicídio
5.3. Homossexualismo
5.4. Vegetarianismo
5.5. Drogas e álcool
6. Bom coração
7.1. Shamata e vipassana
7.2. Zen
7.3. Práticas do vajrayana
7.4. Práticas avançadas
8. Problemas de praticante
9. Sabedoria
9.1 Perguntas que encobrem a sabedoria
9.2. O resultado: Buda
Glossário
Grupo de Whatasapp (apenas anúncios)
todo conteúdo, design e programação por Eduardo Pinheiro, 2003-2024
(exceto onde esteja explicitamente indicado de outra forma)