3.1. Apego ao eu
Se o eu é não existente, quem se ilumina?
Exatamente, a iluminação não é possível enquanto há a crença de um eu. No Sutra do Diamante isso fica bem claro quando Buda pergunta a Subhuti: "você acha que em algum momento guardei a concepção arbitrária de que atingi algo chamado anuttarasamyaksambodhi (a mais perfeita e completa iluminação)? Não. E é exatamente por isso que pode ser chamada 'anuttarasamyaksambodhi'".
O caminho que é ensinado para alguém que crê no eu é tal que diz "um dia você vai atingir a iluminação", mas esse caminho é um mero expediente. A iluminação não é causal e não ocorre para alguém num ponto no espaço-tempo. Ela é idêntica a sabedoria que reconhece que essas coisas são ilusões, produtos da ignorância. Então, posso dizer que não há um "eu" que atinge a iluminação, pois, até mesmo este "eu" é fruto da luminosidade? E que "iluminação" nada mais é do que uma mera palavra, pois tudo apenas é como é? Liberdade incessante?
Vamos ter que ser mais específicos quanto ao uso da palavra "eu". Quando o Dalai Lama diz "eu comi amendoins", esse eu é um "indexical", um dêitico, na forma de palavra, e que se refere basicamente ao que você, interlocutor, entende pelo Dalai Lama. Quando nós dizemos para nós mesmos "eu estou perdido", quando uma situação muito grave ocorre (ou "eu sou o máximo", ou "eu me dei bem", quando as coisas vão bem), esse eu extremamente prejudicial, é um engano muito grande — ou seja, não é um "eu" que falamos apenas para informar os outros, é um "eu" que essencialmente reifica a nós mesmos como tendo uma coisa ilusória chamada "eu" (isso independe se a expressão em voz alta sai para nós ou para os outros, mas tem a ver com a intenção da expressão — se é algo apenas informativo, para outro, ou se solidifica algo que não existe). Depois ainda há modalidades de eu que elaboram sobre esse engano, como "alma", "a minha identidade", "os meus gostos", "o que me faz mais eu" e assim por diante. Essas formas de eu são simplesmente enganos ordinário — com o problema de estarem sobrepostos ao engano mais grave e o encobrimos. São erros semelhantes a quando erramos um cálculo, ou quando tropeçamos, ou nos perdemos andando de carro — mas como se desse erro, sem nós sabermos, dependesse a vida de um cachorrinho.
Estes erros secundários são tão luminosos, ou tão pouco luminosos, melhor dizendo, quanto essas ocorrências. Já o eu que é um simples "indexical", que usamos para o entendimento dos outros, esse não tem problema nenhum. Mesmo Budas se referem a si mesmos.
O problema do eu reificado, o eu a que nos apegamos, aquele que é um engano completo, é que ele é parte e coadjuvante, aliás, é o protagonista exatamente da reificação do sonho. Então ele é o elemento crucial do nosso não reconhecimento da liberdade incessante. Esse eu fabricado, que nunca existiu nem nunca vai existir, é que precisa ser reconhecido como não existente. Em outras palavras, a crença nele, e o subsequente apego por ele, é o que produz todo o sofrimento. Se uma pessoa quer sofrer, se justificando "tudo é luminosidade", então ela pode acreditar cada vez mais nesse eu que isso vai funcionar como ela quer. Ela vai sofrer cada vez mais. Mas se ela está usando esse "tudo é luminosidade" como uma desculpa, então é melhor ela ver as coisas como elas são e de fato experimentar essa luminosidade, que é totalmente desprovida de uma essência, e que portanto não se engana. O sonho não tem sonhador?
O sonho é causado pela ignorância do reconhecimento da ausência de um eu inerente a pessoas e uma essência inerente aos fenômenos. Assim, o eu é uma criação do sonho. O estado lúcido, acordado, não tem um "eu" acordado.
De fato, geralmente a ignorância é representada por um porco. Como é a ignorância que produz as muitas aparências e a consequente reificação, você poderia dizer que o criador é o porco. Mas isso é apenas alegórico, não tem nenhum porco verdadeiro — assim como a ignorância é apenas um estado temporário de não reconhecimento, e não uma coisa que exista verdadeiramente. Se estamos sonhando e o "eu" é um elemento do sonho, quem está sonhando?
O sonho é uma manifestação espontânea da interdependência, sem centro ou periferia. O não reconhecimento do sonho, pela liberdade que exerce a liberdade de se aprisionar e de "jogar a chave fora", esquecer-se disso, gera o engano que vai produzir o autoengano, que vai produzir a noção triplamente equivocada de um eu. Ao reconhecer a essência vazia dessas três ignorâncias (apego ao eu, reificação separativa e não reconhecimento do sonho), a mandala do Buda é revelada. O que é este autoengano?
Acreditar-se e ver-se como não Buda, livre de uma identidade independente e livre de operar num mundo com fenômenos que surgem como independentes, isto é, livre de ignorância. Como isto não é uma mera crença, mas um hábito, para elimitar este hábito existe a prática do darma. Pode falar mais sobre "as três ignorâncias"? Entendi que existe uma sequência que começa com o não reconhecimento do sonho, mas reificação separativa e apego ao ego acontecem simultaneamente, um reforçando o outro?
Os três estão em sequência — alguns seres no samsara, devas do reino da não forma, só têm a mais sutil reificação do eu (é semelhante ao que seria iluminação para alguns hindus, mas um estado de ignorância para os budistas). Outros, só tem a separatividade sutil, e não a separatividade grosseira de um eu. E, no reino humano, ainda há os filósofos, que dão um nome bonito para a separatividade grosseira, tal como "alma", e criam ainda um quarto nível de reificação, aí através dos conceitos.
A diferença entre o eu e a mera separatividade é dos elos 2-10. Isto é, formações mentais, consciência, nome-forma, interfaces dos sentidos, contato, preferências, ânsia, resultados e enfim, concepção-nascimento (num mundo). O eu só se forma no décimo elo. Nos elos anteriores há diversas formas de separatividade cada vez mais grosseiras. O primeiro elo, ignorância, implica separatividade, localidade, temporalidade e uma espécie de atraso, um "delay", que está ligado a responsividade, fixação e negligência (porque se fixa em algo, perde algum outro algo, porque se fixa em algo que é impermanente, porque é separativo, exige uma resposta, exige uma atividade). Portanto o sofrimento já começa no primeiro elo.
São quase como nomes para "ignorância": não reconhecimento do estado natural, reificação, separatividade, responsividade, tempo, espaço, descompasso, eu, cansaço, sofrimento, alma, não reconhecimento do sofrimento, perda de tempo, falta de sentido, desespero, depressão. A crença de um "eu" nada mais é do que a ter apego e seguir cegamente a todos os processos sensoriais? É também crer em um "eu" que seja independente de outros fatores? A clareza deste processo enganoso é a iluminação?
Não, a crença num eu não é apenas ter apego e seguir processos sensoriais.
Acreditar e se apegar a uma noção de identidade separada, contínua é a raiz do sofrimento.
Clareza com relação a esse processo permite que a pessoa eventualmente faça prática que desvincule os hábitos de reificação do eu, que são muito mais profundos do que opiniões e ideias que a pessoa possa ter sobre o eu.
Se ela através da prática desata esses hábitos, então ela atinge liberdade do sofrimento, mas não as qualidades iluminadas. Portanto ela atinge ou o estado de arhat ou o estado de um bodisatva de 8º nível. Isto é, ter clareza não é suficiente para desatar os hábitos, é preciso praticar, e realizada a prática (os hábitos serem dissolvidos) não é suficiente para a iluminação, mas é uma realização espiritual considerável. Se não há um "eu" o que é então a sensação muito forte da minha presença que percebo na meditação?
Fora da meditação também, muito forte, né? Percebo bastante, o tempo todo. Acho que percebemos mais na meditação porque a meditação é um ataque direto a essa sensação, então ela aparece mais forte, com todos os ardis. No budismo chama-se "ignorância" e é isso que se busca eliminar, já que é a raiz de todo sofrimento. Creio que esta "ignorância" seja, literalmente, ignorar a liberdade da mente. Nunca deixaremos de sentir esta "presença de nós mesmos", mas o grande obstáculo não seria em reificar este aspecto como real em si mesmo?
Sim. Nós deixamos de sentir uma presença reificada, abandonamos a noção de sensações, e reconhecemos a presença da própria liberdade. O problema é que, sem o guru, nós podemos facilmente confundir o Buda que nós somos no fundo pelo que somos na superfície como o Buda. Sem alguém para testar nosso autoengano, nada feito. Se o "eu" é vacuidade, mas também surge de forma luminosa, qualquer atitude que vise estritamente ao prazer próprio e que não vise ao benefício dos seres seria pura perda de tempo, certo?
Pode ser mais que perda de tempo, pode ser efetivamente negativa. Mas no mínimo é perda de tempo.
Agora o comentário sobre o eu no início é irrelevante a esse ponto. O eu não é apenas vacuidade, ele é não existente. Todos os fenômenos são vacuidade. Os fenômenos não existentes não são sequer vazios. Se o "eu" é uma ilusão, existe alguma outra "coisa" que torne os seres humanos diferentes uns dos outros?
O carma, a ignorância, a própria ilusão etc. Estas coisas acontecem muito antes de formarmos uma concepção de eu e passarmos a acreditar nela e nos apegar a ela. Quais as maiores implicações ao se aceitar que o ego é uma ilusão?
A compaixão se torna possível.
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