1.4. Budismo e filosofia
Há alguma relação entre a alegoria da caverna do filósofo Platão e o Budismo?
Segundo o budismo todas as coisas estão interligadas, então "alguma" relação existe entre qualquer coisa com qualquer outra coisa. Se existe uma relação especialmente significativa, daí é problemático, porque normalmente o platonismo acredita na existência inerente de formas puras, e o budismo não. O Budismo discorda então da existência de um mundo platônico das ideias onde existem os arquétipos eternos de tudo? Acho que esse é um ponto bastante delicado e controverso.
Não é muito controverso não. O budismo é anti-filosófico — isso parece ser conhecimento geral. Como já disse, não estamos lidando com afirmações sobre as coisas, e sim com um método. Então se alguém vem com a afirmação "há um mundo das ideias", isso é, para o budista, alguém que quer conversar sobre a cor da decoração da flecha que está enfiada em seu olho. A pessoa precisa de tratamento, não discutir unicórnios.
Em outras palavras, como você começa a meditação sobre a impermanência? Com seu próprio corpo, com as coisas ao seu redor, e assim por diante. Você não reifica essas coisas, e muito menos suas ideias. Você pode meditar sobre como algumas pessoas no passado pensaram coisas, e sobre como essas ideias se corromperam com o tempo, e sobre como nem os especialistas concordam sobre o que exatamente se estava querendo dizer. Agora, você não começa pegando um ponto controverso, como o mundo platônico, e como um filósofo, discutindo o que está certo, ou pode estar errado. Essa é a atitude de alguém que não entende a diferença entre um método e a discussão de ideias que podem estar certas ou erradas.
Em outras palavras, o uso da palavra "controverso" acima é estranhamente apropriado, na verdade. Se é controverso, é impermanente. E com o que a pessoa começa a investigar a impermanência, com controvérsias? Eu não preciso meditar sobre a impermanência de unicórnios — embora, se eles existissem, fossem impermanentes. O que eu preciso meditar é sobre as coisas que eu sei ou tomo como reais — não sobre todas as possibilidades do real. Evidentemente, se alguém toma algo como um mundo platônico como real, não vai poder praticar o darma. O darma não se prova a si próprio — ele se mostra na experiência, sem fazer a experiência, não há darma. Então se eu começar considerando a tartaruga cósmica como permanente, como eu nunca vou ter acesso a essa tartaruga cósmica, dificilmente eu vou considerar a impermanência adequadamente. E tudo que pode ser afirmado é uma tartaruga cósmica. E impermanente.
Hoje você escreve as palavras "mundo platônico", e amanhã ninguém vai nem mesmo saber o que é isso. Filosofia é apenas reificação do discurso. Chandrakirti disse que uma pessoa normal tem uma noção de eu natural, que é errônea, mas essa pessoa tem chance de praticar o darma e reconhecer a realidade. Já uma pessoa que além da operação natural através dessa noção habitual de eu inventa uma coisa tal como uma alma — um filósofo — esse não tem chance de colocar nada em prática. Esse infelizmente vai ter que passar muitas vidas discutindo, até que tenha ou não o mérito de ir além do debate, e efetuar experimentos. E, pior, certos pontos do ensinamento budista são inacessíveis e incompreensíveis para quem não fez certos experimentos, e quando um filósofo se apropria deles, ele transforma o darma em um sistema com afirmações. Daí só alguém com muita paciência e capacidade pode desenliçar um tipo assim. É possível saber pela experiência ou pela razão que 1+1=2?
Não é necessário ir muito longe em aritmética básica. Ela é puramente empírica, como toda formalidade ou convencionalidade — mesmo quando fazemos experimentos de pensamento para comprová-la. No budismo o conhecimento se pode dar por inferência ou experiência, sendo a última melhor que a primeira.
A inferência é estritamente aquilo que exige dedução, isto é, formulação de hipóteses. Na inferência você sai com um "é mais provável", enquanto o que é empírico, trate-se de objetos mentais ou físicos (a mente é considerada o sexto sentido, e o objeto da mente, por exemplo, uma laranja mental e duas laranjas mentais, são objetos empíricos — principalmente por se tratarem de convenções). Para o budismo, a realidade física existe ou também é uma ilusão? Ou ilusão é somente a percepção que temos dos objetos e circunstâncias?
No budismo realista, a posição é realista. Os tibetanos classificam como realistas duas formas de hinayana que refutam. Depois há o budismo idealista, que é refutado pelo caminho do meio (madhyamaka).
Então basicamente depende do veículo e da escola, mas a visão superior, segundo os tibetanos, é a que não reifica nenhuma tese.
Com certeza, seja realista ou não, o budismo acredita num engano em massa com relação ao que tomamos por existente. Isto é, nossa visão comum é de um certo realismo (tomamos o mundo como existente), e equivocada. Mas ela não é uma visão necessária, e por isto não se trata de uma tese, mas de um método. Para aqueles que reconhecem certos enganos prevalentes, para estes há o método budista.
Com relação aos objetos que os modelos atuais da física, por exemplo, apresentam como mensuráveis, todas as visões budistas vão dizer que estes modelos estão embasados num viés epistemológico particular, que possuem funcionalidade estrita dentro desse viés, e que são falsidades num sentido último. O universo que dividimos com um monte de indivíduos seria fruto de uma consciência coletiva? Como o budismo explica a existência da matéria não viva? Seria o universo um único indivíduo (a dimensão suprema ou o inconsciente coletivo) que tem sua própria consciência?
No budismo há várias escolas. Há escolas realistas, segundo as quais existe um mundo externo, que, no entanto, é percebido de forma parcial e errônea pelos seres que não são Budas, isto é, que não são totalmente esclarecidos. Na classificação geral dos ensinamentos mahayana, a visão destas escolas é considerada inferior. Um pouco superioras a estas, estão as escolas idealistas, que afirmam não haver propriamente nada independente da mente, então só o que haveria mesmo seriam as autoaparências de uma mente. "Uma" é um exagero, porque todas as noções de multiplicidade de seres, um só ser, nenhum ser, e assim por diante, seriam meras aparências e ignorâncias de uma mente fixada em formas particulares.
O realismo é nosso modo usual de perceber o mundo: vemos seres e objetos inanimados como externos e separados de nós. O idealismo, que é mais sofisticado, propõe que tudo é como um sonho, quando acordamos (quando atingimos o estado de Buda) percebemos que todas aquelas formas eram projeções de nossa mente.
A questão dos objetos inanimados é interessante por outro ângulo: no realismo ninguém propõe que exista consciência em tudo que existe, é como o fisicalismo usual, uma pedra é uma coisa externa, coisas externas possuem propriedades e interagem, mas não necessariamente "conscientemente". No entanto, mesmo no realismo, como disse acima, o que "vemos" do objeto depende em parte de nossa mente, então há uma dependência no sentido de relação: nós vemos uma pedra como uma pedra por causa de nossa consciência, por si só ela é o que é, seja o que for, mas para nós surge como uma pedra. Esse surgimento depende da consciência, e sem uma consciência, é impossível haver um surgimento de "pedra". Isso é semelhante ao idealismo transcendental de Kant: noções como tempo e espaço dependem de categorias mentais internas, mas pode existir uma "coisa em si" lá fora, independente, a que não temos acesso. Isto é, "aquilo que surge para nós como pedra", ou galáxia... veja que mesmo e principalmente espaço e tempo são vistas como categorias mais mentais do que reais. Existe esse grau de sofisticação no realismo budista.
Porém, o idealismo budista é mais sofisticado. Ele não postula qualquer coisa independente de uma mente, uma "coisa em si", e acusa os realistas de reificarem (tornarem real) a "coisa em si", separada da mente, que não existiria.
Além do realismo e do idealismo, existe a escola do Caminho do Meio, madhyamaka. A madhyamaka aceita as críticas idealistas ao realismo budista, mas acusa os idealistas de reificarem a mente. A madhyamaka acusa os idealistas de postular, indiretamente, um "sonhador", o que consideram um extremo e uma forma de realismo as avessas. Sem postular algo "dentro" ou "fora", um sonho sem sonhador é a visão insuperável do Caminho do Meio. A madhyamaka aceita o realismo como visão convencional dos seres ignorantes, e vai além de realismo e idealismo na visão dos Budas. Não postula assim um "modo de existência" para qualquer coisa, o que é propriamente o que se chama de "vacuidade". Isso não impede, no entanto que o surgimento ocorra. De fato é exatamente porque nada é postulado, que formas adventícias são possíveis, e portanto, diz o Sutra do Coração, forma é vacuidade, vacuidade é forma. Forma nada mais é do que vacuidade, vacuidade nada mais é do que forma. O que é "corpo" para o budismo? Como o budismo vê a típica separação do físico/espiritual, muito comum em muitas visões religiosas?
Os fenômenos físicos são uma subclasse diminuta dos fenômenos mentais, isto é, entre os diversos fenômenos mentais, algumas ilusões particularmente sólidas surgem pela reificação e são tomados como particularmente independentes e externos. Eles não existem como nada mais do que aparências de um sonho. Quando se comportam de forma mais estrita e regular os chamamos de "físicos". O que os físicos (os cientistas) estudam, é uma subclasse ainda menor desses fenômenos — reduzida pelas dificuldades epistêmicas dos modelos atuais, e possivelmente por dificuldades epistêmicas fundamentais da ignorância observando a ignorância.
Entre os fenômenos físicos pelos quais temos apego particular, e cujo apego nos ajuda a reificar a noção de um eu coeso e independente, está o corpo — juntamente com o mundo em que esse corpo nasceu, o reino humano. Quando eliminamos o apego e a reificação desses objetos todos, quando os reconhecemos como feitos de tecido de sonho, então eles são nada mais do que manifestações das qualidades iluminadas da mente. Dessa forma, retirando a ignorância, é tudo iluminado — mesmo o que hoje vemos como sólido, físico e “pertencente” a nós: nossos sentidos: órgãos dos sentidos, suas interfaces e seus objetos.
"Dessa forma, retirando a ignorância, é tudo mente e é tudo iluminado — mesmo o que hoje vemos como sólido." Quando você usa o termo "mente" aí, está se referindo à "minha mente" ou à mente como natureza básica de tudo?
É claro que a noção de eu, meu, minha é baseada na ignorância, então quando falamos em sabedoria no sentido budista, não existe sabedoria que pertença a alguém. Porém se você usar a expressão "natureza básica de tudo" e chamar isso de mente, isso só não vai ocasionar um problema se você não reificar "mente" como alguma espécie de essência das coisas. A mente que reconhece a vacuidade em todas as coisas, essa mente é a sabedoria que está além dos extremos de um possuidor e um possuído, e que está além de noções arbitrárias tais como "tudo" e "base", e que portanto é a liberdade natural, o que quer dizer não nascida, não causal e atemporal, que está além dos extremos de existência e inexistência, surgimento, sustentação e destruição, e que portanto não possa ser apontada como um objeto separativo. Então, na visão budista, a existência como um todo, o universo, é tudo mente? Se for assim, há alguma forma de manipular o meu sonho-realidade?
Sim, mas não pela mera vontade: este tema new age é um sintoma de transtorno psiquiátrico — o pensamento mágico.
As escolas realistas, que acreditam numa realidade externa separada, são consideradas inferiores. Os idealistas, para quem tudo é mente, são os intermediários. No ápice, o caminho do meio, "externo" é aquilo sob o que não temos controle — o que inclui boa parte de nossa mente no momento, totalmente vinculada a hábitos e tendências — ao ponto de termos que "querer querer" algo, para só então começar a treinar nossa mente. Então, obter controle sobre a própria mente é o primeiro passo, e isso se coaduna com todos os três tipos de escolas: as realistas, as idealistas e as além dos extremos.
É fácil entender que, se, no budismo, o resultado do carma constrói o sonho, se você quer ter sonhos bons, você age sem prejudicar os outros, e, pelo contrário, os ajudando. Assim a ética e a compaixão, através da geração contínua de méritos, produzem mudanças internas: maior contentamento, felicidade; e externas: numa mesma vida a pacificação das relações e o encontro de boas oportunidades — e nas vidas futuras corpos e paisagens melhores.
É claro que manipular a realidade através da geração de méritos, dependendo de quão sólidos são nossos carmas, pode levar tempo — mas termina por produzir as terras puras. Algumas pessoas, por outro lado, purificam a visão e conseguem rapidamente se reconhecer, ainda com este mesmo corpo, vivendo numa terra pura. Algumas pessoas, especialmente aquelas vivendo em centros de darma, podem dizer da boca para fora que vivem numa terra pura (e que "lá fora" é o samsara), mas é verdade alguns praticantes, e em particular alguns professores, evidentemente transformam onde quer que eles estejam numa terra pura. A presença de alguns grandes professores é suficiente para transformar de tal maneira nossa percepção do sonho que somos naturalmente apresentados à mandala. Algumas vezes essas bênçãos duram algumas horas, outras vezes, alguns meses — e é por isso que é necessário estabilizar essa percepção pura (o voto central do vajrayana) através da prática regular, de forma que ela se torne ininterrupta por vidas a fio, até a iluminação.
Porém, muito mais importante do que manipular o sonho é o estado de lucidez que reconhece o sonho como sonho ininterruptamente. Assim, como as duas asas de um pássaro são necessárias para ele voar, no budismo acumulamos mérito e sabedoria. Não apenas uma coisa, nem somente a outra. A realidade não é consistente demais e o universo não é grande demais para ser um sonho?
É "como" um sonho, o sonho da noite é uma das analogias que se usa para explicar a vacuidade e a interdependência. E a complexidade e consistência dos sonhos da noite ocorre em função de clareza e estabilidade do respectivo sonhador — uma vez ouvi um ensinamento sobre um sonho de Terdak Lingpa, um cochilo de alguns minutos na tarde, e apenas a descrição de um relato desse sonho tinha mais detalhes do qualquer dia cotidiano meu.
Dzigar Kongtrul disse "Veja a variedade de fenômenos que o samsara prolifera. Se o samsara sozinho faz tudo isso, imagine só o que a mente iluminada, livre de obstáculos, pode manifestar." Nesta situação que é "como" um sonho existem inconsistências como as que existem nos sonhos?
Sim, a consistência aparente é apenas devido ao carma, possivelmente positivo. Pessoas em grande dificuldade, em meio a conturbações sociais, em algo como o holocausto ou no epicentro de alguma guerra, com doenças mentais graves, ou que vivenciaram grandes tragédias repentinas, muitas vezes não veem muita consistência. É claro que uma pessoa pode vir e explicar "foi um tsunami, que ocorre por essa ou aquela causa", o problema é que isto frustra todas as expectativas cotidianas dessa pessoa. Embora se possa dar uma explicação mecânica para o que acontece, isso não parece explicar o que a pessoa sente nesse momento — e com certeza dificilmente se poderá explicar para essa pessoa o que aconteceu no sentido de porque isso aconteceu. Se a pessoa é teísta, muitas vezes ela pensa que é uma provação de Deus, ou perde a confiança em Deus. No budismo se tenta explicar como se normalmente explica o tsunami: você sofre porque criou, embora não lembre disso (paralelamente a não saber das causas do tsunami), as causas do sofrimento. Se isso é algo com que a pessoa está acostumado, pode ser muito útil. Se isso é entregue para a pessoa como a explicação do tsunami, de última hora, pode ser até ofensivo. De toda forma, vivenciamos a consistência porque temos o bom carma de certa estabilidade e regularidade nas ocorrências externas — se elas se tornam, por qualquer motivo, instáveis e irregulares, violentas ou trágicas, não vemos tanta consistência.
Na verdade, quando nos acostumamos a um cotidiano regular e nos deparamos com coisas aparentemente muito boas isto também pode ocorrer. Por exemplo, se ficamos ricos podemos ver lugares diversos, e pessoas diferentes, e viajar muito frequentemente. Uma pessoa que fique rica e famosa repentinamente pensará que não há muita consistência entre a vida anterior dela e a nova experiência — a pessoa pode vivenciar alienação e isolamento.
De fato, quando coisas extraordinárias acontecem esta é uma boa oportunidade para reconhecer o tecido de sonho, e portanto existe um mérito invulgar, que pode ou não ser aproveitado, quando se mostra a inconsistência do sonho. Um praticante com certeza deve usar isso para intensificar sua prática. Parece-me que, se o dualismo mente-corpo é rejeitado na teoria budista, então a mente é material ou a matéria é mental. A primeira alternativa é materialismo e a segunda idealismo. São dois extremos que reduzem uma coisa à outra. No meio termo, está o dualismo. Mas, aparentemente, a causalidade tem o mesmo funcionamento em qualquer monismo (material ou mental). O mistério causal está no dualismo. Como o pensamento ou a intenção, estando "do outro lado", pode causar efeito no mundo material?
A tese causal do budismo está intimamente ligada à tese do carma - até onde sei. Portanto, ligada à moralidade. Parece não haver sentido portanto em investigar causas que não tenham relação com a moralidade, causas funcionais, por exemplo, que são o que basicamente a ciência investiga.
O budismo está mais próximo do monismo idealista, onde só o que existe é mente, e o que nos parece matéria é uma subclasse de mente que reificamos dessa forma — mas não é 100% exatamente isso. O budismo é "antissubstância". Todo reconhecimento de uma substância subjacente que existe reconhecida "com olho de Deus", subsumida em todas as formas, ocorre em termos de ignorância. Não se postular uma substância é o que se quer dizer por "vacuidade". Vacuidade significa dizer "não há substância subjacente", seja material ou espiritual. Por isso se diz que o budismo é além dos extremos de monismo, dualismo e pluralismo. Mas além disso, a ausência de substância por si só não pode ser reificada, não é uma mera ausência, mas a ausência de uma essência ou "tecido" subjacentes (propriamente "metafísicos"), em outras palavras, a ausência de substância, como postulada pelo budismo, está ela mesma livre de substância (já que o mundo se apresenta, e ele do jeito que é, é vazio), e assim o budismo vai além do extremo da mera ausência de substância.
Da mesma forma, o budismo vai além dos extremos de realismo e idealismo, isto é, qualquer existência independente da mente, e também qualquer mente que seja ela mesma postulada como uma substância subjacente. Podemos dizer que a "mera" substância, a mente, não é separada das aparências, e também não pode ser postulada como uma existência separada ou independente.
Com relação a causalidade, no entanto, há uma liberdade, e dentro dessa liberdade, há os muitos possíveis enganos. Entre os enganos possíveis temos uma causalidade estreita e uma causalidade mais ampla. Elas não "existem" como estruturas das coisas, mas como estruturas de diferentes níveis de ignorância. (Ignorância sendo definida como a reificação, via energia de hábito, sobre particulares: objetos separativos, classes, partes, relações, tempo, espaço, cores, flutuações, etc.)
A causalidade estreita diz respeito ao exame dos sentidos deludidos, e a ciência é uma extensão desse exame. Todo modelo e instrumento opera de acordo com os sentidos usuais, apenas "incrementados", por instrumentos de observação e medição (como microscópios, espectógrafos, MRI, câmaras de bolha, cronômetros, velocímetros, réguas, etc.) e pelos modelos a partir dos quais esses instrumentos são elaborados. Não só os instrumentos, mas todo o arcabouço que gera a formulação de experimentos e a derivação de conclusões. A causalidade ampla diz respeito a uma operação da delusão sutil, como o carma, que tem a ver com ética e, em particular, com sofrimento. Toda causalidade estreita está subsumida na causalidade ampla, mas o oposto não ocorre, senão por alguns indícios incertos (a expressão de dor numa face, a medida de certas condições eletroquímicas em determinada região do cérebro), já que a segunda é um tantinho menos de ignorância. A "caixa" observada na segunda causalidade inclui todas as percepções subjetivas, que não podem ser resumidas pela observações de epifenômenos dela (isto é, o oposto da crença materialista: aqui o epifenômeno é a expressão facial, o MRI, etc.) Na sabedoria não há causalidade. Como Wittgenstein disse, "a crença no nexo causal é superstição". A causalidade ocorre no tempo, e o tempo e etapas contínuas ou discretas são uma função da ignorância, não da sabedoria.
Através do estudo do carma e da causalidade ordinária (como a da ciência) meios hábeis para beneficiar os seres num ambito convencional podem ser estabelecidos. Essa é a única utilidade, como meios hábeis. O estudo de qualquer uma delas não leva a sabedoria, mas a sabedoria não exclui o estudo de nenhuma delas. Há alguma relação com o filosofo Arthur Schopenhauer com o budismo?
Ele escreveu um pouco sobre o budismo, e foi um dos responsáveis pela maior parte das interpretações errôneas (e quando não totalmente errôneas, pelo menos extremamente parciais a uma única forma de budismo) que ainda persistem no ocidente.
A noção de pessimismo, por exemplo, volta e meia alguém ainda atribui ao budismo uma visão pessimista com relação à realidade.
Além dele estar preso a certo "romantismo" e visões de sua época, ele tinha acesso a pouquíssimos textos em traduções preliminares e cheias de equívocos. Assim é difícil ver alguma relevância em Schopenhauer e budismo que não seja para analisar os muitos níveis de interpretações errôneas sobre o darma, que só começaram a ser sanados na década de 30, onde algumas outras interpretações errôneas, daí da Teosofia, infelizmente também foram introduzidas. Então, só pela década de 60, quando os professores asiáticos começaram a aprender bem línguas ocidentais e refutar certas interpretações, é que certos erros quase 200 anos de idade começaram a ser revistos. Esse é um trabalho que persiste até hoje, em particular no Brasil, onde a academia é absolutamente desconhecedora do que é o budismo, pelo menos numa profundidade que vá além de um artigo de enciclopédia (a maioria péssimos também, é bom dizer). Conhece o ensaio do escritor argentino Jorge Luis Borges sobre o Budismo?
Sim. Borges segue a tradição clássica, schopenhaueriana, em desconhecer grande parte da tradição budista, e interpretar limitadamente o que conhece. Mas dizer que a vida é sofrimento não é partir de uma premissa pessimista?
Sim, se a pessoa traduz assim e deixa fora de contexto, é claro que soa pessimista. Porém o que o Buda disse é que a experiência cíclica é insatisfatória — e que essa insatisfação tem uma causa, ela não é natural. Eliminando-se a causa, elimina-se a insatisfação. Isso é bem diferente de dizer "tudo é sofrimento". Se não houvesse solução para o sofrimento, essa seria sem dúvida uma visão pessimista — mas tudo que o Buda ensinou foram métodos para eliminar o sofrimento e as causas do sofrimento — claramente dando o exemplo dele mesmo de que era possível estar completamente livre do sofrimento.
Além disso, o fato de que o sofrimento não é natural, mas possui uma causa — uma das quatro nobres verdades — por si só já demonstra que o sofrimento não é a realidade última das coisas, e sim só a realidade temporária, enganosa, corriqueira, em que normalmente, por confusão, estamos imersos. O que você acha de Nietzsche? Como o budismo responde as suas criticas?
Nietzsche sofreu muito, e possivelmente muito desse sofrimento foi por conta de suas visões errôneas e confusão. Creio que ele causou muito sofrimento ao longo dos anos após sua morte, tanto sendo bem quanto mal interpretado.
As críticas de Nietzsche ao budismo não chegam a fazer muito sentido, porque o budismo que Nietzsche conhecia era o filtrado por Schopenhauer, que teve acesso as primeiras terríveis traduções, cheias de equívocos grosseiros, às quais ele adicionou equívocos de interpretação próprios, criando uma imagem de budismo que até hoje perdura em alguns âmbitos. Em outras palavras, o que Nietzsche chama de "budismo" é uma invenção de Schopenhauer com base em parco conhecimento de textos mal-traduzidos. Portanto nenhuma crítica de Nietzsche ao budismo chega a sequer fazer sentido, porque não há nenhum budismo no que é criticado. Sabe se existe alguma ligação entre o Budismo e o Pitagorismo?
Não existe. Os gregos encontraram o budismo muito depois, e se converteram. Lá pelo século II antes de Cristo, em regiões na Índia continental dominadas por Alexandre, como a Báctria. O que os gregos antes do século II chamam de gimnosofistas foram provavelmente hindus.
Algumas vezes, devido a essa conexão com os gimnosofistas, o ceticismo pirrônico é comparado à madhyamaka. Se o espaço e número de seres forem finitos e se o tempo para frente for sem fim, o eterno retorno não é necessário ou pelo menos provável?
O Buda não respondeu sobre nenhuma das duas afirmações, se os seres são finitos ou infinitos, e se o tempo é com ou sem fim. São duas das 14 questões que ele não respondia.
Além de qualquer consideração sobre se isso pode ou não ser sabido, se o Buda era ou não capaz de responder, e assim por diante, a consideração central é que essas perguntas e possíveis respostas são irrelevantes para o método, e o método (para atingir liberação) é mais importante que informação, verdade, conhecimento. Essas coisas são subjugadas ao método (darma), e só nessa medida são de valor. Em outras palavras: o budismo é inescapavelmente não especulativo. Já que o carma é uma experiência cíclica, então é correto afirmar que todos as ações e reações são previsíveis? Que sempre aconteceram e sempre acontecerão?
O carma não é uma experiência cíclica. O carma é uma característica da experiência cíclica. Ademais, a experiência é cíclica porque tem altos e baixos indefinidamente alternados, não porque as exatas mesmas coisas se repetem (como num "eterno retorno"). As reações são previsíveis em termos das ações, mas as ações são indeterminadas. Tudo aqui diz respeito ao sonho.
No estado desperto as coisas nunca aconteceram e nunca acontecerão, pelo menos de acordo com Nagarjuna. Elas também não acontecem no presente. É nossa ignorância que projeta a experiência cíclica, que é portanto uma mera aparência, e uma falsidade. Nós sofremos porque reificamos essa falsidade como real. Quais eram as 14 questões que o Buda não respondia?
Elas podem ser resumidas em quatro: o mundo é eterno? o mundo é finito? O eu é idêntico ao corpo? O Tatágata (o Buda) existe depois que morre? Há uma cosmogonia budista?
Há problemas epistemológicos inerentes ao falar de surgimento, mas, assim, por diversão, para explicar como surgem e cessam cada um dos fenômenos ilusórios puros e impuros — dentro do escopo da separatividade, ou pelo menos de um uso da linguagem que está no limiar entre a separatividade e a inseparatividade —, há talvez milhares de pseudocosmogonias budistas. Cada um dos tantras tem uma diferente, que concerne a formação da mandala no estágio de desenvolvimento. Existe um paralelismo entre a prática meditativa do vajrayana e o que eu chamaria de pseudocosmogonias, porque elas não explicam o surgimento de um mundo, mas a coemergência da sabedoria e da compaixão.
O famoso exemplo da pessoa que está com uma flecha enfiada no olho (representando a insatisfatoriedade do samsara) e se preocupa com frivolidades, foi dado pelo Buda em resposta a uma pergunta sobre cosmogonia. Então, parece, existe algo de frívolo (talvez exatamente por haverem problemas epistêmicos inerentes) nesse tipo de questionamento. É possível "experimentar a verdade" sem ser iluminado? Como?
Sim, é verdade que esta sentença é composta de letras. Uma verdade como essa, e muitas outras, nada tem a ver com iluminação. O conceito de verdade não tem interesse a não ser no sentido de que devemos ser pessoas honestas e sinceras de forma a podermos beneficiar os outros. O Budismo despreza a verdade e está mais preocupado com resultados?
Verdade com "v" maíusculo é meio perigoso. A verdade, essa de que a palavra verdade começa com v, não é de forma alguma desprezível. É a base da honestidade e da sinceridade. Por outro lado, o que o budismo despreza é a noção de um conhecimento de lastro privado, isto é, uma fórmula interna que alguém pode obter, e que com um clique, entende as coisas do mundo. Isso o Buda não ensinou. O que o Buda ensinou é um método para revelar a realidade — segundo ele vivemos em um engano de massa com relação ao que há de fato. Este o que há de fato algumas vezes é chamado de verdade, mas essa terminologia cria confusão com o nosso uso vulgar e corriqueiro da palavra verdade, ou com um uso meio místico do termo. Não é nenhuma das duas coisas.
Se você quiser usar essa terminologia, você pode claramente dizer o seguinte: o budismo não se ocupa de contar a verdade sobre as coisas, mas dos métodos que permitem a alguém ver a verdade das coisas por si só.
O budismo não se ocupa de dizer, e sim de fornecer um método para que a pessoa possa fazer, ver, por si própria. A ideia de que alguém possa contar algo sobre a natureza última para os outros é a base da escola svatantrika, que é inferior a escola prasangika, na qual o método não tenta forçar ao outro nada senão o próprio método — este modo é considerado superior por ser mais compassivo, mais elegante e mais acurado.
Mas mesmo as formas realistas do hinayana, inferiores, não promovem uma noção de verdade substancial. Isto é, a vacuidade e a interdependência impedem toda e qualquer noção de verdade com "v" maiúsculo que possa ser expressa, e toda noção de verdade com "v" minúsculo é meramente o modo comum, não espiritual, de lidar com o mundo. (A verdade de que a palavra mundo começa com "m", esse tipo de verdade, não tão... emocionante... quanto a "verdade da ausência de existência intrínseca do eu" — essa sim, fornecida em método, não mastigada.) O estado desperto intríseco da mente, a natureza de buda, não é uma verdade absoluta?
Às vezes se usa a expressão "verdade absoluta" para designar a natureza da realidade. Mas como não há uma proposição que corresponda a ela, não pode haver um "valor de verdade" correspondente.
O que se quer dizer é que se trata da realidade "última", e não a realidade "convencional". Está se usando, portanto, a palavra "verdade" como sinônimo de "realidade", mas para sermos precisos, não poderíamos usar o termo "verdade" nesse contexto. "Verdade" só diz respeito à expressão deliberada, verbal, de um alguém. Isto é, ao que alguém diz. A conclusão corrente hoje no ocidente parece ser a impossibilidade da lógica de provar a existência ou inexistência de um criador. É dito que através da meditação várias das afirmações budistas, inclusive a de que não há um criador, podem ser verificadas. Mas o experimento de meditação não é meramente subjetivo?
Apenas pela lógica, não é possível refutar ou confirmar algo que não seja meramente lógico. Assim o que se refuta, através da lógica, é as posições que as diversas escolas tem a respeito de um criador — dezenas de escolas hindus são refutadas. Então não é a existência que é refutada, mas as noções — o jeito como essa crença é expressa é contraditório, é isso que é revelado através do debate. Quanto à existência, a prática em si mostra que, se fosse existente, seria irrelevante.
A meditação não é subjetiva no sentido de ser voltada ao eu e suas inclinações. A psicologia ocidental, de fato, começou com o método introspectivo — porém logo o abandonou, porque tudo que a pessoa pensa são fragmentos "subjetivos" nesse sentido ruim. Então aí entra o refinamento dos instrumentos epistêmicos. A meditação no budismo é objetiva num sentido único: o sentido em que as experiências se repetem e são reproduzíveis, e não dependem das inclinações pessoais. Não são subjetivos nesse sentido, que é onde importa que não sejam subjetivos. Se Buda não é onipotente, não lhe faltaria pelo menos essa perfeição para ser perfeito? (Argumento ontológico).
Só se "perfeição" implicasse perfeição em coisas impossíveis ou autocontraditórias. No caso de um cavalo perfeito, é apenas um cavalo sem defeitos. Não é um cavalo que sabe cálculo infinitesimal.
O Buda é perfeito em duas coisas: na total eliminação das aflições mentais e no total desenvolvimento das "perfeições", paramitas. As paramitas são generosidade, ética, paciência, empenho, concentração e sabedoria. Não pode haver alguém que tenha uma generosidade maior do que a do Buda, apenas a mesma generosidade, e nesse caso ele será... um Buda.
Deus pode criar uma pedra que nem mesmo ele é capaz de mover? Pois o Buda também não pode criar, ou mesmo imaginar, círculos quadrados...
Tecnicamente falando, a sexta paramita, sabedoria, é o reconhecimento da vacuidade (interdependência, coemergência, vacuidade). É ela que permite a perfeição das outras cinco paramitas.
Assim a generosidade perfeita é aquela que vai além de um agente, um recipiente e um objeto de oferenda. A perfeita generosidade é o reconhecimento de que não há um "possuidor" em lugar algum. Da mesma forma, a paramita da sabedoria permite a perfeição da ética e das outras paramitas. As refutações de criador no Budismo são baseadas na lógica convencional aceita no Ocidente ou num tipo de lógica peculiar?
Só existe uma lógica. Você pode ter diferentes formalizações e teorias sobre a lógica, mais ou menos enfatizadas pelas diversas formalizações, mas o "lógico" é meramente aquilo que necessariamente precisa ser aceito pelo oponente do seu raciocínio. De fato, os budistas nem mesmo tem um sistema lógico próprio — na svatantrika eles usam um sistema, para todos efeitos, similar ao dos nyaias, e na prasangika eles usam só a lógica do outro. Por outro lado, os budistas não desenvolveram debates com cristãos e judeus — só com hindus, de igual ou superior (em quantidade de produção intelectual — um critério, diga-se de passagem, até bastante relevante na modernidade) capacidade de argumentação.
Além disso, a lógica é secundária à experiência. Então existe a refutação lógica, mas também o testemunho daqueles que executaram os experimentos de meditação, que qualquer um pode executar e conferir por si próprio. O budismo pode ser considerado dogmático?
Curiosamente, no budismo existe a única sistematização de possibilidade de comunicação não dogmática já feita: a prasangika madhyamaka.
Nagarjuna disse "se apresentei uma tese, então cometi um erro". O Buda é chamado de "o grande mentiroso" por um poeta zen, porque tudo que ele falou é apenas expediente, um meio hábil, um método para reconhecer a realidade, mas sem realidade nem verdade alguma expressas ali.
Por outro lado, é claro que uma pessoa pode pegar algo falado pelo Buda como um meio hábil, temporário e expediente, exposto como um método, e não como uma asserção, e dizer isso como se fosse uma afirmação acerca da realidade. Assim "medite", imperativo, vira "você deve meditar", uma afirmação a respeito de você. "Experimente" vira "a experiência é...".
Se a pessoa entender todos os darmas no imperativo, com o adendo não totalitário "se é que você quer ser como eu, o Buda", não existe sequer possibilidade de haver dogma no budismo. O que são experimentos mentais e para que servem?
Experimentos mentais são cenários e fantasias com as quais examinamos o mundo de todas as possibilidades. O budismo, com sua ênfase peculiar no treinamento da mente, toma precedência dos experimentos mentais sobre crenças. O que se chama de "inferência" é um caso peculiar de experimento mental, no caso, aquele que produz uma conclusão, e não apenas um sentimento ou uma mudança de hábitos.
A crença é a forma mais baixa de lidar com os ensinamentos. Ela se embasa tão-somente no mérito, isto é, a pessoa acredita em algo que vai funcionar porque tem bom carma, se tem mau carma, acreditará em algo que não funciona.
Depois temos o experimento mental. Se a pessoa não aceita carma ou renascimento, por exemplo, ela experimenta pensar um mundo em que isso fosse possível. Em seguida ela examina, repetidas vezes, como sua própria mente operaria nesse mundo. Se ela tem confiança suficiente (crença tendendo ao efetivo, bom mérito) no budismo para tentar um experimento, ela faz isso 24h por dia por alguns anos. Então ela examina os resultados em termos da aflições mentais e das paramitas — as primeiras diminuíram, as segundas desabrocharam? Se sim, independente de ser o caso, neste mundo, estas coisas, é melhor pensar como se fosse.
Se eventualmente através da sua prática, ela obtém garantias da factualidade dos experimentos que ela estava desenvolvendo, então essa é a melhor forma. Algumas vezes os três modos são chamados de "fé". Fé por confiança e crença, fé por inferência e fé por experiência. Mas a palavra fé tem outros sentidos, e talvez ela não seja adequada para os dois segundos tipos.
Nós só precisamos ter confiança nas palavras dos professores o suficiente para fazermos os experimentos em corpo, fala e mente. Nós deveríamos ter a mesma confiança num professor qualificado, por exemplo, do que num médico qualificado. Eu não sei como agem, ou tenho uma ideia extremamente superficial de, os medicamentos que me foram receitados — ainda assim, enquanto me pareceu que o tratamento era efetivo, eu me engajei nele. Se eu precisar saber mais que o médico para me engajar no tratamento, eu morro antes da cura. Você também acha que a maioria das pessoas não está aberta ao debate? Vejo que quando as conversas começam a ficar mais profundas, a maioria se defende franzindo o rosto e falando algo do tipo: "pra mim é isso e pronto!".
Sim, mas tudo bem. Debate é só um nível de comunicação possível, e nem é o melhor. Quais os outros níveis de comunicação? Por que o debate não é o melhor? Qual o melhor?
Modos tácitos, modos sutis, modos não verbais, modos tácteis, modos gustativos, modos diretos. O debate é para pessoas com grande conceptualização, isto é, pessoas que vestiram suas aflições mentais com armaduras de ideias. Então se a pessoa não se relaciona com a outra senão por ideias, isto está muito mal. As ideias não são muito importantes, mas para algumas pessoas elas parecem ser, então, por compaixão, é adequado se envolver em debate — se há a habilidade de desmontar essas armaduras e evidenciar a fragilidade das ideias. A melhor forma é um contato de mente desnuda com mente desnuda — da mesma forma que o melhor contato entre um homem e uma mulher é desnudo. Essa é uma analogia possível.
A maioria das coisas que o Jung fala eu acho total viagens. Mas quando ele fala dos filósofos como escrevendo tudo aquilo que escreveram, e tudo na verdade, no sentido último, tudo aquilo não passando de uma série de gemidos, nada foi mais exato. A conceitualidade é uma expressão de sofrimento. Ainda sobre debate: Então, para o budismo o debate é uma perda de tempo? Ou depende da motivação dos agentes? como exemplo: debater sobre algo que traga benefício aos seres?
Perda de tempo entre aqueles de qualidades superiores, como já dito. Só porque uma coisa não é a melhor coisa a ser feita, algumas vezes ela é tudo que pode ser feito.
Agora, debater algo que traga benefício aos seres é bastante escorregadio. Por um lado, aspirar benefício é benéfico, portanto falar de benefício aos seres é benéfico. Mas discutir opiniões sobre o que será melhor, num sentido meramente especulativo, e particularmente quando nenhuma das duas partes do debate têm eixo algum em sabedoria (reconhecimento da vacuidade), pode ser exatamente um pastiche do benefício dos seres, portanto uma das atividades menos meritórias a se realizar. Isto é, com a aparência de seres benévolos, eles fazem um teatro de exaltação de suas próprias tendências habituais — eles vendem seu ego como benefício aos seres-mães. Isto é francamente horrível.
Agora, o debate é um elemento tradicional do mahayana indiano e do budismo tibetano. É uma parte essencial do treinamento monástico, como uma disciplina com regras estritas — isto é, não é um debate solto, mas é uma prática de dialética que envolve memorização, retórica e até mesmo algo de teatral. Um manual de debate traduzido ao inglês tem umas 400 páginas. Ele é uma parte essencial do ensino budista. Então ele é muito importante para milhares de monges.
Mas existe muita falta de entendimento das pessoas sobre o que é budismo e o que o budismo acha perda de tempo. Os grandes praticantes do budismo não são necessariamente monges, e não são necessariamente eruditos. Os monges, na sua maioria (há seres elevados que são monges, e há seres muito ordinários, comuns, que são monges) são os preservadores da tradição oral e dos ensinamentos do Buda. Quem preserva a realização são os naljorpas, e esses muitas vezes não se engajam em debate. Alguns monges podem ser naljorpas, mas nem todo monge pratica meditação com intensidade ou atinge realização. Alguns não atingem nem mesmo erudição. Noutra pergunta a pessoa fica surpresa, porque acha que os monges tem que ser pobres, e que a pobreza seria talvez um valor budista. Não é, nunca foi, nem nunca será. O desapego é importante, e grande riqueza com grande desapego é a melhor de todas as circunstâncias. De tanto valor quanto os monges são os patronos, que constroem os prédios, patrocinam as estátuas, as pinturas, comissionam a tradução, impressão e distribuição de textos, pagam viagens para professores, sustentam os monges. Naljorpas, patronos, monges, comunidade laica — em todos esses âmbitos há praticantes budistas, e em qualquer desses âmbitos pode haver seres realizados.
Para os seres com grande sofrimento conceptual, nada melhor do que fazer perguntas para um grande professor. Entre duas pessoas no caminho que tem grande conceitualidade, o debate pode ser útil também, em particular se ambas, ou ao menos uma, tem clareza sobre o fato de que é um método expediente e inferior. Então as pessoas se engajam com humildade nas práticas que os bodisatvas elevados "excretam", que eles não praticam, mas esse cocô dos bodisatvas é néctar para os seres em grande sofrimento pela conceptualização. Budistas também têm momentos de dúvida, de pensar que muitas coisas importantes da doutrina em que acreditam podem ser falsas?
Evidentemente que eles tem dúvidas com relação aos ensinamentos. Tanto dúvidas do tipo bom, que geram bons questionamentos, quanto do tipo mau, que são meras hesitações.
Mas é curioso pensar o budismo como uma doutrina em que se "acredita", e que pode ser "falsa". Tudo que é dito no budismo é, acima de tudo, repito, um método. Portanto é algo em que se confia em certa medida, mas não se "acredita", no sentido de que se pega aquilo porque soa bom, e então, porque soa bom, não se pode duvidar daquilo, sob pena de se "deixar de ser budista" — uma autoimagem que é aliás, um obstáculo para a prática budista.
E o budismo não é falseável, quero dizer, como ele é um método, ou ele funciona ou não funciona. Uma proposição do tipo "se você causar sofrimento, você irá sofrer" é verificável, em certo nível, até por crianças. O Buda não diz "as coisas são assim", ele recomenda "se você fizer esse experimento, vai obter esse resultado, verifique".
O budismo faz tanto sentido num sentido prático, do dia a dia mesmo, que certas coisas são difíceis de duvidar. "Todas as coisas compostas são impermanentes", por exemplo — só fanáticos religiosos e gente louca para discordar disso. Mas o Buda vai dizer, tente. Tente discordar da impermanência — faça um exame minucioso de todas as possíveis falhas dessa afirmação — tente encontrar uma única coisa permanente... a afirmação não vale nada, mas sua tentativa e reconhecimento da impermanência, com seu próprio engajamento, isso possui um valor muito grande. Jigme Lingpa diz que essa é a riqueza dos seres elevados, a consciência da impermanência. Quem examina isso, portanto, se torna extremamente próspero espiritualmente. Que evidência concreta você tem de que o Budismo é uma doutrina mais ou menos verdadeira e não apenas um elaborado sistema teórico sem fundamento mas capaz de iludir muitas pessoas?
Minha própria prática, isto é, os experimentos que eu próprio executei e os resultados que verifiquei por mim mesmo. Levando em conta que a razão tem limites e pode não alcançar certas verdades, você não admite a possibilidade, mesmo que remota, de sua visão sobre a existência de um Deus pessoal criador e sobre a verdade mais profunda do Budismo poderem estar equivocadas?
As duas formas de cognição válida no budismo são experiência e inferência (razão, lógica). A experiência é superiora, mas, na ausência dela, o segundo melhor método é a inferência.
O budismo nega também um deus impessoal criador. O problema é a noção de criação, que incompatível com a interdependência — e, da interdependência, tenho alguma experiência superficial e evidência suficiente através de inferência.
Não existe uma verdade mais profunda no budismo. O budismo é essencialmente um método para produzir um resultado. Nesse caminho, ideias errôneas, se estão presentes, são refutadas, mas nenhuma "verdade" é estabelecida. Foi dito que a inexistência de deuses é comprovável pela razão. Entretanto, já vi muita gente usando o mesmo argumento a favor da existência de deuses (geralmente teólogos e filósofos católicos). Poderia aprofundar essa questão?
Segundo o budismo, existem deuses. Isto é, criaturas com poder e inteligência maiores do que a humana, e que os humanos não veem. O que é incompatível com a inferência e experiência budista é a existência de um criador. Isso pode ser estudado em tratados madhyamaka como o Madhyamakavatara de Chandrakirti. Mas só se a pessoa tiver interesse e grande disponibilidade de tempo.
O budismo tem uma tradição clássica de debate com teístas hindus, que são um tão ou mais sistemáticos e precisos do que os teólogos escolásticos, por exemplo. Então, se a pessoa quiser fazer uma comparação dessas visões, ela vai estudar por várias décadas. Só o que posso dizer é que o volume de refutação e a qualidade dessas refutações são raramente visualizadas por ocidentais. Na filosofia impera o racismo. Não budistas podem dedicar seus méritos?
Um não budista pode ter aspirações semelhantes a prática de dedicação de méritos. Porém, se ele começar a pensar em termos de mérito e dedicação, invariavelmente ele vai ter que lidar com interdependência e vacuidade. E o conceito de sabedoria. E quem detém sabedoria é um Buda. Então, é impossível dedicar os méritos de outra forma que não da forma perfeita de um Buda. E todas as práticas e aspirações de dedicação de méritos levam ao estado de Buda. Se a pessoa quer ir para o céu ficar com Jesus, o mérito é do criador, nunca foi dela. Então ela não tem o que dedicar. No budismo, como nós somos responsáveis pelo nosso mérito, e porque não somos essencialmente separados de nenhum outro ser, então podemos dedicá-lo. As tradições que não tem conceito de carma, interdependência e vacuidade dificilmente vão considerar dedicar o mérito. No fundo, é uma prática exclusivamente budista. O que não quer dizer que qualquer um não possa tentar praticar dessa forma. O resultado, porém, vai ser o vínculo com os Budas, e a natureza da realidade, que é vazia e interdependente.
Se a pergunta é se a pessoa precisa ter autorização ou ter tomado formalmente refúgio para dedicar méritos, não, ela não precisa. Qualquer um pode dedicar méritos. Mas creio que essa é uma prática budista, e exclusivamente budista. Então, com certeza, ela vai estar se aproximando do budismo, e ela precisa estar ciente de qualquer contradição que possa haver com algum outro ensinamento que ela segue. Não é possível dedicar o mérito e ser teísta, por exemplo. "Se a pessoa quer ir para o céu ficar com Jesus, o mérito é do criador, nunca foi dela." O mérito é do criador, mas há uma participação da criatura nele pela escolha contingente delegada a ela de fazer ou não fazer algo bom.
Portanto, ela existe independente do criador. Como uma o mérito poderia ser transferido entre duas entidades independentes? O mérito só pode ser transferido entre seres que não são essencialmente separados. Não entendi bem. Quando um mendigo me pede uma esmola na rua, eu lembro das palavras de Jesus e dou a esmola beneficiando o mendigo. O mérito assim é de Jesus, mas eu acho que tenho uma participação nesse mérito por lembrar e escolher obedecer os ensinamentos de Cristo.
Bom, em primeiro lugar, isso é geração de mérito, não dedicação de mérito. Se você e Jesus são um só, então o mérito é de Jesus. Se você e Jesus são independentes, então o mérito não pode ser transferido entre vocês. No cristianismo mainstream (catolicismo, movimentos evangélicos etc. — não new age ou seitas perdidas no tempo), há separação entre criador e criatura. Isso é um problema se a pessoa quer dedicar méritos. Na verdade, é difícil não entender como contradição "a criação de um livre arbítrio" — isto é, produzir a separação com um ato. Livre arbítrio é um remendo para solucionar o problema do mal — uma das dificuldades comuns no teísmo. E o livre-arbítrio é exatamente o que produz uma forte noção de independência. Em outras palavras, se há um criador benevolente, e as coisas poderem dar errado (existir o mal), o criador precisa estar separado das criaturas. Só o fato dele ser criador já garantiria separação, pelo menos pelo fato dele ser diferenciado, superior. O que é o teísmo senão a crença numa entidade separada, de alguma forma essencialmente separada? No budismo os seres são aparentemente separados, e um Buda é alguém que revela algo que todos têm, portanto ele não é essencialmente diferente de ninguém. Assim, as coisas não são separadas e pode haver dedicação de méritos.
Bastaria talvez dizer que não há interdependência possível em visões teístas, e portanto, não pode haver dedicação de méritos. Mesmo que os elementos não sejam separados totalmente (uma contraditória "fagulha" da criação, presente em cada um, por exemplo), se há um elemento privilegiado (i.e. o criador, ou a manifestação do criador na forma de Jesus), isto é, algo com ao menos algum grau de independência, por menor que seja, mas verdadeira, sólida, não apenas aparente: então não há possibilidade de interdependência, e assim, não há possibilidade de dedicação de méritos. Se a deidade é meramente criadora e para todos os outros efeitos independente (o que não é a visão do cristianismo, mas de algumas formas de teísmo) — pelo menos a ela não é possível dedicar méritos (considerando que "o resto" fosse "interdependente"... embora não possa haver "resto" na interdependência...) — e, na verdade, como ela tem todo o mérito, através da criação, isso torna as criaturas umas independentes das outras, e portanto não há possibilidade de dedicação de méritos.
Podemos adentrar vários cenários teístas como o panteísmo, ou varias formas monistas ou dualistas... mas o que ocorre é que a interdependência é exclusividade budista. E, sem interdependência, não há dedicação de méritos. A interdependência é uma visão além do monismo e do dualismo, que são consideradas formas extremas, isto é, formas que se embasam na reificação de uma ignorância. Como no budismo não se considera uma coisa separada como verdadeiramente existente em primeiro lugar (vacuidade), então afirmar que exista uma só substância, ou pelo menos duas substâncias, coisas assim, não faz nenhum sentido. Pode parecer que é uma afirmação monista dizer que não há separação, porém essa substância inseparativa não é mais do que a interdependência, isto é, o fato de que as particularidades são coemergentes, e não podem haver um lastro — seja linguístico ou ontológico — para garantir um extremo, isto é, uma visão qualquer que reifique particularidades ou substância única. Não consigo ver contradição no teísmo.
Para um teísta, é evidente que ele não vê contradições no que acredita. A não ser que ele seja um teísta do tipo "creio porque é absurdo", o que também existe no cristianismo.
Agora, o importante, porque, independente do mérito desses arrazoamentos, que só poderiam ser avaliados por eruditos, é entender que existem esforços constantes no budismo que demonstram como a interdependência é contraditória com criação. Isto é, pode-se até dizer que a definição de interdependência implica necessariamente a ausência de criação. Entendendo isso e que dedicação de méritos exige interdependência, pode-se entender como certas crenças impedem a dedicação de mérito. A pessoa pode com certeza desenvolver boas aspirações e gerar méritos independentemente das crenças que sustente — mas dedicação de mérito exige sabedoria, e o reconhecimento da realidade como ela é, além de ser particularmente incompatível com algumas visões errôneas.
O budismo não pode ser tomado separadamente, em parte, e apropriado por outras tradições. Se um teísta diz que dedica méritos, então ele faz outra coisa — talvez até uma coisa boa e meritória —, mas não o que o budista chama de "dedicação de méritos", pelos motivos apresentados acima, que são coerentes mesmo se o teísmo for possível, e for o caso — nesse mundo (um mundo impossível), a dedicação de mérito não seria possível. Então mesmo que uma pessoa sustente o teísmo ela pode entender o que é incompatível com o teísmo, no caso, a interdependência é incompatível com o teísmo — ou uma coisa é o caso, ou a outra. As duas coisas não podem ser o caso. "As duas coisas não podem ser o caso." Talvez. Mas hoje em dia as coisas parecem não ser mais bem assim, com o advento das lógicas heterodoxas. O gato de Schrödinger está morto ou está vivo?
Um problema epistêmico não é justificativa para valer qualquer coisa, particularmente do uso das palavras. No budismo a experiência vem em primeiro lugar, depois a inferência, mas nada disso indica ou possibilita abuso da comunicação. Se duas pessoas querem dialogar, elas precisam estar de comum acordo. Uma expressão tal como "círculo quadrado" não corresponde a nenhum objeto em nenhum mundo possível. Se você quer chamar sua banda de rock de "círculo quadrado", nesse caso, como nome próprio você vai ter um objeto, que em nada diz respeito aos objetos geométricos "círculo" e "quadrado". Quando você sabe o que é um círculo e o que é um quadrado e você quer falar de círculos quadrados, então, baby, você só está usando palavras, você não está dizendo nada.
Para o uso da comunicação ser ético, ele precisa ser coerente. Ele não precisa ter uma coerência que você aceite, mas ele precisa ser expresso como algo coerente — ele precisa ter essa pretensão. Muitas pessoas confundem o "além da linguagem" no budismo como desculpa para o simples irracionalismo. Duas proposições contraditórias não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo não por nenhuma questão ontológica — mas pela simples ética da comunicação entre duas pessoas. Lógicas que violam a não contradição mantém outras características incomuns no uso do discurso natural, e elas tem usos específicos, mas não na conversa entre as pessoas — e, de fato, você ao falar com alguém, em termos budistas, não deve usar a própria lógica, mas a lógica do outro. Só que, se não houver lógica, e essa é uma possibilidade muito mais comum — que se esquiva se desculpando com a ideia de lógicas não tradicionais (sem nem sequer entender o que isso implica) — , não há comunicação. Não permitir comunicação é um desrespeito.
E, de fato, em qualquer coisa que importa, se você usar argumentos de física quântica new age, que confundem problemas epistêmicos com "vale tudo" e mero relativismo, quando chegar suas contas pelo correio você talvez tente ir para o universo paralelo onde você não deve nada. Já que os dois são iguais, e simultâneos, e a realidade é contraditória, por que pagar contas? "Eu não paguei porque a realidade é contraditória", você diz no banco. Um assassino também cometeu ou não um crime, então porque colocá-lo na cadeia? — ou uma pessoa lesada num ação cívil: a mulher sem receber pensão e o marido diz "doutor nós estivemos e não estivemos casados, simultaneamente, então eu escolho não estar casado, e por isso não preciso sustentar meus filhos". "DNA? Embora o laboratório tenha dado 99%, mesmo que fosse 100%, o estuprador poderia ou não ter estuprado — simultaneamente ele estuprou e não estuprou. É que nem o gato de Schrödinger" Isso é desonestidade, uso da ignorância para se dar bem, nem que seja para parecer que, após ter sido derrotado por uma argumentação, a pessoa pense para si própria que pode continuar se considerando correta.
Além disto, essa atitude gera o sectarismo e a intolerância religiosa — porque a diferença não é motivo de cordial debate, mas motivo de real separação, já que o outro não é participante do discurso: não existe mais a possibilidade de um critério comum de diálogo. Portanto, essas são algumas das mais nefastas ideias da modernidade, que acabam com o valor de qualquer discurso, e assim acabam com o valor de qualquer darma que possa ser expresso para benefício dos seres.
Os debatedores budistas poderiam ter assumido a postura de "bom, eles nem tem como seguir a nossa lógica", mas em Nalanda eles estudavam a lógica dos outros. Estudavam a lógica das centenas de escolas hindus e usavam a lógica deles na argumentação com eles. Agora, se o oponente não tem uma lógica, então ele não é aberto para comunicação, e aí, só rezando. Felizmente é fácil entender que a palavra "verdade" possui valor na comunicação humana: significa sinceridade, honestidade. Uma pessoa precisa assumir a consequência do que está dizendo, caso contrário é o mesmo que falar com uma parede.
Ademais, estritamente falando, se você quer usar o experimento de pensamento de Schrödinger, que é uma área que por acaso eu conheço um pouco, você precisa ser confrontado com o fato de que há 6 interpretações da mecânica quântica que resultam em cálculos adequados. E, se uma delas estiver correta, todas as outras 5 não estarão corretas — ou... então a perspectiva é puramente instrumentalista: a física não explica as coisas teleologicamente, muito menos determina critérios epistêmicos: ela simplesmente calcula corretamente ou não. Se o instrumentalismo é o caso, onde mais do que uma das interpretações pode ser utilizada, foi-se o tempo que a ciência determinava como as coisas são — é isso que as "revoluções" na física tem a dizer. Ou seja: ou a física calcula e não fala da realidade, ou ela não consegue um critério epistêmico para determinar qual, entre teorias contraditórias, representa a realidade. Isso não implica, de forma alguma, que a comunicação entre as pessoas não funcione por seu critério óbvio: é verdade que há um gato sobre o tapete se e somente se há um gato sobre o tapete. Se ela me der seis caminhos para o posto, eu sigo um dos seis, não os seis ao mesmo tempo. Se eu preciso saber onde fica o posto de gasolina, e a pessoa a quem eu pergunto deliberadamente me desvia do posto, eu chamo essa pessoa de desonesta. Da mesma forma, tergiversar para supostas dificuldades epistêmicas quando se está falando de simples definições, é uma amostra de, ou completa ignorância, ou simples desonestidade.
Uma coisa é a pessoa ser convencida, a outra é ela aceitar o diálogo. Uma proposição como "interdependência e criação não podem coexistir" é baseada na mera definição de interdependência. É o mesmo que dizer que um círculo não pode ter duas medidas de raio, já que a definição de círculo é pontos equidistantes do eixo. Se a pessoa alega como desculpa para o erro prova de sexta série que a geometria não euclidiana ou algo assim tem um outro tipo de círculo, e quer ganhar a nota: bau-baus para ela. Quando falamos círculo, no contexto da linguagem ordinária, na sexta série, e assim por diante, não é de um outro uso da palavra. É daquele uso, naquele contexto. Não se aplicar no contexto, é desonestidade, falta de compaixão, e assim por diante. Para falar com os outros, que dirá beneficiá-los através da fala, é necessário partilhar o contexto. É verdade que os lamas adquirem "conhecimentos" através da meditação que nem é possível descrever com palavras?
Sim. Não só os lamas, mas qualquer praticante sério. Na verdade, até mesmo qualquer um de nós, quando entra em contato com um dos objetos do sentido, uma bala de limão, por exemplo, só usa a expressão "sabor de bala de limão" para explicar, imperfeitamente, a experiência direta do sabor da bala de limão. O sabor, ele mesmo, é impossível de descrever (perfeitamente) com palavras. Então é claro que há sensações, mundanas mesmo, não da meditação, que são mais difíceis de descrever — e há aquelas que podemos dizer "indescritíveis". O próprio fato de usarmos esse adjetivo para certas experiências, dele existir, evidencia o fato óbvio de que estas experiências existem. É só uma distorção muito grande da língua, uma distorção filosófica, que pode começar a pressupor a existência apenas de fenômenos descritíveis. Você já teve "revelações" sobre o mundo ou coisa do tipo que você não conseguiu explicar nem para si mesmo? Estas revelações devem ser compartilhadas?
Nem pensar, se você não pode "explicar" para si mesmo, é porque não tem nada para entender. Mas é muito frequente eu entender algo que acho difícil explicar, porque isso depende muito do que o outro entende das minhas palavras. Isso é muito, extremamente frequente, mesmo antes do budismo, muito antes da meditação.
Algumas vezes é até mesmo irônico, porque enquanto você até acredita que está entendendo a pessoa, se ela está com muitas aflições mentais, o que é bem comum, num ponto da conversa ela pode assumir outra teoria de mundo, incompatível com a que ela mesma começou. E daí você está numa sinuca de bico, porque se você muda a argumentação de acordo, ela pode voltar para a primeira teoria. Então frequentemente eu faço malabarismo com 3 ou 4 visões que a pessoa me apresenta, e que eu veria como incompatíveis, mas que eu tenho que tomar cuidado para não fazer com que ela me entenda mal, ou que ache que eu não a entendo bem. Mas com o tempo a pessoa aprende certas habilidades de debate para debater com quem não sabe debater. Elas são muito importantes e muito compassivas. Eu quero treinar mais e mais nelas.
A natureza da comunicação dos ensinamentos é um dos meus tópicos favoritos, e mesmo na filosofia eu me interessava muito por Wittgenstein, que lida com o exato mesmo problema. Na forma superior no budismo, que é a prasangika madhyamaka, não se opera com nenhuma teoria que o "oponente" não tenha ele mesmo proposto. Em outras palavras, do lado da madhyamaka não se pode guardar nenhuma substancialidade, não se pode fixar, muito menos apegar-se por nenhuma teoria própria, apenas refutar tudo o que puder ser refutado, de acordo com o que é apresentado. O próprio modo de refutação utilizado é o ensinamento sobre a vacuidade, que o outro porventura pode vir a realizar, mas sempre por si mesmo, não como algo que é entregue como uma teoria mastigada.
Então, sempre o que se fala se deve falar para o outro, não deve existir nenhum conteúdo de conhecimento próprio, privado, e isso é sabedoria. Se buda era perfeito, imagino que ele tinha a retórica perfeita. Por que ele não convenceu todo mundo?
O carma dos ouvintes os impediu de ouvir de forma perfeita a ausência de retórica do Buda — que é a perfeição da fala. Existem perguntas no budismo que faltam ser respondidas? Algo a que grandes mestres dedicaram muito tempo de estudo e não obtiveram resultados?
Não. Isso é especulação, como o budismo surge do exemplo consumado do que produz o ensinamento budista, isto é, o Buda, não é possível não só produzir mais do que um Buda, como não é possível produzir outra coisa que não um Buda (ou um Arhat, no caso do hinayana). Assim, todas as outras questões, que lidam com o sonho, e não com o estado de Buda, fazem parte da especulação do tipo "se os corvos tem dentes", que é o exemplo dado nos tratados budistas para filosofia.
Essas outras ocupações são importantes quando tem resultados práticos dentro do sonho, resultados benéficos. Mas não são prioridade para quem está em busca da lucidez. Em outras palavras, os problemas científicos e filosóficos são secundários e menos importantes do que a realização do benefício definitivo. Se é tudo como um sonho, que utilidade tem a História?
Eu não vejo muita utilidade, mas a utilidade é a mesma de tudo mais — utilidade convencional, relativa. Seria niilismo dizer "se tudo é um sonho, que utilidade tem digitar isso?"
Por isso essa pergunta é um pouco irônica para mim, que não vejo tanta utilidade na história. Digo, entre tanta coisa que precisaria ser útil dentro do sonho — coisas como ética, por exemplo — justo a história vamos ressaltar? Mas nada disso tem "utilidade" no sentido último, fora do sonho. Dentro do sonho, muita coisa tem utilidade. E, como eu disse logo antes, não tem utilidade nenhuma rejeitar o sonho — isso é dar muita solidez a ele. Se ele é um sonho, por que ter aversão e má vontade quanto a ele? Tanto o apego quanto a aversão, o medo e a expectativa, ambos surgem da reificação do sonho: como algo real que pesa muito, como algo real que não pesa nada. O sonho é algo irreal, insubstancial, então por que se envolver com ele em termos de desejo, indiferença e aversão? O natural é com lucidez penetrar naturalmente no sonho sem nenhuma dessas contaminações. Como o budismo lida com a questão da memória, tendo em vista o conceito de permanência?
Que as coisas podem durar um tempo a gente sabe. Então eu li essa pergunta antes de dormir e, hoje, porque as causas e condições permitem, ela ainda está aqui. Então, enquanto as causas e condições permitem, existe lembrança. Depois existe esquecimento e distorção. Uma hora tudo é esquecido. Computadores inteligentes, conscientes e que sofram são possíveis no Budismo? Um computador inteligente e consciente que venha a surgir aparentemente estará na sua primeira vida e portanto não terá mau carma acumulado de vidas anteriores?
Segundo Sua Santidade o Dalai Lama, eles são possíveis.
Não existe "primeira vida" — se você entende o que é interdependência, sabe que nenhum fenômeno pode ter precedência final. Samsara é chamado de "existência cíclica", mas esse "cíclico" aí é de dimensões "topológicas" além de mero tempo e espaço. De fato, tempo e espaço são fruto do carma + condições também, originados em avidia, ignorância.
Assim, o que vai acontecer é que alguma consciência vai ter o carma para as condições da máquina. E esse bava, esse surgimento, essa concepção, é a coemergência desse carma com esse suporte — sem limite para o passado, e, desconsiderando a iluminação, sem limite para o futuro — sempre em sofrimento.
Mas a compaixão do Buda vai fazer surgir ensinamentos adequados para estes alunos também, ou pelo menos, faço a aspiração. Como o budismo lida com zumbis?
Se zumbis são sencientes, isto é, capazes de sentir em algum nível — compaixão. Se eles não são sencientes, então podemos matá-los. Eu não sei qual é o status de senciência de zumbis, mas em autodefesa, considerando que a vida de zumbi não é capaz de grande compaixão, a sua vida vale mais e seria correto dispor da deles.
Na cultura tibetana (não no budismo, mas o budismo também não nega) existem zumbis — mas eles ocorrem quando um moribundo habilidoso, um feiticeiro do mal, algo assim, encontra um cadáver fresco "em melhores condições" (i.e. mais jovem) e transfere sua consciência para lá, expulsando a consciência do falecido que (até 3 dias após a morte, em média) ainda está no corpo.
Esse tipo de zumbi também traz uma questão moral interessante. Na verdade o que causa o sofrimento da morte é o apego da consciência aos agregados — e nesse caso há algum carma em perturbar a consciência do falecido de cadáver bom — mas possivelmente não tanto quanto matar, embora, em alguns casos — se o ser estava praticando, por exemplo, possa ser pior do que matar (porque prejudica o ser no processo de renascimento). Já o que transferiu a consciência e agora anima um corpo que não tem condições adequadas de durar muito... bom, esse possivelmente não há problema em liberar — mas talvez daí a pessoa tenha que chamar um feiticeiro, porque o corpo já está morto... enfim, não é um problema tão corriqueiro, a não ser em anedotas.
Os problemas de zumbis na filosofia da mente são todos causados por problemas na definição da mente. Como a cultura tibetana tem um zumbi bem definido, e uma noção de mente bem definida, não há muito debate, a não ser com relação ao caminho — assim não há problemas de zumbi no budismo. Quer dizer... não há problemas filosóficos de zumbi, porque problemas de zumbi talvez até haja.
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