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6. Bom coração

O que é compaixão? Como praticar?

Compaixão é querer aliviar o sofrimento dos outros. Você pratica aliviando o sofrimento dos outros, ou treinando para ter mais empatia, atenção e meios para ajudar os outros.

O que é exatamente compaixão? Como exercê-la?

Compaixão é reconhecer o sofrimento do outro e ativamente se engajar internamente (por uma solução) como se esse sofrimento fosse de fato nosso.

A compaixão superior é indistinguível da vacuidade, que é a capacidade de reconhecer que todos os sofrimentos surgem, na sua raiz, de uma falta de reconhecimento da natureza livre de uma essência (da realidade e de todos os fenômenos em particular). Em outras palavras, sofremos porque reificamos as aparências — a compaixão portanto é o que ativamente busca dissipar essa reificação por quaisquer meios disponíveis. No nosso caso, em que somos também seres sem a sabedoria (o reconhecimento da vacuidade), nesse caso a compaixão é a inferior, que é paliar o sofrimento do modo que pudermos, ou até mesmo apenas aspirar um dia poder paliar o sofrimento.

No budismo compaixão é um objeto de treinamento: ela tanto é o fim por si próprio como um meio de atingir a sabedoria. Todos os seres possuem um potencial compassivo, e a prática budista em todas as suas formas busca treinar na compaixão, ou, melhor dizendo, revelar o mais possível esse potencial como ato.

Posso dizer que compaixão e vacuidade são a mesma coisa?

Não só pode, como deve. Mas é importante entender por que. Através da prática, você pode ter o objetivo da compaixão ou da vacuidade, e começando com uma, você termina na outra. Através da compaixão você reconhece a interdependência, e portanto a vacuidade. Através da vacuidade você reconhece a ausência de independência, e portanto a compaixão. Vacuidade é liberdade de ausência de inclinações, preconceitos, o que resulta em ver os seres como Budas em essência, e disso surge uma ânsia perante aquela essência não revelada — você vê todo aquele potencial e vê que ele não é exercido, isso é compaixão. Ao reconhecer a aparência como aparência, e a essência como essência, isto é sabedoria, que é o reconhecimento das coisas como elas são, isto é, vacuidade. Assim ao ver o ser-mãe-fenômeno como vazio, brota compaixão, e ao desenvolver compaixão pelo ser-mãe-fenômeno, necessariamente brota o reconhecimento da vacuidade. É a mesmíssima coisa.

Se a compaixão é nosso estado natural, por que tenho que meditar sobre ela?

Porque, segundo o budismo, só um Buda reconhece e revela seu estado natural. Como estamos cheio de obscurecimentos e marcas adventícias, que impedem, como nuvens que bloqueiam a luz do sol, o revelar dessa natureza, precisamos de práticas que efetuem essa purificação. Mas é importante entender que a compaixão não é construída, mas revelada. Isso faz muita diferença.

A compaixão, para o budismo, é um sentimento ou um estado de consciência?

Quase não se usa a expressão "sentimento" no budismo. Fala-se de aflições mentais. A compaixão não é uma aflição mental. Ela possui um aspecto cognitivo e um aspecto "energético", que é talvez o que se queira dizer por "emoção" — isto é, a base daquilo que algumas vezes sentimos fisiologicamente como um aperto na garganta. Nós não precisamos chegar a sentir fisiologicamente, mas esse é um modo de explicar o que se quer dizer por "energético".

Ela é dinâmica e dotada de capacidade tanto racional, no caso de uma compaixão que segue um raciocínio, quanto puramente atencional, empática, no caso de uma compaixão que seja não conceptual. Ambas são expressões do estado natural da mente, que não é um estado propriamente, com um início, meio e fim, mas propriamente natural e não fabricado.

Para nós, que não revelamos nossa natureza ainda, a compaixão pode se apresentar com início, meio e fim, e podemos treinar em compaixão — podemos deliberadamente desenvolver mais compaixão. A compaixão é boa para nós em primeiro lugar, porque nos liberta, naturalmente da prisão do eu, que é a fonte de todo sofrimento. Portanto a compaixão é cheia de bem-aventurança. Além disso, a compaixão é boa para os outros, já que invariavelmente seremos compelidos a ajudar diretamente, de muitas formas possíveis, e eventualmente essa ajuda será realmente benéfica aos outros. Também o próprio fato de nos movermos nessa direção provê um exemplo, que se for seguido, proporcionará felicidade aos outros. Assim, existem muitos motivos pelos quais a compaixão é tida com tanto apreço na prática budista.

E se eu tiver que abrir mão da minha felicidade pela felicidade de outra pessoa. Qual seria a melhor decisão?

A fonte mais confiável de felicidade é ajudar os outros. Todas as outras formas de felicidade são inferiores. Portanto, para quem sabe disso, e conscientemente traz felicidade a outro, particularmente sob alguma dificuldade, sob algum pequeno sofrimento, sob alguma perda de felicidades inferiores, não há dúvida do que é melhor.

Agora, se a pessoa faz isso porque outra lhe diz, ou porque está seguindo uma regra ou algo assim, nesse caso ela precisa refletir melhor sobre as verdadeiras causas de felicidade mais confiável e mais duradoura. Ao refletir sobre isso, naturalmente ela fará o que é mais inteligente, isto é, a ação altruísta.

Trazer benefício aos outros seres, no Budismo, baseia-se na premissa de que essa é a única forma de atingir felicidade, certo? Não se ajuda por altruísmo, mas por constatação através da experiência de que é a única forma de ser feliz plenamente?
Quanto menos altruísta, mais instável essa felicidade. Então a pessoa basicamente lida com sua honestidade vez após vez, e isso se chama prática. Quando ela abandona a noção de obter felicidade para si — abandona essa expectativa sem que isso signifique autodestruição ou falta de amor próprio — , essa é a felicidade definitiva de um bodisatva.

Começamos lidando com nosso egoísmo como ele já existe, sem nos enganarmos a respeito dele. E então, paulatinamente nós simplesmente largamos, pouco a pouco ou de uma vez, essa atitude. Mas toda vez que o egoísmo surgir, tentamos ser egoístas inteligentes, porque se queremos ser felizes, precisamos abandonar essas expectativas todas — o mais importante é que isso não significa simplesmente "se largar", esse é o diferencial. É um grande ego o daquele que se negar coisas, então simplesmente nos incluímos como mais um qualquer no nosso campo de compaixão que se amplia prática à prática.

Muitas pessoas quando começam a praticar o budismo percebem que são grandes negociadoras, e se desanimam muito por finalmente perceberem que não conseguem ser honestas consigo mesmo e abandonar a negociação. Aqui precisamos de bondade para conosco, e usar qualquer compaixão artificial, negociada, que consigamos gerar como um treinamento para compaixão cada vez maior, sem negociação. Isto é, ao reconhecer nossa limitação e não desanimar com ela, aceitamos alguma negociação, alguma artificialidade, algum egoísmo inteligente, em nossa compaixão — apenas aspirar que essas máculas não estejam ali já é a prática. Reconhecê-las e olhar para elas com estranhamento é prática suficiente. Aos poucos, quando criamos intimidade com nossa própria natureza, ficamos menos tensos e mais naturalmente honestos, e assim a compaixão natural, sem esforço e sem negociação, desabrocha sem maquinações.

Existe diferença entre compaixão e misericórdia?

O segundo termo nunca vi no discurso budista.

Compaixão tem um sentido técnico: é reconhecer o sofrimento do outro e não querer que ele sofra — e, se possível, agir como for necessário para aliviar o sofrimento.

Todos os seres são capazes de compaixão, isto é, possuem potencial para a compaixão. É possível treinar em compaixão, isto é uma das práticas essenciais do mahayana. Isto é, reconhecemos que nossa compaixão é limitada, e que pode vir a ser ilimitada — o reconhecimento da vacuidade permite que a compaixão seja ilimitada, mas mesmo antes disso, podemos incrementar vastamente a compaixão através de inumeráveis métodos.

A compaixão por todos os seres não acaba levando à indesejável tolerância com gente e entidades perversas que causam muito sofrimento?

Compaixão significa não coadunar com o que está errado e prejudica os seres. Não significa acatar visões ou ações errôneas, ou não tomar atitudes duras.

Agir a partir de uma visão preconceituosa com relação a pessoas seria desrespeitar uma das seis perfeições (paramitas), a tolerância?

Não, as paramitas não precisam ser "respeitadas". Elas são uma prática benéfica, mas não são uma obrigação. Elas são um tipo de obrigação para aqueles que tomaram votos de bodisatva, mas mesmo nesse caso, o critério de benefício aos seres é seu, isto é, você pratica da melhor forma que consegue, esta é sua obrigação, não alguma ação específica.

Nesse caso, agir de forma preconceituosa não está ligada a shanti paramita (paciência ou tolerância). Nessa paramita, a visão preconceituosa pode estar totalmente presente, mas mesmo presente, você não deve prejudicar o ser.

A visão errônea é a principal das raízes de sofrimento, e é a raiz do preconceito também. Mas ela não está particularmente ligada com a paramita da paciência ou tolerância. A vítima pode praticar a paramita, e o agressor pode estar cometendo várias desvirtudes, uma delas com certeza é ver os outros com má vontade, mas isso não se refere a manter a paz no sentido da paramita.

Porém, ter uma mente conceptualizadora, que separa as pessoas entre "aquelas de que gostamos" e "aquelas de que não gostamos", é abandonar o bom coração e a sabedoria. Normalmente, porém, a pessoa não consegue abandonar isso só porque "quer", ela precisa desenvolver essa qualidade, com esforço e deliberadamente, até que ela se revela natural. Antes disso, a pessoa pode artificialmente tratar com igualdade e cordialidade daqueles que ela não consegue deixar de não gostar.

E como desenvolvemos a compaixão imparcial?

Há práticas específicas em que visualizamos a diversidade de sofrimentos dos seres, e, por exemplo, os reconhecemos como seres-mães, ou analiticamente destrinchamos porque surge nossa aversão e apego por eles.

Também há uma prática chamada tonglen que nos ajuda quanto a isso. A instrução sobre essa prática deve ser buscada com um professor qualificado.

Agir com "compaixão irada" nada mais é do que agir com mais energia e força em prol do bem-estar de todos os seres? Um praticante inexperiente consegue isso?

Praticantes inexperientes precisam agir duramente principalmente quando veem a própria negatividade, e, secundariamente, quando a negatividade de outros pode causar malefício aos seres. Porém, um praticante inexperiente deve evitar qualquer ação onde possa haver algum elemento, por menor que seja, de agressividade. Portanto, um praticante inexperiente deve provavelmente evitar coisas como gritar ou violência física. Um praticante que tenha confiança em seu compromisso para o bem-estar do outro, pode até mesmo usar de meios desse tipo, quando seguro de que não há agressividade.

A ação compassiva que corta a negatividade é a ação que impede que a desvirtude seja cometida. Assim se evita o sofrimento da vítima, mas também, e principalmente, o sofrimento daquele que está agindo negativamente. Com essa motivação precisamente clara, e com quaisquer meios que estejam disponíveis, o praticante deve abandonar sua zona de conforto e agir de forma antipática, impopular, não compreendida pelos outros e facilmente criticável.

Quando a presença de algumas pessoas faz mal para nós é melhor se afastar ou persistir no convívio?

Depende do seu nível de prática. Se você consegue praticar, o que é melhor, você não se afasta. Se não consegue praticar, você humildemente reconhece a sua própria incapacidade, e se afasta.

Difícil pensar no Marquês de Sade como "diamante sujo de lama". Ele parece ser ontológica e obstinadamente mau mesmo. O budismo vê alguma chance para alguém como ele?

Dzongsar Khyentse Rinpoche disse numa ocasião que uma pessoa que obstinadamente traz sofrimento aos seres tem, inevitavelmente, pelo menos uma boa qualidade: ela entende bem o sofrimento. Num caso assim, e em geral no caso dos grandes vilões, basta girar algum tipo de chave, basta tocar em algum tipo de ponto sutil, que a coisa vira 180 graus, e a grande capacidade de causar mal se torna grande compaixão.

Milarepa, o maior santo tibetano, cometeu uma vingança em que matou dezenas de pessoas, além de destruir plantações e matar rebanhos de animais inteiros. Porém ele atingiu a iluminação naquela mesma vida.

E não precisamos entrar no árido e selvagem Tibete. Um dos alunos do Buda foi uma espécie de serial killer, tendo matado ritualmente quase 1000 pessoas. Angulimala, colar de dedos, ele colocava um dedo de cada pessoa que matava num colar. Mas ele teve o mérito de tentar matar o Buda em vez de sua própria mãe (que seria a 1000 vítima), e o Buda conseguiu, de alguma forma, fazer essa mudança de 180 graus, e ele atingiu o nirvana, se tornou um arhat.

Se uma pessoa estiver sendo assaltada na rua, por exemplo, como ela pode praticar a compaixão?

Muito simples: ela pensa no sofrimento que o ladrão está causando para si próprio no futuro — que é muito maior do que o de um assalto.

Mas só pensar na compaixão é o suficiente? Por quê? E se a pessoa deixar que o bandido leve suas coisas, não estará contribuindo para o bandido concretizar o carma?

Sim, mas se não houver meio hábil ou alternativa de evitar o assalto, ela se deixa assaltar. É melhor ela só ser assaltada do que agredida ou morta: isso causará mais carma ainda ao assaltante, e mais sofrimento. Além disso, a pessoa, mesmo enquanto praticante, raramente está preparada para morrer. Então ela não tem compaixão por nenhum dos dois — quando há uma arma envolvida, por exemplo.

Se houver meio hábil de evitar o assalto, até mesmo bater no assaltante ou algo assim, essa é a ação compassiva. No entanto, em geral sabemos que não é assim. Reagir é extremamente desaconselhável. Me arrependo muito de um assalto em que três indivíduos tentaram levar minha mochila com o notebook e eu reagi. Por sorte eles não estavam armados e eu consegui fazer os três correrem. Mas eu simplesmente me arrisquei, isso não é bom.

Outra vez apontaram um revolver para a minha cabeça, enquanto eu estava rezando, no ônibus. Dessa vez eu cheguei a pedir meus documentos de volta — para não ter que fazê-los de novo, mas percebi que o assaltante estava muito nervoso e fui sensato de não ficar discutindo ou conversando muito.

Pensar no sofrimento do outro é a compaixão básica. É ela que vai permitir a ação, quando a ação for possível para nós, na nossa circunstância. Muitas vezes a ação não é possível, por nossas próprias limitações, ou pelas limitações do objeto da compaixão, ou mesmo pelas limitações de circunstâncias fortuitas.

Nunca acontece de praticantes rezarem para que uma injúria seja vingada ou corrigida? Budistas tem sempre que tolerar injustiças? Não há nada análogo aos Salmos que clamam pela justiça divina?

Não existem injustiças, o que há é sofrimento. Reza-se para mitigar sofrimento. Entender que os seres sofrem por sua própria responsabilidade, e que aqueles que criam sofrimento aos outros são dignos de maior compaixão, é o que impede qualquer atitude diferente da tolerância. Tolerância aliás, é uma péssima palavra — serve apenas para o contexto inter-religioso, e talvez nem nesse — a palavra que se usa é compaixão.

No vajrayana você pode liberar um ser através da atividade iluminada. Isso significa que você consegue evitar que esse ser cause mais desvirtude ao transferir sua consciência daquela posição para outra, onde a ação negativa não faz sentido. Essa atividade é para o bem do próprio ser e dos demais. Mas para o ser pode parecer desagradável, porque ele tem apego a sua posição atual. Isso é feito através de meios hábeis que operam através da interdependência — como tudo mais.

Pedir reparação de que, a quem? A vingança não tem lugar nos ensinamentos budistas. Não faria sentido, não é mesmo? Já que o carma vai, impessoal e automaticamente, produzir seus resultados. E de fato, há um outro ponto muito importante. Se vemos aquele que nos prejudicou sofrendo, devemos ter compaixão. Se sequer regozijamos — se sequer agimos com indiferença — geramos carma para no futuro nós mesmos sofrermos. Então é o nosso próprio melhor interesse, egoísta mesmo, não regozijarmos com a vingança — nem mesmo em filmes, nem mesmo de personagens. Isso cria um hábito mental extremamente negativo.

No Sutra Lapidador de Diamantes o Buda conta um episódio em que foi torturado até a morte por um motivo trivial. Ele foi, numa vida passada, cortado em pedaços. Primeiro a primeira falange do mindinho, depois a segunda falange, depois o dedo todo, depois o outro, pedaço por pedaço, a mão etc. Depois as outras falanges, dedos, mão, braços... depois as falanges dos dedos do pé, o pé, a perna...

Isso porque o Buda, então um bodisatva, tinha conversado em privado com a esposa desse sujeito — sem malícia da parte do Buda.

Ele pergunta ao interlocutor desse sutra particular, Subhuti, porque ele foi capaz de não sentir raiva do agressor. E o aluno do Buda explica que, pela realização da vacuidade e o entendimento do carma, o Buda não teve sequer um impulso de sentir raiva, porque caso contrário eles passariam vidas escalonando essa rixa — como num desenho animado em que cada vez o outro vem com uma arma maior. Porque ele não guardava para si a concepção de um, outro, muitos e nenhum, ele sentiu compaixão.

O que seria então "trazer benefício" aos seres?

Trazer felicidade e bem-estar temporário e definitivo, ou ajudar a criar as causas para felicidade e bem-estar temporário e definitivo. O benefício definitivo é a iluminação, isto é, ajudar um ser a revelar sua natureza

Conversar com as pessoas, tentar compreender as mentes equivocadas etc., são maneiras de ajudar os seres?

Não necessariamente, mas podem ser um treinamento, e a aspiração pode eventualmente nos ajudar a agir efetivamente, e não meramente ouvir e tentar entender.

Ouvir e tentar entender pode ser compaixão, ou ajudar no desenvolvimento da compaixão.

É comum ter pensamentos horríveis, como de machucar pessoas, por exemplo? E a meditação e o estudo do budismo pode ajudar a entender esses pensamentos?

Comum... não sei. Se você ampliar a compaixão, naturalmente vai ser mais difícil ter tais pensamentos. Ampliar a compaixão é possível, é um dos objetivos da prática budista. Você amplia a compaixão ao refletir deliberadamente sobre o sofrimento dos outros e se colocar no lugar deles. Entender porque esses ou aqueles pensamentos surgem, daí já não sei — acho que não é útil. A maioria das práticas não se ocupa de conteúdos mentais, apenas os deixa onde estão.

A paz é a ausência do sofrimento? Ou a paz pode ser a compaixão em meio ao sofrimento?

Paz é normalmente uma das traduções da terceira paramita, shanti, "paciência". Significa estabilidade perante a adversidade, o tédio, o assombro, o medo, o nojo, a confusão. Ela é praticada por compaixão.

A paz da ausência de sofrimento, vamos chamar só de ausência de sofrimento, é o objetivo da prática do veículo estreito, o hinayana, que é considerado um objetivo egoísta pelo grande veículo, o mahayana. Ainda assim, foi um ensinamento que o Buda deu para as pessoas de pouca capacidade.

Quando você sofre, você pode transformar esse sofrimento em compaixão. Essa pode ser uma forma de praticar a terceira paramita. Seja pelo reconhecimento do sofrimento do seu "inimigo", quanto pelo reconhecimento de que outras pessoas sofrem mais, ou do mesmo jeito que você.

Normalmente os budistas não buscam paz, essa é uma noção muito frequente entre as pessoas, mas o budista pratica paz com o objetivo de atingir a iluminação. A iluminação é um estado de esclarecimento, e intensidade infinita de compaixão.

Disse a uma amiga que meu desejo é gostar de todo mundo igualmente e ela disse que isso é impossível. O que você acha?

Depende do que se quer dizer com "igualmente", e "gostar" não é uma boa palavra. Gostos e desgostos estão ligados a hábitos mentais. No budismo praticamos compaixão, que vai além de gostar e não gostar. No início pode parecer mais fácil ter compaixão de quem gostamos, mas com o tempo é, de fato, mais fácil ter compaixão por quem não gostamos.

Mas sim, é possível atingir imparcialidade em termos de compaixão, basta para isso entender a raiz do sofrimento, que todos os seres que possuem essa raiz, embora sejam diferentes, se tornam alvo da mesma compaixão, do mesmo tipo.

Por outro lado, olhar para as pessoas do mesmo jeito, isto é, reconhecer o que nelas há de além das características, é exatamente a prática da compaixão-sabedoria, além dos julgamentos. Simultaneamente, porém, vemos os seres com todas as suas características particulares, e com todas as suas diferenças. Ver dessa forma duplamente o que há de comum a todos os seres que sofrem, e o que há de único em cada um deles é o que possibilita a ação compassiva de um Buda. A ação e a compaixão portanto são a mesma, no sentido do comprometimento completo com a situação de forma imparcial e sem julgamentos, e são diferentes, no sentido do respeito completo por qualquer particularidade.

Se um ser deixar de gostar ou não gostar, ele não se tornaria apático? Porque seria bom ser alguém que não gosta nem desgosta? O melhor não seria, pelo menos, gostar de tudo?

O darma não usa a língua de forma frívola, porque ao estudar a mente é necessário ser preciso e um bocado técnico com a terminologia.

Gostar e não gostar são o que chama-se de "preferências", vedanas, que estão vinculadas a hábitos. É claro que, se a pessoa não é precisa com as palavras, ela vai igualar compaixão por todos os seres com preferência por todos os seres. A compaixão pode ser também um hábito, para quem não a reconhece como uma qualidade natural — mas o que ela é de fato é uma qualidade natural, não uma preferência. O treinamento em compaixão pode começar com a formação de hábitos, mas no fundo ele não é um desenvolvimento da compaixão, e sim um revelar, um reconhecimento, uma fruição de uma qualidade natural. Então existe uma diferença muito grande entre preferência, que é algo artificial, embasado em tendências e hábitos (adventícios e que surgem da ignorância) e a compaixão, que em seu sentido mais real, é uma qualidade espontânea da natureza de buda que todos possuem.

As preferências são artificiais, parciais, duais, separativas, temporárias, baseadas em causas e condições (muitas vezes ao ponto de se poder apontar "porque se gosta", ou se vincular ao eu, "isso é a minha cara"). Portanto, do jeito que preferências são definidas no darma, não faz nenhum sentido dizer "gostar de tudo", gostar é, necessariamente, gostar de algumas coisas, de algum jeito, por algum tempo, por algum motivo. As preferências são totalmente condicionadas (tecnicamente, pelo "contato" dos órgãos dos sentidos com os objetos, com os próprios órgãos dos sentidos, que são uma interface com nome-e-forma, que são uma forma de estabilizar a consciência, que é um surgimento natural das marcas e hábitos mentais, que são fundados na ignorância: 7. vedana, 6. spasha, 5. shadayatana, 4. nama-rupa, 3, vijnana, 2. samskara, 1. avidia — que são os 7 primeiros dos doze elos).

A apatia também é um hábito mental, e a pessoa pode inclusive ter preferência, inclinação, gostar da apatia — o que é causado pela ignorância. A psicologia define como "deficiência do afeto", isto é, falta de empatia, compaixão.

A compaixão é natural, incondicional, não causal, atemporal, criativa e cheia de bem-aventurança. Ela pode ser treinada como um hábito, mas como ela é um hábito que se coaduna com a realidade fundamental e não corruptível em cada um de nós, o abandono do hábito (positivo) quando a compaixão surge por si só é a espontânea manifestação das qualidades de um Buda. Também é impossível compaixão completa enquanto há preferências, gostar e não gostar. Compaixão portanto não é gostar de tudo, e sim beneficiar e ter afeto por todos independente das preferências, dos condicionamentos, das questões temporárias. A total superação da apatia é ter compaixão, afeto, empatia, até por aqueles que nos desagradam, e principalmente por estes — porque com o tempo e com a prática da virtude, o que nos desagrada é a ação negativa — e seres envoltos em ações negativas são desagradáveis. Mas é exatamente por eles que mais abandonamos a apatia e geramos a empatia.

Se estamos falando com uma criança, podemos até dizer "é gostar de todos, de tudo" — mas quando vamos criando um vocabulário mais preciso e mais útil na comunicação com outros budistas, então precisamos separar os termos de acordo com suas definições técnicas.

Uma barata é um ser digno de compaixão no Budismo? Há algum problema em eliminá-las?

Claro. Elas sofrem.

As virtudes são as seis perfeições?

Tecnicamente falando, não. As virtudes são o oposto das desvirtudes, assim: salvar vidas, fazer doações, praticar sexualidade benéfica a todos os envolvidos, falar a verdade, falar mansamente, falar com propósito (e não inutilmente), louvar e elogiar o que merece ser louvado e elogiado. Ter boa vontade com os outros, ser desapegado e manter o darma puro em mente.

Mas as seis perfeições e as quatro qualidades incomensuráveis também são virtuosas, é claro.

Por favor, você poderia explicar um pouco sobre as seis perfeições?

As seis perfeições são ao mesmo tempo práticas e qualidades inatas da mente. Isto é, pratica-se as seis perfeições para reconhecer a natureza da mente com suas qualidades. Elas são praticadas em termos das três esferas, agente, paciente e ação. No sentido último, reconhece-se a inseparatividade das três esferas.

As seis paramitas são generosidade (material, de tempo e atenção e de prática espiritual), ética (disciplina moral, austeridade e engajamento no treinamento da mente), paciência (consigo mesmo, com os outros e com a profundidade dos ensinamentos), empenho (diligência, perseverança, alegria no esforço que traz benefício aos outros, em particular na divulgação e longa vida do puro darma), concentração e sabedoria.

O que é bodicita?

É a aspiração e a ação de beneficiar os seres num sentido último, isto é, a aspiração e o engajamento em ajudar os seres a revelarem sua natureza de buda. Difere da compaixão em que esta inclui o aspecto relativo, de apenas fazê-los deixar de sofrer, temporária e definitivamente, e não contém o aspecto de necessariamente desejar que suas qualidades floresçam. Bodicita é desejar o fim do sofrimento definitivamente e, além disso, a realização definitiva das qualidades de um Buda. E se esforçar nessa direção.

É querer e fazer (aspiração e ação, dois tipos de bodicita) que os outros sejam Budas.

Se tudo é sonho, o sofrimento também não é ilusório? E não seria então a indiferença mais razoável racionalmente? Se tudo é do jeito que é, por que eu devo sofrer-com, ter compaixão por algo que ultimamente não é real?

Essa é uma pergunta bastante comum. Qual é o objeto último de compaixão? A ignorância de reificar o sonho. Segundo o budismo, a base do sofrimento é exatamente essa, e não é possível ser verdadeiramente compassivo sem essa noção — todas as compaixões derivadas, sem isso, não são compaixão de fato.

Então é exatamente o oposto, se a pessoa não tem noção de que tudo é um sonho, ela apenas sofre junto, sem ter possibilidade verdadeira de ajudar.

Todos os nossos sofrimentos comuns (exceto o sofrimento de reificar) são como o sofrimento de uma criança que perdeu um brinquedo. Você diz para ela "mas aqui tem outro", e não adianta. É porque reificamos nosso corpo que a morte se torna um sofrimento, e assim por diante.

Então reconhecer o sonho como sonho, sabedoria, vêm junto com a compaixão por aqueles que reificam o sonho.

Retorne ao índice. Envie suas perguntas, correções e sugestões para padma.dorje@gmail.com. Última alteração em 2017-10-28 07:09:53.




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