Distorções Comuns
Quais são as distorções mais comuns quando um brasileiro busca praticar o darma?
• achar que o objetivo da meditação seja esvaziar a mente e não pensar em nada.1Acho surpreendente que esse seja um dos pontos mais discutidos quando a mensagem é repostada em fóruns. Mestre Dogen claramente disse “meditar é pensar além de pensar e não pensar”, e no budismo tibetano, um treinamento na ausência de conteúdos mentais é causa de renascimentos pouco-auspiciosos, como animal, por exemplo. A não conceitualidade da meditação não é uma simples ausência de conteúdos, um não pensar que é apenas um branco mental, e sim um estado de inteligência vívida que não tem fixações. Sobre o assunto escrevi em Além dos conceitos: o intelecto visto como obstáculo.;
• acreditar que os ensinamentos sejam explicações (sobre a realidade, sobre como as coisas de fato são) e não um método para ir do sofrimento à liberdade.
• dar muita importância ao contexto histórico (muitas vezes ao mesmo tempo em que paradoxalmente se dá pouca importância ao aspecto formal), tratar o o darma como um evento social e cultural apenas.
• acreditar que é suficiente ler sobre budismo e tentar praticar sozinho (não levar a sério o refúgio na sanga)2 Sobre este ponto fiz um vídeo no Canal Tendrel Budista de internet.;
• acreditar que não há problema em estudar o darma aleatoriamente, ou de acordo meramente com desígnios e inclinações pessoais3Sobre a questão fiz um vídeo no Canal Tendrel Estudar os sutras mahayana.;
• achar que o professor é dispensável;
• qualificar o professor por carisma, número de alunos ou sucesso como empreendedor, e não por conexão pura com a linhagem e autenticidade dos ensinamentos4Sobre professores falsos, fiz dois vídeos: Problemas de linhagem, Conexões radioativas.;
• acreditar que renúncia significa cortar a relação com as pessoas ou ser indiferente para com elas;
• achar que compaixão leva a uma espécie de passividade para com quem nos prejudica (uma pessoa compassiva seria sempre “passada para trás”, ou feita de boba)5Ver o vídeo no Canal Tendrel Ter compaixão não significa ser bobo;
• achar que todo monge é um professor do darma, que todo lama é monge, e coisas desse tipo (confundir títulos hierárquicos dentro de uma organização, ordenação tomada através de votos perante a sanga e ordenação pela linhagem através da realização)6Sobre isto escrevi em Hierarquia e estilos de vida.;
• achar que se pode simplesmente “escolher” qual linhagem se segue, ou mesmo que prática se faz ou que ensinamento se aceita, como se fosse um produto num supermercado que avaliamos prós e contras e levamos para o caixa — sem entender que este são processos de relacionamento com a sanga, e não decisões unilaterais, mesmo porque dependem muito de conexões e possibilidades cármicas que podemos possuir ou não7Sobre o tema, o vídeo Qual é minha linhagem?, e o texto Taxonomias do darma do Buda.;
• cair em alguma propaganda de “budismo moderno”, enquanto que a maioria dos centros no ocidente se preocupam em adaptar os ensinamentos para a prática cotidiana das pessoas, e a maioria dos centros que faz alarde sobre modernização está na verdade distorcendo os ensinamentos. Modernizar o budismo é de fato preciso, mas vender o centro de darma com esse marketing é sinal de que há algo errado;
• acreditar que o eu é algo a ser destruído; o eu nunca existiu, senão como uma convenção sem referência correspondente (uma coisa definida, separada, tangível ou intangível, concreta ou abstrata) que intensamente tomamos como real por força de hábito. Apego ao eu é o problema, o eu é apenas uma convenção sem referente, entre ilusões que se encontram8Toco lateralmente no assunto em Filosofia da linguagem ocidental e vacuidade budista. Ver também Ausência de eu.;
• achar que iluminação é apenas uma espécie de êxtase;
• achar que o samsara é um mundo inerentemente existente (“este mundo”, ou ainda, o trabalho, os filhos, a festa, ou o “universo” como descrito por físicos — e raramente o centro de darma ou uma montanha isolada por exemplo), e não uma experiência;
• achar que os reinos são meras metáforas, reificando o reino humano como inerentemente existente — ou, no extremo oposto, acreditar na existência inerente do reino humano ou de todos os reinos9Discorro sobre o tema em Seriam os reinos budistas apenas metáforas, bem como no vídeo Os reinos budistas realmente existem?.;
• achar que o budismo promove algum tipo de liberalidade ou relativismo, ou se engajar numa forma moralista de budismo, onde a ética por obediência a regras está acima da ética por sabedoria;
• acreditar que os diversos níveis de ensinamentos são incompatíveis, ou achar que não há níveis de ensinamentos. Confundir os níveis de ensinamentos e usar subterfúgios da interpretação com base no entendimento absoluto para desconsiderar problemas relativos (“se perder na visão”);
• em algumas formas de budismo tratar as práticas e ensinamentos como uma “escolinha”, na qual se procura atingir o mais rápido possível uma “pós-graduação”. Uma forma de materialismo espiritual;
• achar que noções de renascimento superam por si só o medo da morte;
• achar que renascer necessariamente é uma boa coisa;
• achar que é possível praticar o darma sem a noção de renascimento (sim, mesmo o Zen — erro cometido por até mesmo alguns supostos professores)10Existe budismo sem renascimento?.;
• achar que carma é linear, que carma é destino (alguém prejudicando outro ser estaria “ajudando aquele ser a experimentar seu carma”), que existem “senhores do carma”, confundir carma com culpa;11Ver o livro de Traleg Kyabgom Rinpoche Carma. O que é, o que não é, e sua importância..
• achar que o tempo de prática ou de estudo que um determinado praticante necessariamente implique que ele seja um bom praticante;
• achar que os títulos, roupas ou posto que um praticante possui ou exibe necessariamente impliquem que ele seja um bom praticante;
• buscar o darma como quem se filia a um clube (apenas uma atividade social a mais), ou buscar o budismo para ganhar um título, ou roupas, ou posto. Uma forma de materialismo espiritual;
• esperar uma cobrança para efetuar oferendas em dinheiro ou trabalho (e pior, a cobrança é feita, numa dupla distorção que passa a ser circular)12Ver o vídeo A primeira prática budista.;
• esperar que o darma venha até você — não achar necessário viajar, mesmo dentro do próprio Brasil, para ir atrás de ensinamentos — e esperar que uma “filial” seja instalada em sua cidade, por iniciativa da “central” (e pior, mesmo sem uma sanga existir, numa dupla distorção, a “central” produzir um templo e ficar esperando uma sanga se formar — sendo que a sanga que faz o templo, não vice-versa);
• tratar o professor como amigo, terapeuta ou pai (embora o professor possa usar essa conexão para nos tocar de alguma forma, devemos paulatinamente entender o papel do professor e nos posicionarmos de acordo, e não descansar nessas atitudes);
• esperar que os budistas sejam santos e realizados e (naturalmente) decepcionar-se ao encontrar com eles;
• esperar que todos os budistas pratiquem desapego ao estilo monástico mais despojado, não entender que a prática do desapego pode ocorrer em meio aos objetos dos sentidos, e que, portanto, mesmo alguém muito próspero e mesmo ostentador, ou alguém com claros defeitos aparentes, por exemplo, pode ser um bom praticante de desapego (o que só ficaria evidente quando não sofresse com a manifestação natural impermanência de seus supostos objetos de apego, e não pela mera ausência desses objetos);
• esperar que as pessoas na sanga sejam agradáveis (ou pior, achar que você pode ser desagradável porque todos ali deveriam ser bons praticantes de paciência);
• usar o templo/sala como clube para encontrar amigos (ou mesmo namorado(a)s);
• tomar os retiros como apenas ou necessariamente um momento de descansar da vida atribulada (muitas vezes eles são mais intensos e cansativos do que nossa vida cotidiana);
• procurar o budismo para vencer o estresse ou ficar mais saudável — tratar o budismo como uma mera forma de terapia (embora possa ser uma porta de entrada, é preciso amadurecer esta pseudoconexão e transformá-la numa conexão de fato);
• procurar no budismo explicações sobre o “sentido da vida” ou a “natureza da realidade” (em geral, se essa for a atitude, apenas surgirão mais dúvidas — a atitude com relação ao darma é reconhecer a doença verdadeira, o sofrimento da experiência cíclica, e buscar o darma como remédio, não como explicação);
• decepcionar-se por não ser proselitizado.
Este texto foi escrito em 2001 e levemente adaptado com o passar dos anos, última alteração em junho de 2004.
1. ^ Acho surpreendente que esse seja um dos pontos mais discutidos quando a mensagem é repostada em fóruns. Mestre Dogen claramente disse “meditar é pensar além de pensar e não pensar”, e no budismo tibetano, um treinamento na ausência de conteúdos mentais é causa de renascimentos pouco-auspiciosos, como animal, por exemplo. A não conceitualidade da meditação não é uma simples ausência de conteúdos, um não pensar que é apenas um branco mental, e sim um estado de inteligência vívida que não tem fixações. Sobre o assunto escrevi em Além dos conceitos: o intelecto visto como obstáculo.
2. ^ Sobre este ponto fiz um vídeo no Canal Tendrel Budista de internet.
3. ^ Sobre a questão fiz um vídeo no Canal Tendrel Estudar os sutras mahayana.
4. ^ Sobre professores falsos, fiz dois vídeos: Problemas de linhagem, Conexões radioativas.
5. ^ Ver o vídeo no Canal Tendrel Ter compaixão não significa ser bobo
6. ^ Sobre isto escrevi em Hierarquia e estilos de vida.
7. ^ Sobre o tema, o vídeo Qual é minha linhagem?, e o texto Taxonomias do darma do Buda.
8. ^ Toco lateralmente no assunto em Filosofia da linguagem ocidental e vacuidade budista. Ver também Ausência de eu.
9. ^ Discorro sobre o tema em Seriam os reinos budistas apenas metáforas, bem como no vídeo Os reinos budistas realmente existem?.
10. ^ Existe budismo sem renascimento?.
11. ^ Ver o livro de Traleg Kyabgom Rinpoche Carma. O que é, o que não é, e sua importância..
12. ^ Ver o vídeo A primeira prática budista.
Três ondas de distorção do budismo no ocidente A 2ª onda: a distorção dos românticos
Neste artigo são apresentadas distorções causadas pelo romantismo alemão/inglês, com viés no misticismo e universalismo da Teosofia e no irracionalismo de D.T. Suzuki. Ambas as distorções foram intensificadas pelo trabalho de C. G. Jung.
Livros recomendados por Dzongsar Khyentse Rinpoche
Alguns livros recomendados por Dzongsar Khyentse Rinpoche durante suas palestras ou na sua atividade em redes sociais.
Mindfulness e McMindfulness
Qual a posição budista sobre a apropriação de práticas e ideias pela ciência e por terapeutas genuínos, bem como por picaretas?
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