Seriam os reinos budistas apenas metáforas?
Muitas vezes os professores do darma, em particular no ocidente, adotam uma interpretação psicológica quanto aos elementos budistas menos palatáveis ao gosto moderno, principalmente quando tais aspectos parecem desafiar as superstições materialistas prevalentes. Mas é mesmo preciso acreditar na existência efetiva de vários céus e infernos para praticar o darma? Os reinos de sofrimento, as terras puras e seus habitantes realmente existem de acordo com as expectativas e valores da Índia medieval — rios de lava ou leite com mel, palácios e adereços próprios das monarquias védicas, e criaturas tais como yakshas, rakshasas, gandarvas, nagas e pretas?
A noção de vacuidade nos leva a não reificar nenhuma existência, particularmente a não reificar esta existência presente, como seres humanos — com mãos e olhos que usam computadores e leem textos como este —, como algo mais que um sonho. Então, evidente que há outros sonhos possíveis, tão reais — ou, melhor dizendo, irreais — quanto este.
Enquanto acreditamos em algo que verdadeiramente exista, não há possibilidade de transcender as experiências de sofrimento, o samsara. Por outro lado, se não entendemos que as experiências-de-sonho dos seres são inadvertidamente tomadas por eles como reais na forma com que se apresentam, não haverá motivação alguma para transcender o ciclo infindável de experiências boas e ruins — que além de incertas e não confiáveis, na soma total das coisas não têm eira nem beira, nem sentido algum.
Portanto é preciso manter uma visão dupla, reconhecer o sonho como sonho, e entender seu fascínio e a possibilidade de engano, de tomá-lo por algo mais do que ele é.
Muitas vezes o ensinamento budista não pode começar diretamente explicitando a natureza da realidade. Ele precisa descer até o engano dos seres e trabalhar com a confusão como ela se apresenta — pelo menos até que certos nós sejam desfeitos e assim se abra a possibilidade de pensar claramente e permitir o reconhecimento de como as coisas realmente são. Antes disso, é essencial falar de um modo benéfico e adequado ao entendimento de quem ouve.
Atualmente um problema secundário (momentâneo no espaço e no tempo), e que advém da ignorância básica mais comum a todos os seres, é cairmos em algum tipo de superstição materialista sobreposta a reificação usual de uma existência “não-como-sonho” deste âmbito humano. Nessa segunda reificação tudo é “confirmado” por uma ciência circular, que necessariamente opera e obtém seus resultados unicamente dentro do sonho.
Essa ciência muitas vezes reconhece que não trata de e não diz respeito a sentidos ou valores, ou até mesmo porventura em suas formas ideológicas assume que as coisas são de fato aleatórias e “sem sentido”. Mesmo assim, pelo seu sucesso relativo em explicações invariavelmente, por definição, incompletas — mais do que isso, meramente funcionais —, e por nossa crença reificada no sonho e em seus conteúdos, simplesmente muitas vezes acatamos que somos apenas justamente isto que se apresenta, do exato modo como se apresenta nessa perspectiva limitada. Essa substância de sonho, que usualmente não reconhecemos como tal, é vista como tudo que existe, até que chega o momento em que, supõe-se, a experiência toda apenas acaba. Uma história contada por um idiota, signifying nothing — como o bardo inglês tão bem colocou.
Assim, quando essa dificuldade composta pela reificação do sonho recebe essa segunda mão de verniz de ignorância (via modernidade humanista e cientificista prevalente como ideologia, no contexto deste sonho), torna-se razoável empregar um ensinamento expediente que psicologiza e transforma em metáforas todos os elementos mais subversivos do darma (perante essa ideologia). Então, a resposta rápida é que os reinos não são apenas metáforas, mas de acordo com a ignorância dos seres a serem beneficiados, podem sim ser ensinados como metáforas.
A distorção é tamanha que usualmente a visão metafórica é tida como mais realista e superior, enquanto que a visão tradicional, que não reifica nenhuma das aparências — nem mesmo a atual, como ser humano — é tida como supersticiosa, primitiva ou inferior.
Desafiando a crença hegemônica
Para tomar refúgio e praticar o darma é preciso reconhecer que reificamos o sonho, e reconhecer que é dessa reificação — dessa solidez que damos a algo que é irreal — que surge o sofrimento em todas as suas formas. Então é preciso reconhecer a natureza do sonho, e nosso hábito de reificação. Ambos os conhecimentos são centrais para entender o que é um Buda, e tomar refúgio, isto é, fazer o compromisso de seguir os ensinamentos e atingir o mesmo resultado. Nesse escopo torna-se útil estudar vários tipos de sonhos possíveis, categorizados de forma ampla como uma gama onde certas experiências boas ou ruins predominam. E, para isso, se estamos suficientemente livres das arbitrariedades impostas pela ideologia hegemônica, podemos (e devemos) utilizar as descrições tradicionais.
Por exemplo, os dezoito infernos detalhados pela tradição budista, que muito têm em comum com as perspectivas da tradição védica na qual o Príncipe Sidarta foi educado e ensinou, representam vários tipos de solidificação da emoção aflitiva da raiva, através de ações repetidas e hábitos.
Se por um lado esse modo de apresentar os ensinamentos remete a uma cultura específica de um momento no espaço e no tempo, o fato é que essa perspectiva cultural nunca se mostrou um obstáculo para o Buda e seus alunos — inclusive ao longo dos séculos penetrando outras culturas asiáticas muito diversas, e que não tinham relação alguma com as estruturas culturais indianas. Ela nunca foi encarada como obstáculo até o estabelecimento desta modernidade globalizada, na qual as visões tradicionais se viram substituídas pela perspectiva científica.
Seria mero relativismo aceitar que qualquer perspectiva cultural necessariamente sirva igualmente aos propósitos e resultados budistas — isto é, aquelas qualidades que reconhecemos em nossos professores e queremos para nós mesmos. Pelo contrário, se somos capazes disso, devemos reconhecer as formas tradicionais como os meios mais garantidos de acessar o caminho budista. E isto considerando o caminho budista na sua completude: de encarar o mundo a efetuar o treinamento, e enfim abandonar quaisquer formas particulares.
Há vários motivos para que isso seja assim.
Embora muitas vezes se veja o humanismo científico como bastante compatível com aspectos dos ensinamentos budistas, para aqueles interessados em aprofundar-se nos ensinamentos é sempre interessante desafiar preconcepções culturais de todo tipo. Particularmente as mais óbvias e prevalentes.
Modo geral, nossa dificuldade com certos aspectos é que eles ofendem nossas expectativas estéticas, formuladas com base em superstições materialistas. Essas expectativas não são examinadas, e nossa resistência não passa disso: essas coisas soam medievais, lembram os mais ridicularizados aspectos do cristianismo, não parecem sofisticadas. Se nosso amigo não budista ouvir sobre essas coisas vai pensar que aceitamos qualquer duende psicodélico, ou algo assim.
Mas nada poderia estar mais equivocado.
Os sábios do passado, como o próprio Buda, não precisaram dos conhecimentos científicos que temos hoje para atingir uma vida boa e perfeita, dotada de sentido, e benéfica aos outros. De fato, se acreditamos que o Buda era um ser (como o título implica) desperto, que reconhecia a realidade, e a partir disso demonstrava incansável compaixão ensinando, por 42 anos, incontáveis seres a levarem vidas significativas e reconhecerem a realidade — sabemos que isso nada tem a ver com a resolução de integrais, telescópios ou o uso da ressonância magnética para bisbilhotar o cérebro.
Podemos não acreditar que o Buda era um ser desse tipo, ou que não temos como saber que tipo de ser ele era. O recomendado nesse caso é ver os grandes professores do darma como eles se apresentam hoje, e verificar se as qualidades deles nos inspiram. Se for o caso, então está justificado experimentar o método que eles mesmos utilizaram para fazer desabrochar estas qualidades.
Nossa tendência atual muitas vezes é apenas desafiar o que é velho e tradicional (e que no ocidente realmente pode ter se mostrado caduco ou inadequado), mas muito raramente assumimos uma perspectiva desafiadora perante as prerrogativas da ideologia hegemônica. Isso espelha o fato de que duvidamos de infernos, ainda que o problema maior, na visão budista, seja acreditar tão fortemente na realidade desta experiência atual! Da mesma forma, nosso ideal moderno consegue desafiar a crença no “sobrenatural”, ou em Deus — mas não duvida nem um momento da própria noção de um “eu”. Pelo contrário, tudo parece projetado e voltado para o templo da adoração ao indivíduo e sua suposta “liberdade de consumir” — o que revela uma sinergia muito clara entre materialismo econômico e o materialismo metafísico. O resultado final dessa sinergia se manifesta nas epidemias de aflições mentais e problemas ambientais com que nos deparamos.
Ao reificar este mundo, ele se torna um objeto, e os seres que vivem nesse mundo se tornam também meros objetos — recursos a serem explorados. A solidificação das aparências cria a vítima e o algoz, num sofrimento único de ausência de sentido.
A explicação metafórica não desafia a superstição materialista
Um dos motivos centrais para não acreditarmos em outros reinos é justamente acreditarmos demais neste sonho presente — que abrange todo nosso arcabouço justificativo, inclusive a ciência. E isso de forma alguma equivale a negar a ciência: todo mundo concorda que ela funciona — dentro do sonho, imperfeitamente, e sem tratar (de forma legítima) de valores ou sentidos.
Mas algumas vezes exigimos da ciência algo que ela não promete (embora algumas vezes pareça prometer): sentido, profundidade, valores. Algo certeiro sob o que orientar nossa vida.
De fato é preciso encarar a ciência (na sua forma atual) como o exercício restrito de conhecimento que é: não trata das questões que realmente importam, mas de questões funcionais — e nisso é muito boa, e totalmente compatível com o darma. O problema é quando há um salto não justificado expressando que o conhecimento atual (e o escopo de possibilidade de conhecimento delimitado pelas prerrogativas atuais) é tudo que há. Isso pode até nem sempre acontecer explicitamente, mas acontece frequentemente na versão ideológica de ciência que cada um de nós como leigos carrega. Como antídoto para isso, precisamos entender que a ciência não trata, e nem muitas vezes sequer pretende tratar, das questões de sentido e valor.
Ainda que, estritamente falando, seja verdade que o budismo só é efetivo quando coemergente com os hábitos e ignorâncias prevalentes num dado âmbito — isto é, precise necessariamente lidar com obstáculos intelectuais, tanto de pessoas quanto de grupos e culturas, e isso hoje incluiria a ciência — é preciso reconhecer que a estrutura tradicional dos ensinamentos mostra vantagens: até mesmo sua superação já foi testada, vez após vez.
Em certo sentido é só uma moda temporária a ideia de que o novo é sempre melhor. Ora, até nós hoje, totalmente afogados na tecnologia, sabemos que, quando lançam uma versão nova do sistema operacional que usamos no computador ou no celular, antes de sair instalando é prudente bisbilhotar o que andam falando pela internet — se não está vindo com alguns erros novos, se não gasta sua bateria muito mais rápido, se vale a pena o incômodo. Algumas vezes leva um tempo para acertarem tudo, e o neófilo — aquele que adora a novidade — sofre como cobaia.
Para o budismo, por muito tempo, e talvez até hoje se possa dizer isso, o novo raramente é melhor. Os problemas de que o Buda tratou são atemporais, e as respostas do Buda para estes problemas são igualmente atemporais. Isso não quer dizer que certas adaptações orgânicas não surjam, mas é preciso estar sempre ciente dos potenciais de distorção, e do fato óbvio que as novidades, além de trazerem coisas boas, invariavelmente trazem novos desafios.
Quando o Buda usou as perspectivas e vocabulários disponíveis e inteligíveis em sua época, ele já revelou suas deficiências, e seu caráter expediente. A tradição budista vem com “saída de emergência”, ou com “botão de autodestruição” — ao chegarmos à outra margem não é nem que apenas possamos abandonar o barco: não faz sentido não abandoná-lo. Ao nos curarmos da doença, se não paramos de tomar o remédio, o próprio remédio passa a nos deixar doentes. Isto já está totalmente resolvido nos ensinamentos tradicionais.
Em outras palavras, se é preciso eliminar todo e qualquer tipo de arbitrariedade — e como tradicionalmente isso já foi resolvido com o que era tradicional na Índia (o budismo já tinha desde o início como lidar com suas peculiaridades indianas e transcendê-las) — não é necessário esforço deliberado em adaptar o budismo a novas arbitrariedades: é mais importante reconhecermos que em todos os casos há arbitrariedades.
Até mesmo para superar a fixação à modernidade a tradição se mostra útil. Essa nova perspectiva ainda pode não ter sido adequadamente desafiada, mas se ela for reconhecida como arbitrária — se entendemos que nossa experiência atual é um sonho — está tudo resolvido. Não é preciso achar um remédio para cada confusão, se a confusão raiz for dissipada, todas as confusões ramificadas a partir dela se dissipam.
Como este é um momento incipiente da penetração do budismo no mundo globalizado, muitas vezes é naturalmente mais fácil usar as arbitrariedades tradicionais para vencer as arbitrariedades da modernidade. O objetivo é transcender todas as arbitrariedades, mas começamos com as mais superficiais. Isso exige, é claro, que superemos certos preconceitos, e que tenhamos flexibilidade cognitiva.
Porém, se alguém não esta disposto a encarar que tudo que se apresenta é como um sonho, talvez essa pessoa não tenha muita interdependência com o budismo em primeiro lugar. Mesmo assim, mesmo entre nós que achamos a ideia interessante, é preciso treinar em reconhecer as coisas assim, e levar a sério as implicações disso. E isso não implica nenhum tipo de niilismo ou abandono do sonho: essas atitudes também vêm de uma atitude de reificação, como se o sonho por si só fosse algo tão problemático assim, e não nosso engano e nossa capacidade de se enganar.
Caso alguém acredite muito fortemente e mantenha como irrevogável a noção de realidade dessa existência presente nesse mundo de computadores, asteroides e átomos, então talvez seja adequado usar a noção de reino em sua implicação meramente metafórica, psicológica ou adaptada. Caso a pessoa não esteja disposta a superar preconceitos e flexibilizar a cognição, e reifique e tome essas coisas todas como algo mais que um sonho, torna-se então talvez adequado ver a manifestação grosseira da raiva como algo como a guerra, o abatedouro, a prisão, o hospital psiquiátrico, a briga com o chefe, o momento tenso no trânsito. É exatamente como ensinar a uma criança que o sol é uma bola de fogo no céu: naquele momento não é possível explicar fusão nuclear.
O problema é que, devido novamente a nosso preconceito, não vemos a perspectiva tradicional como sofisticada — como “fusão nuclear”. Tendemos vê-la como primitiva, uma vez que a ciência foi tão bem sucedida em substituir tradições no ocidente que consideramos um tanto paralelas com as noções tradicionais da Ásia. E essa resistência pode nos fazer perder aspectos importantes dos ensinamentos.
Temporariamente, na arbitrariedade atual, o novo efetivamente nos parece sempre melhor. Mas o budismo não é fundado em moda, e talvez seja útil abandonar os modismos para ser possível uma verdadeira conexão com a linhagem atemporal do Buda.
A briga entre fé e razão, que virou a briga entre religião e ciência, acabou afetando nossa perspectiva do darma, que não tem nada a ver com isso. Essas são neuroses da tradição ocidental e de suas reformas. No budismo todo mundo sempre teve clareza de que todos os ensinamentos que podem ser expressos em palavras não são totalmente verdadeiros: são apenas formas expedientes da pessoa se colocar numa posição em que ela pode, eventualmente, ver as coisas como elas realmente são. Se as coisas são sonhos, que dizer então de palavras — mesmo os ensinamentos do Buda? Então não há comparação com tradições reveladas e teístas.
É preciso pensar além do cientismo e dos seus inimigos usuais.
Perspectiva invertida
Em parte a dificuldade com esse entendimento é que tendemos hoje a ver a mente como um processo que ocorre com nosso corpo. Aqui dentro desta caixola algumas engrenagens eletroquímicas permitem que eu experimente o mundo e processe informações — e claramente certos problemas de funcionamento em áreas específicas criam problemas correlatos, e, portanto, há uma relação comprovada e direta entre cérebro e minha experiência do mundo.
Porém, quando a ciência explica origens e finais para toda essa “poeira de estrelas” e “matéria escura” que temos ao nosso redor, não parece que obtemos, ou que algum dia obteremos, qualquer satisfação com as respostas dadas. É mais uma questão de propaganda: já que a religião não nos serviu e causou tanta confusão, e só o que temos é isso mesmo, coma seu feijão com arroz e não reclame! Isso funciona — a lâmpada liga, o remédio abaixa a pressão, a luz segue as curvas do espaço curvado pela massa da estrela —, e é isso que temos, o resto… que resto? Não é possível fazer experimentos reprodutíveis? Não existe. É especulação romântica: esse é um dos vestígios do positivismo lógico que ainda impera em várias formas no discurso hegemônico.
Por outro lado vastos nacos de nossa experiência cotidiana, hoje, nesse mundo ultramoderno e científico, seguem ligados a aspectos de sonho, motivação, sentido. Não poderia ser diferente. Embora a ciência pareça estar no caminho certo, e tenha “explicado” muitas coisas, os problemas básicos seguem os mesmos. Da mesma forma, embora estruturemos nossa existência em termos de expectativas da ideologia dominante, boa parte de nossa vida segue, para o bem ou para o mal, bastante independente disso. E aliás, se sofremos e ficamos confusos com como as coisas se apresentam, normalmente é porque em contraste com nossa experiência diária, vemos que não há respostas satisfatórias, ou qualquer rumo positivo, nas prerrogativas hegemônicas.
Se, por um lado, nossa experiência interna — nossos sonhos à noite, nossa experiência de estarmos vivos e fazermos sentido de nossas vidas — parecem pequenos perante esses buracos negros e aceleradores de partículas, no fundo são coisas efetivamente incomensuráveis, não relacionadas. Existe, de fato, um salto de crença para tomar essas evidências circulares todas (do sonho explicando o sonho, com a ciência), como a única coisa que importa. Um salto de crença que nos deixa absolutamente desprovidos de sentido ou valores.
Precisamos abandonar esse aspecto religioso, de fé cega, que reifica esse sonho de átomos e painéis publicitários.
A outra perspectiva também é um salto, mas ela é embasada na superação de arbitrariedades e no ideal de ser um Buda, alguém que deu sentido para sua experiência, vive no êxtase do reconhecimento direto da realidade além dos extremos, e incessantemente expressa o método compassivo que dissipa a confusão e a reificação.
É um salto, mas não é uma questão de fé cega: não há nada a aceitar, a reificar.
Por um lado, isso nem se relaciona com a ideologia hegemônica, que abandonou valor e sentido. Não entra em choque com os brinquedos da tecnologia ou as explicações funcionais e incompletas providas pela ciência, muito menos com os benefícios da vida moderna, como vacinas e a internet. Por outro lado, entra em choque com a extrapolação dessas conquistas (boas e más, falsas e verdadeiras) na forma de uma ideologia, arbitrariedade ou moda que estereotipa as visões atemporais como primitivas e irrelevantes. Mas essa extrapolação é injustificada e falsa, e, portanto, o choque é falso.
Evidente que nossa experiência de primeira pessoa não é com faixas de frequência e interações de forças — embora essas coisas sejam, em certo sentido, explicações de pequenos aspectos da experiência — e possamos olhar para uma maçã e lembrar-nos da teoria das cores e luz, evolução, contextos sociais de produção da fruta, bioquímica e eletromagnetismo, a fruta na história — tudo como talvez uma série de artigos da Wikipédia. Mas nada disso tem uma relação direta com a experiência de ver, tocar ou comer uma maçã. Trata-se de uma relação bastante indireta com um aspecto do sonho, elaborado em torno de outras características do sonho, e compilado como conhecimento acumulado.
Na perspectiva budista, todas as experiências começam na mente — e claro, aqui não estamos falando daquela mente de dentro do sonho, que está aferrada a um corpo que tem um cérebro, e que funciona bem ou mal — que pensa as coisas do sonho. A mente de que estamos falando é a mente que simplesmente é capaz de sonhar qualquer coisa, inclusive sonhar este cérebro num cosmos povoado por cientistas, hidrogênio, e mais meia dúzia (um número discreto qualquer) de coisas. É claro, a pessoa não precisa simplesmente acreditar, ela pode e deve praticar e ver por si própria. Porém, se ela tiver muita certeza de que um sonho, especialmente o sonho presente, é a única realidade, certamente ela nem vai ser capaz de vislumbrar uma perspectiva que reconheça a possibilidade de algo além do sonho.
E isso é limitador por uma série de razões, e não só porque o sofrimento está todo contido no sonho, e em particular, exatamente no reificar do sonho.
“Sonho” também é um termo expediente
A palavra “sonho” aqui é metafórica, é claro. É uma metáfora tradicional no budismo. O budismo não está dizendo que nossa experiência atual é idêntica, igual, a mesma, do sonho à noite. Apenas que, como todos conhecemos bem a experiência de sonhar quando dormimos, somos capazes de entender, por analogia, como o budismo vê as outras experiências. Elas são como um sonho. Talvez um pouco mais longas e um tantinho mais coerentes que a maioria dos sonhos que temos à noite — não exatamente um sonho de que acordaremos numa cama semelhante a essa que sonhamos.
Ambos os sonhos (o da noite e o outro, que estamos tentando entender pela semelhança com o da noite) têm certa coerência interna, mas como um todo, parecem relativamente arbitrários. Com relação aos sonhos da noite, essa arbitrariedade é um tanto o que nos fascina: conseguimos ver certos elementos de nossa vida penetrando o sonho, às vezes de forma tortuosa e simbólica, e, da mesma forma, algumas vezes os sonhos nos produzem algum impacto no cotidiano — lembramo-nos deles, evocam certos sentimentos, podemos achar que aprendemos algo, ou tomar decisões porque algo parece ter se esclarecido durante a noite. No entanto, de forma geral temos tanto controle quanto ao que vamos sonhar quanto ao que vai acontecer conosco em 10 ou 20 anos (ou estritamente falando, amanhã, ou no próximo minuto — podemos nem mesmo ser capazes de fazer a próxima respiração — quem sabe?).
Há pessoas com uma patologia em que têm muita ansiedade ao dormir, pelos pesadelos que podem ter. Porém, todos nós estamos sujeitos a “qualquer coisa” acontecer em nosso sono.
Com relação ao sonho maior, em que sonhamos nascimentos e mortes, é exatamente a mesma coisa. A profunda arbitrariedade da sucessão de experiências, ela própria, é cansativa, irritante: causa náusea e perplexidade. Estávamos tão bem, com tantas perspectivas, e logo depois parece não haver saída alguma.
É claro, se você não pensa muito em morte ou nascimento, pode ser que algum professor diga “morte aqui é como perder o emprego, ter que mudar de atividade, ou se divorciar”. Os temas vastos são tão tabu para a normose dominante que até experiências certas, mas controversas, como a morte, são transformadas em metáforas. (E está certo — a morte é como um divórcio ou perder o emprego — e o sol é uma bola de fogo.)
Estava indo tudo tão bem, e então acordamos — normalmente e começamos a sonhar outra coisa.
A própria arbitrariedade faz parte de nossa experiência — ela também não é real de uma forma definitiva. Como reificamos o sonho, isso tem o efeito secundário de torná-lo profundamente arbitrário. Por isso não vemos sentido em nada; porque reificamos o que se apresenta. É exatamente porque tudo parece tão fixo e determinado, e ao mesmo tão aleatório em sua totalidade, que tudo se manifesta com certa opressão. E essa angústia existencial é um pouco o que os românticos achavam interessante na vida de Sidarta, e é algo com que a ultramodernidade e suas epidemias de depressão e outras aflições mentais convive tão diretamente. Mas o budismo não para no reconhecimento do problema.
Essa dicotomia entre arbitrariedade e determinação é na verdade partilhada pelo budismo e pela ciência. Mas a perspectiva é um tanto invertida: para o budismo existe uma arbitrariedade percebida, e uma coerência real — para a ciência, pelo menos na perspectiva dominante hoje, há uma aleatoriedade natural, a partir da qual bastante adventiciamente brotam processos determinísticos.
Além disso, como o budismo está centrado naquela mente básica, a determinação que interessa ao budismo não diz respeito a causas materiais ou funcionais. O budismo se ocupa com o que causa os estados mentais, que então produzem os hábitos e que engendram sonhos onde coisas como causas materiais e funcionais são possíveis. Em outras palavras, a agência e a motivação são os elementos causais principais. A raiz de todas as confusões.
Carma
Caso superemos a perspectiva dominante e assumamos apenas a crença no sonho reificado, e a crise existencial relacionada, surge o ensinamento tradicional com relação aos reinos, que tem um cunho essencialmente ético — e que nesse sentido é um tanto semelhante a tradições que também foram ensinadas no ocidente, mas com uma diferença crucial.
Em outras palavras, na perspectiva de duas camadas de ignorância (reificação usual mais reificação da superstição materialista), ter raiva produz um “inferno” que é a própria experiência da raiva. Talvez agir devido à raiva possa também produzir mal-estar, e futuras dificuldades — que também são reconhecidos como aspectos de uma “experiência de inferno”. Existe uma tentativa de computar agência e determinação, e ir além da arbitrariedade — mas junto com isso há uma tentativa de manter o status quo da superstição materialista. E isso tem seus limites.
Na perspectiva de uma só camada de ignorância, se você reifica um hábito de raiva, e age de acordo com esse hábito, você produz um sonho correspondente a esse hábito. Numa perspectiva em que vários sonhos se sucedem, você encontra causas para sonhar um inferno. E sonhar um inferno não seria um problema, caso fosse apenas uma questão de raiva e sofrimento — o problema central é a reificação, não reconhecer que é um sonho. Assim, algo de nossa experiência atual se mostra importante para o entendimento do inferno — algo que a visão metafórica também aprecia — mas aqui isso diz mais respeito ao que a visão metafórica geralmente esquece: tendemos a reificar tudo que se apresenta, e essa é a causa do sofrimento.
Mais do que entender a relação entre aflição mental e o sofrimento numa situação especifica, que é uma relação óbvia, precisamos entender como solidificamos esse processo e transformamos “tudo isso” em algo que chamamos de “realidade”.
A visão metafórica, ao tornar o budismo cotidiano e palatável, acaba eliminando o valor transcendente do darma. No extremo, o budismo “sem budismo” que a autoajuda algumas vezes tenta promover, é exatamente essa forma bastarda de budismo-terapia.
Nem se queira tratar de vacuidade! O que importa é viver bem. O problema é que a raiz de toda confusão é a reificação — e a sabedoria que reconhece a vacuidade é o exato oposto da reificação. Quem opera uma “engenharia de boa vida”, sem profundidade, não só está fadado ao sucesso no máximo temporário, está fadado a manutenção infinita — que é um sofrimento por si só. O inferno do “life hacking”: ausência total de profundidade.
A perspectiva que revela que as coisas, como se apresentam agora, tem uma natureza semelhante a de um sonho é a diferença crucial entre as tradições teístas que postulam um inferno e o budismo. Para aquelas, o inferno é realmente existente, e é uma punição por desobediência. No budismo o inferno é, como a experiência atual, justamente um sonho — e todos os sonhos são causados pela solidificação de padrões mentais.
Parecem arbitrários em meio à reificação, mas não são arbitrários.
O “sonho de inferno” vai parecer totalmente arbitrário, exatamente como nossa experiência atual parece, e, ainda assim, ele foi cuidadosamente cultivado por ações engendradas por um hábito de raiva. Essa forma de colocar as coisas abrange o sentido da dupla ignorância, isto é, permanece compatível com ele. Porém, quando usamos expressões como “se você matar, você vai renascer no inferno”, nosso preconceito com a tradição nos faz pensar que isso é uma metáfora. Enquanto que a metáfora é, pelo contrário, exatamente a perspectiva psicologizante do sujeito que fica irritado no trânsito, e tem como “punição”, ora, ficar irritado no trânsito.
Compaixão
Porém é preciso adicionar uma terceira perspectiva.
Entender que há sonhos possíveis para os quais talvez não temos produzido causas, e que por esse motivo nos são difíceis de acessar — experiências que podemos ter esquecido e que nem acreditamos ter passado por elas, ou que seja possível passar —, é essencial para o desenvolvimento da compaixão.
Mesmo com os animais, que vemos e reconhecemos, algumas pessoas têm dificuldade com a visão budista de que podemos renascer (sonhar) a mesma circunstância para nós mesmos. Os ensinamentos tradicionais consideram vir a ser um animal no futuro algo extremamente comum e provável, e a prova disso é nosso parco controle sobre os sonhos durante a noite. Sonhamos quase qualquer coisa? Então podemos surgir como animais — ou “qualquer coisa”.
Que haja dificuldade de encarar os animais como seres sonhantes não muito diferentes que nós mesmo é também um aspecto que facilita sua objetificação — os usamos para nosso proveito, abusamos do jeito que for. Não temos nada a ver com isso: a experiência deles é só deles. Se eu quiser prender em uma jaula para olhar e achar bonito, matar para comer, ou botar para puxar carroça no meio dos carros, no asfalto e com calor torrencial, sem problema. É para isso que animais servem, não é mesmo? Então animais sem alma, para o cristianismo, ou a dificuldade dos espíritas em reconhecer um renascimento animal no futuro, espelham essa atitude de soberba e falta de compaixão, que são prevalentes em nossa cultura.
Eu sou um objeto, eles são objetos, o mundo é um objeto. Vale tudo.
Embora cientificamente falando nós cada vez sejamos mais obviamente indistinguíveis dos animais, nossas prerrogativas e valores não científicos ainda promovem o ser humano como nem mesmo o incerto ápice de um processo aleatório, mas algo separado, que recebeu algum tipo de sopro. E todos os abusos que a própria ciência também perpetra nos animais são justificados por esses valores não científicos.
A compaixão é um treinamento budista central. É inseparável da flexibilidade cognitiva e abertura que permite que reconheçamos a realidade além de todos os sonhos. Já que todos os seres estão interconectados, são de fato inseparáveis, nossa reificação deles como algo separado faz parte da ignorância, de não reconhecer as coisas como elas são.
Todas as emoções aflitivas — fontes de todas as experiências e construtoras de todos os sonhos impuros — são filtros específicos sobre esse mesmo tema. A natureza da raiva é separar e reificar o outro como uma ameaça. A natureza do orgulho é separar e reificar o outro como desimportante. A natureza do desejo é separar e reificar o outro como causa da minha felicidade e sensação de prazer. A natureza da inveja e competição é separar e reificar o outro como o meu padrão de medida e um desafio a ser vencido. E a natureza da ignorância é apenas o “sabor mais puro” desses filtros: meramente separar e reificar o outro.
Ao gerarmos hábitos ligados a esses padrões de reificação, surgem sonhos em que temos corpos, outros seres e ambientes ao nosso redor que correspondem a essas emoções aflitivas. E assim surge a noção de reinos. Não como meramente um lugar para onde se vai como punição para algo que se fez, mas uma experiência que se condensa num sonho com as características dos hábitos mentais prevalentes num ser ignorante (que reifica sonhos, e seres separados, assim por diante). O mundo se conforma a nossos hábitos, e agora vivemos uma experiência que é a soma de incomensuráveis acumulações de camadas de hábitos de reificação e separação, e das ações vinculadas a estes hábitos.
E mesmo no contexto do sonho, ou particularmente no contexto do sonho, é útil saber que os seres que vivenciam sofrimento produziram esse sofrimento através de seus hábitos e das ações vinculadas a estes hábitos. Caso vivenciem felicidade, da mesma forma, seus hábitos e ações correspondentes foram predominantemente buscar a felicidade dos outros, que no fundo, é inseparável, já que como seres, na realidade além do sonho, sempre foram inseparáveis. Querer o bem do outro tende a inseparatividade, leva a esse conhecimento. Ao entendermos a inseparatividade, buscar a felicidade não pode se configurar de uma forma egoísta. Do ponto de vista do sonho, muitas vezes tudo parece arbitrário. Mas isso ocorre porque, de dentro do sonho, não conseguimos captar a lógica que forma os sonhos.
Mesmo depois que o sonho acaba captar a lógica pode se mostrar difícil — mas de forma geral entendemos, quanto ao sonho da noite, por exemplo, que certas ansiedades do cotidiano, ou uma refeição pesada, causaram o pesadelo. E de fato os budistas algumas vezes dizem que se você tem clareza sobre seus sonhos à noite, talvez você tenha mais clareza sobre sua vida. Essa clareza, é claro, vem da meditação, que é um cultivo do estado desperto, do reconhecimento da inseparatividade natural.
O conhecimento sobre o padrão geral que produz sonhos bons e ruins é muito importante no contexto do sonho, mas é um conhecimento limiar entre o estado desperto e o estado de sonho. Totalmente imersos no sonho só reconhecemos arbitrariedade, e é um pouco isso o que a ciência nos diz: somos frutos de um processo aleatório indo na direção do um congelamento total do cosmos em expansão — ou algo semelhante.
O objeto central e prioritário da compaixão, no budismo, não é, portanto, os conteúdos tristes de alguns sonhos, as dores e sofrimentos específicos de alguns seres, mas a raiz de todos os sofrimentos: a reificação de sonhos, o não reconhecimento da natureza da realidade. Esse não reconhecimento também impede a descoberta dos padrões que produzem sonhos melhores. Isso no budismo é chamado de “dois benefícios” que o darma produz através da compaixão do Buda: o reconhecimento do que está além do sonho, e, com base nisso, sonhos melhores.
Se começamos com a ideia de melhorar os sonhos — em outras palavras, se não temos profundidade —, a própria ideia de melhorar sonhos se torna outro sonho exaustivo. Porém, se priorizamos a profundidade, o resultado natural é, ironicamente, sonhos melhores — ou ficar bem em qualquer sonho, ou, melhor ainda, não sentir nenhum peso em empreender o que, dentro do engano do sonho, pareceria enorme esforço em melhorar sonhos.
Pode parecer contraintuitivo, mas o Darma do Buda não tem nada contra os sonhos. Por que teria? São apenas sonhos. O nosso engano não é culpa das coisas com que nos enganamos.
Dois benefícios, dois corpos
Do ponto de vista do ser que sonha, o darma provê dois benefícios: lucidez (sonhar acordado) e sonhos melhores. Essas são promessas da prática, um encontro gradual com os resultados do caminho budista. Porém, do ponto de vista do ser plenamente lúcido, o darma revela os dois corpos de um Buda: o corpo de benefício próprio, e o corpo para benefício dos outros.
Esses dois corpos não são produzidos pela prática, eles são naturalmente existentes. Apenas que, fascinados com as especificidades de um sonho ou outro, não os reconhecemos.
A palavra “corpo” neste contexto pode parecer confusa, mas não é muito distante do sonho como metáfora. Sabemos como é ter um corpo dentro desse sonho. Mas qual é a causa não arbitrária desse corpo? A causa que não é referente ao sonho (isto é, um planeta com condições apropriadas, um processo evolutivo, um pai e uma mãe)?
Em certo sentido, talvez não fosse necessário postular uma ideia de corpo para falar do corpo de benefício próprio, mas já que temos um corpo aqui dentro desse sonho, talvez esse seja um bom meio hábil para fazer referência à sabedoria subjacente. Ela tem uma presença. Exatamente como a coisa cotidiana de sonhar durante a noite nos apresenta ao ensinamento extraordinário — nada cotidiano — de que todas as coisas que se apresentam são “como um sonho”, o fato de termos um corpo agora nos revela algo sobre o que há além do sonho. Nesse caso, o corpo que temos aqui é metáfora para algo além do sonho.
Esse “corpo” é a própria lucidez, o próprio estado desperto. Esse é o “benefício próprio” porque nisso nada está ausente — não falta nada. Há abertura, felicidade (num jargão mais religioso “bem-aventurança” ou êxtase) e algo que algumas vezes é chamado de “claridade”, mas podemos chamar de inteligência ou sabedoria — uma característica de flexibilidade, ou mais precisamente, ausência de rigidez e responsividade, ou movimento natural.
Inseparável desse corpo, e devido a sua capacidade infindável de sonhar, manifestam-se corpos para o benefício dos seres que reificam os sonhos.
Quando refletimos ou meditamos sobre os seis reinos, espelhamos essa capacidade de penetrar em todos os âmbitos com lucidez. Treinamos em não virar o rosto, ou em não sermos indiferentes ao sofrimento dos seres nas mais variadas categorias de experiência. Da mesma forma que a normose do reino humano subjuga e oprime animais e outros seres humanos, nos recusamos a olhar para os reinos como experiências reificadas, onde os seres “mereceriam” estar onde estão. “Eu já estive lá e posso estar de novo” e “eu posso me enganar quanto à experiência e sonhar sem ver saída do sonho” são reflexões cruciais. Isso vale para todas as experiências que vivenciamos, neste corpo ou nos colocando no lugar dos outros via empatia.
Em outras palavras, abandonamos qualquer noção arbitrária.
Assim, quando lemos as descrições de infernos, como as que estão em As Palavras de Meu Professor Perfeito, não ficamos fascinados pelo modo que os tibetanos, antes da modernidade, escolheram descrever a diversidade de experiências. O foco é o treinamento em compaixão e sabedoria.
O importante é reconhecer uma infinidade de seres com experiências que não concebemos usualmente — todos eles sofrendo pelo não reconhecimento. De fato, mesmo os que estão em situações aparentemente “boas” sofrem pelo não reconhecimento. Caso nos prendamos na perspectiva “mas isso é mitológico? é metafórico?” perdemos a oportunidade de reconhecer a capacidade da mente de acreditar no sonho que criou. Se não entendemos que os seres reificam essas experiências, não temos como gerar compaixão. É crucial entender que, para eles, não é um filme.
Neste sentido, transformar o que nos parece mitológico em uma metáfora, faz de nossa experiência de primeira pessoa, agora, o que é efetivamente real. E essa é a perspectiva comum, o nosso hábito de reificação usual, que não precisamos solidificar ainda mais e justificar.
Caso nos centremos em nossa experiência humana e em algumas metáforas cotidianas para essas experiências, nosso foco no objeto central da compaixão se perde, perdemos a oportunidade de obter grande abertura e flexibilidade cognitiva, reconhecendo os vastos âmbitos não examinados, e as possibilidades infinitas de engano.
É importante reconhecer nessa meditação sobre as possibilidades infinitas de engano a operação desse segundo corpo, que também se move por lucidez. Ele penetra todos os sonhos com um sentimento insuportável de compaixão pela sustentação teimosa do engano.
Reinos puros
O Darma do Buda é ensinado na região limiar do sonho. As palavras do Buda fazem sentido aqui, mas também fazem sentido na região de sabedoria, além do sonho. O corpo de benefício para os outros é então subdividido em dois, um que beneficia os seres envolvidos em reificação, e um que beneficia os seres capazes de praticar o darma em profundidade — e que já abandonaram a reificação grosseira às aparências.
O Buda, quando ensinou, era visto como um ser humano. Ele diz, no Sutra do Bom Kalpa (Bhadrakalpita Sutra), “Vim como um ser de sonho dar ensinamentos de sonho a seres de sonho”. Enquanto isso, o corpo de lucidez do Buda nunca foi tocado por sonho algum. E aqueles seres, naquele sonho 2600 anos atrás, viam um corpo para seres envolvidos em reificação — isto é, um corpo material, físico, do sonho particular que reificamos como seres humanos.
Da mesma forma provavelmente é assim conosco, que vemos nosso professor atual como um ser humano comum. Na perspectiva profunda, reconhecemos que ele ou ela tem mais compaixão que o próprio Buda, uma vez que surgiu nesse sonho enquanto operávamos em franca reificação não desafiada — exatamente como o Buda fez 2600 anos atrás, para todos os seres que beneficiou com sua presença física.
Porém, caso sustentemos a reificação do sonho de um professor, um ensinamento e nós mesmos como ouvintes, só recebemos ensinamentos de sonho, limitados pela reificação.
Para beneficiar aqueles seres que tem um sonho puro, não reificado, que vai além do tempo, surge corpo da visão pura. Certos ensinamentos só podem ser concedidos no âmbito atemporal da terra pura, um sonho não reificado — eles não fazem sentido no contexto impuro do hábito de reificação. Assim, treinamos reconhecer nosso professor como um Buda, e fazemos isso sobrepondo nossa visão reificada com nosso treinamento em visão pura: deliberadamente gerando uma imagem de nós mesmos e do professor e seus outros alunos como uma mandala de Budas.
Essa imagem que visualizamos por compromisso, enquanto seres ainda oscilando entre a reificação sutil e o estado de lucidez, num dado ponto se sobrepõe à visão pura efetiva da sabedoria, que sempre esteve presente. E então recebemos a linhagem dos Budas, e nos tornamos um espelho imaculado para as qualidades de todos os seres.
Na década de 1930 um erudito tibetano, Gendun Chöpel, começou a se perguntar se fazia sentido que as descrições budistas tradicionais, utilizadas para gerar o “ser de compromisso” — normalmente envolvendo aspectos milenares da Índia clássica, como arcos e flechas, joias que realizam desejos e ornamentos de osso — se aplicassem a aspectos tidos como atemporais. Quanto desses elementos da cultura indiana era crucial para o reconhecimento de algo que todos reconhecem como francamente além dos limites culturais?
Podemos achar que as deidades budistas — como são representados os corpos para benefício daqueles que tem visão pura — são exóticas para nossa cultura ocidental, mas o fato é que também foram relativamente exóticas para os tibetanos. No Tibete, quem não havia viajado à Índia, nunca havia visto uma flor de lótus ou uma flor de utpala. Essas flores simplesmente não existiam num lugar tão alto e seco. No entanto a descrição de muitas deidades as coloca sentadas em tronos com pétalas de lótus, e muitas delas seguram a flor.
Os artistas tibetanos começaram a desenhar essas flores como as imaginavam, e assim o povo tibetano acabou gerando uma iconografia tradicional que não tem nada de realista. As pétalas dos tronos, ou as flores seguradas nas imagens representadas em estátuas e pinturas não são semelhantes ao que se encontra na Índia. Ademais, quando a flor é de outro tipo, como uma utpala, por exemplo, os tibetanos talvez mudem a cor, mas desenham exatamente a mesma coisa que chamam de lótus.
Isso impediu os tibetanos, que praticaram por gerações usando essas imagens como suporte, de obterem eles mesmos o benefício, ou de se identificarem com a lucidez inerente a esses corpos e suas características? Não. Mas como pode isso?
Arbitrariedade consagrada
De fato, a visualização do “ser de compromisso” é um processo deliberado, e, muitas vezes, principalmente nos tantras inferiores e no início da prática, feito de forma bastante gradual. Nossa tendência como iniciantes é olhar para uma estátua e usar uma imagem mental sólida, imóvel e não viva para visualizar a deidade — mas a instrução dos lamas não é essa: devemos visualizar um ser translúcido, nítido, presente — brilhante com elã vital. A estátua ou pintura serve para pegar os detalhes, mas a prática não consiste em visualizar uma estátua, e sim um Buda.
Da mesma forma que a estátua é uma representação, o aspecto cultural da deidade é também outro tipo de representação. Isso não quer dizer que vemos outra coisa, mas que vemos a mesma coisa atemporal que a linhagem viu. A nostalgia com nossas muitas vidas de prática — e essa prática só é feita por quem está praticando há várias vidas — remete ao atemporal. O passado e a cultura original do Buda é uma “atemporalidade” reificada, convencional, do sonho — o ser de compromisso — que nos remete ao âmbito atemporal não reificado, não metafórico, não representacional — o ser de sabedoria.
A própria extrema peculiaridade da ortodoxia, a própria forma muito própria da prática específica que recebemos de nosso lama, remete a esse “relacionamento inseparativo” entre relativo e absoluto, entre aparência e vacuidade — que é a união atemporal dos dois (ou três) corpos. Essa é a “arbitrariedade sagrada” da linhagem: consagrada e autorrevelada como arbitrária, pois não é reificada.
Não é óbvio que os ensinamentos mais “produzidos em massa”, mais gerais, menos peculiares, sejam adaptados para seres que sustentam maior reificação? E que o absoluto nicho da prática compartilhada entre você e seu lama, aponte para a união atemporal do ser de sabedoria com o ser de compromisso? Quanto mais “customizado” e peculiar, mais artesanal, e mais autêntica a linhagem, mais se revela a tessitura atemporal.
Como o que esta além do tempo se revelaria sem demonstrar que sempre esteve além do tempo? O passado é a porta do atemporal.
Essa perspectiva inclui também os seres “mitológicos” com que o budismo lida: o Buda ensinou para gandarvas (seres sutis que se alimentam de cheiros), confiou o prajnaparamita a nagas (seres sutis que tem algo a ver com água, o ambiente e cobras) — o fato disso não ser usual para nós na modernidade tem várias consequências, algumas boas e outras ruins. Entre as consequências ruins pode estar algum fetiche pelo exótico, ou os obstáculos que surgem pela superstição materialista. Porém, o fato é que, embora relativamente irrelevantes para os ensinamentos profundos — o próprio fato de meramente trabalhar num contínuo de referências budistas, se acreditamos que os ensinamentos budistas são capazes de prover benefício, é bom para nós.
O próprio fato de não virarmos tanto o nariz e sermos capazes de trabalhar com essas noções, num tempo tão degenerado em que o novo é tão prezado apenas por ser novo, é um indício fortíssimo de nosso contrato sagrado com a linhagem do Buda.
Em outras palavras, vamos encontrar nagas e gandarvas (e pretas, yakshas, rakshasas, narakas, asuras, 9 classes de demônios, etc.) na literatura budista nas nossas próximas vidas de praticante — essas referências não vão sumir por decreto. E basta conviver um tempo com um lama nativo para ver que eles, mesmo hoje, estão sempre se referindo a esses seres. Precisamos unir o compromisso com a tradição e referenciar a sabedoria viva dos professores, e não sucumbir a superstição materialista, mesmo que, a princípio, estas coisas pareçam esquisitices.
E, até que você reconheça sua conexão, está tudo bem apenas ter boa vontade com as esquisitices. Nem que seja as tentando resolver como metáforas, por infantil que isso muitas vezes seja.
Não inventemos
Os reinos puros e seus habitantes, da mesma forma que os reinos impuros do samsara, podem ter suas descrições clássicas em uma cultura, e suas interpretações estéticas em outra cultura. Isso nunca foi um problema.
Mas isso não quer dizer que temos a liberdade de deliberadamente buscar soluções “mais contemporâneas” para estas representações. Quer dizer, a liberdade até temos, isso pode ser feito — o que precisamos saber é que o processo que produz a adaptação no darma precisa ser orgânico e estar vinculado com a realização dos praticantes. Caso seja uma decisão por comitê, uma tentativa isolada, ou algo assim, vai soar new age — isto é, vai soar como deturpação do ensinamento do Buda. E provavelmente vai ser.
Além disso, embora a opinião hindu, e algumas vezes a opinião acadêmica, embasada em registros históricos, diga que o budismo é uma religião que surgiu do e permanece parte do hinduísmo — que seria um fenômeno cultural mais amplo, Dzongsar Khyentse Rinpoche, com base na sabedoria budista diz que é exatamente o oposto: o hinduísmo faz parte do budismo.
Mas não precisamos discutir quem devorou o outro. O fato é que há um contínuo nas representações iconográficas hindus, metáforas, vocabulários e mesmo elementos como lógica e epistemologia. Há coisas próprias budistas, é claro, mas mesmo essas coisas surgem em reação à cultura hindu.
E isso diz respeito ao fato de que nosso Buda foi criado nessa cultura, e abençoou essa cultura com seu olhar — isso não quer dizer que outras culturas não possam ser abençoadas, de fato Guru Rinpoche fez isso com muitos aspectos da cultura tibetana, que é bastante diversa da cultura hindu, e já foi ainda mais diversa. Isso só quer dizer que a consagração da linhagem é imprescindível. Se eu ou você escolhermos adorar uma representação de Jesus na cruz, uma cachoeira ou um disco-voador como parte de nossa prática budista, isso é simplesmente frívolo. Sem a consagração da linhagem, não funciona — não pode ser feito unilateralmente.
Por outro lado, na medida em que nos acostumamos a lidar com o que, a princípio, parecem peculiaridades supérfluas e embaraçosas, isso nos conecta via compromisso a linhagem de seres que, por muito tempo, “atemporalmente” na perspectiva pequena que podemos compreender, trabalharam com essas peculiaridades. Essa interdependência é crucial.
Ademais, o único bom critério que temos para saber se é o budismo mesmo que queremos para nossa vida (ou nossas muitas vidas) é reconhecer a qualidade nos professores vivos e nas descrições dos professores do passado.
Pressupor que sabemos os elementos que podemos descartar, de ensinamentos que eles tomavam como tão caros, é simples arrogância.
Um leitor fez uma pergunta sobre o assunto em maio de 2014, e essa pergunta ficou um bocado de tempo na caixa de entrada. Dado o fato de que é uma preocupação e questionamento diário em centros de darma, supus já ter escrito abundante e repetidamente sobre o assunto, em vários lugares, desde 1998. Porém, ao procurar uma resposta pronta, não encontrei nada profundo — apenas algumas colocações no sentido de que não haveria problema em falar dos reinos como metáforas para alguém com alguma dificuldade com ideias exóticas sobre reinos. O que é a coisa mais comum que há, diga-se de passagem.
Em janeiro de 2016, com o patrocínio do site Buda Virtual (que hospeda a versão original do texto), finalmente consegui sentar e escrever algo que espelha minha própria perspectiva sobre o assunto. É assim que eu mesmo vejo, e é assim que lido com a prática e os ensinamentos de professores tradicionais, sem menosprezar os mais abertos a metaforizações e adaptações. O senso comum parece ser o de que falar de uma forma mais moderna e adaptada é mais sofisticado; acho necessário desafiar esse preconceito, sem é claro desfazer dos esforços compassivos em tornar o darma mais palatável.
Assim, minha perspectiva nesse texto poderá parecer incomum ao interessado médio, que nunca se relacionou com um professor mais tradicional. Embora sejam apenas as palavras pretensiosas de alguém que tenta se aproximar do darma, pode ser que inspirem questionamentos e abram perspectivas para aspirantes ainda mais perdidos e iniciantes do que eu mesmo. Que todos possam ir além de apenas ler textos, e venham a encontrar um professor e uma comunidade, e assim efetivamente usufruir da terra pura de Buda Sakyamuni.
Que Sua Santidade o Dalai Lama seja bem sucedido em sua empreitada de domar a ciência — uma inteligência cultural aleatória do ponto de vista da motivação —, como um protetor do darma, exatamente como Guru Rinpoche fez com as deidades nativas no Tibete.
Que nós mesmos domemos nossos hábitos culturais, e, sem a necessidade de abandonar a todos, façamos com que aqueles que são potencialmente conducentes à virtude e a prática se comprometam com a sabedoria inata. Que aprendamos a reconhecer o que tem valor, e abandonemos o refúgio no que é arbitrário, não produz sentido, nem tem finalidade.
Que abandonemos completamente os preconceitos da modernidade e das superstições materialistas, e sejamos capazes de praticar o darma autêntico, até atingir os dois benefícios e revelar os dois corpos.
◦ Os reinos budistas realmente existem?, vídeo no Canal Tendrel no YouTube
◦ Existe budismo sem renascimento?, texto de Padma Dorje em tzal.org
◦ Budismo sem renascimento, vídeo no Canal Tendrel no YouTube
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