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Materialismo: não chega nem a estar errado

Newton, por William Blake.

A frase “isto não só não está certo, não chega nem mesmo a estar errado” é de Wolfgang Pauli. Um amigo apresentou um artigo de um jovem físico, sabendo que não tinha muito valor, e Pauli retribuiu com essa resenha avassaladora. Em outra ocasião ele disse “o que você falou é tão confuso que ninguém vai saber dizer se é besteira ou não”.


Wolfgang Pauli

Wolfgang Pauli


No que diz respeito à ciência, não estar nem mesmo errado pode implicar a questão daquilo poder ser falseável. Em outras palavras, se você afirma algo para que não se pode projetar algum experimento (mesmo que ele seja tecnicamente impossível num dado momento) que potencialmente seja capaz de produzir uma contraprova, o que você está afirmando não está no reino da ciência — é outro tipo de registro de comunicação humana, e pode ter algum valor em algum âmbito, mas não em termos de ciência.

Mesmo desconsiderando a “falseabilidade” e o aspecto de ciência, não estar nem mesmo errado pode indicar uma afirmação tão confusa ou autocontraditória que você não teria por onde começar para explicar o absurdo do que foi dito. No diálogo entre pessoas comuns, muitas vezes isso inclui uma interpretação falha do que você mesmo disse — e o interlocutor passa a tentar forçar você a dialogar em termos de um espantalho, uma versão errada ou enfraquecida de seus próprios argumentos.

Alguém, por exemplo, sabe que não aceito a ideia de um deus criador. Com base nisso, essa pessoa supõe que, já que guardo uma semelhança em termos desse pensamento com os materialistas, que não acredito em fadas. Mas embora seja incomum alguém não aceitar deus e aceitar fadas, não há nada de ilógico numa visão assim — é só porque o preconceito ou viés do interlocutor pensa que qualquer crença não materialista implica a existência de um deus criador que ele irá argumentar como se eu fosse materialista.

E a partir disso, todo tipo de confusão se forma, particularmente se há confusão terminológica. Com relação às expressões, modo geral pessoas com formações em áreas diferentes usam terminologia com um espectro semântico pelo menos um pouco distinto. Há talvez um núcleo comum no termo, mas há implicações sutis que podem nem mesmo ser percebidas por um ou pelo outro. Isso é particularmente verdade com certos termos filosóficos amplos que foram apropriados por teorias mais específicas e pela linguagem comum. Por exemplo, a própria palavra “materialismo”.

O materialismo é a metafísica monista em que há só uma substância, e essa substância é a material. A definição do que é substância material variou muito ao longo da história da filosofia e da ciência, e até hoje em dia oscila. Em certa ocasião, o que era “material” implicava os quatro elementos, mas não o elemento do espaço ou éter. Depois talvez fosse tudo que sofresse ação da gravidade — e enfim surgem conceitos mais sofisticados como massa. Hoje o que é material inclui uma série de coisas dificilmente diretamente observáveis, como campos, radiação, forças (gravidade, eletromagnética etc.). Mas, em suma, quando se diz “materialista” se quer dizer que não se acredita numa substância que não seja objeto da física — a própria palavra física em latim produz o termo “natural”. Então a outra substância seria “sobrenatural”, ou, simplesmente, não objeto de estudo da física — se porventura existir.

Porém, a palavra materialismo também quer dizer, via teoria marxista, outras coisas. O materialismo histórico implica que a própria história segue um caminho científico, e implica uma ênfase em ver as relações entre as pessoas particularmente de um ponto de vista econômico e de poder. E isso redunda, no linguajar popular, no materialismo como aquela visão que dá mais importância ao status em termos de poder e dinheiro. Uma “garota materialista”, da música antiga da Madonna, implica talvez uma moça que deseja casar com um homem poderoso e rico porque “gosta de coisas materiais” — tais como carros, boas casas, boa comida e talvez diamantes.


Material Girl

Material Girl


Tanto o materialismo ganhou essas outras dimensões que o sentido mais antigo do termo tem preferido ser chamado de “fisicalismo”, o que existe é aquilo que a física reconhece como existente, e os outros fenômenos — os fenômenos químicos, biológicos, psicológicos, sociais e assim por diante, são redutíveis às coisas observadas pela física. Isso está mais na esfera da crença, uma vez que muitos fenômenos ainda não são adequadamente explicados com recurso a sua “camada subjacente” de “ciência mais ampla”. No entanto, alguém que sustente uma metafísica fisicalista ou materialista normalmente subscreve a tal tipo de crença reducionista, e tenta encaixar os fenômenos sociais em termos de fenômenos psicológicos, e estes, em termos biológicos, que são reconhecidos como fenômenos meramente químicos, que são reconhecidos como fenômenos meramente físicos.

Uma das dificuldades dessa visão são as propriedades emergentes. Eu digo “dificuldade” porque elas não são fáceis de entender, ou de prever — mas elas são essenciais para a visão fisicalista. Trata-se da noção de que o “todo é maior que as partes”, ao arranjar certas coisas de certo modo, obtém-se coisas que não podem ser explicadas com recurso a nenhuma parte, mas a uma “sinergia”, um tipo de relação especial entre as partes.

O fisicalista, portanto, vê um fenômeno como a consciência humana em dois modos possíveis: ou ele a vê como um processo emergente, ou ele nega a existência de sua própria experiência de primeira pessoa. A segunda opção pode parecer absurda, “nem mesmo errada”, mas é bastante popular. A primeira opção pode parecer uma solução, mas muitas vezes parece um truque, já que ninguém tem a menor ideia de como esse processo emergente pode surgir dessas partes todas.

Contra o fisicalismo temos opções dualistas — nada populares hoje em dia — e outras opções monistas, que em geral nem são entendidas ou consideradas. As opções dualistas possuem os problemas tradicionais de se tratar com duas coisas diferentes que precisam entrar em contato: se são totalmente separadas uma da outra (estamos falando de esferas “espirituais” e “materiais”, consciência como um “fantasma operando a máquina do cérebro”) uma não consegue afetar a outra, e assim temos um âmbito totalmente transcendente de cada lado, o que torna cada âmbito irrelevante para o outro. Se queremos fazer o dualismo funcionar, ele precisa prever o quanto de diferença ele quer dar para cada substância.

Mas o dualismo tem um problema parecido com o do emergentismo, só que pior. Embora haja exemplos de comportamentos emergentes, e o comportamento emergente de forma geral possa ser entendido, o mesmo não é o caso com relação a uma substância cuja única definição possível é “não é objeto de estudo da física”. Se ela, por definição, não é objeto de ciência, então as críticas costumeiras a visões metafísicas (as não fisicalistas, claro: normalmente a visão fisicalista nem se reconhece como uma metafísica monista, geralmente realista — mas ela é uma metafísica) procedem: como falar de algo sobre o que “não se pode nem mesmo estar errado”. Torna-se pensamento mágico e algum tipo de jogo de poder, onde algumas pessoas tem acesso privilegiado a esse âmbito sobrenatural, e outras não possuem... o dualismo não tem muito futuro mesmo.

Porém a terceira opção são monismos em que a substância não se resume a definição da física, ou do que é observável. Um exemplo seriam algumas formas de idealismo — o idealismo, em termos filosóficos, não é uma pessoa que tem uma visão ingênua e utópica de um mundo, e assim por diante, nada a ver com isso. O idealismo é a noção de que a mente, ou as ideias, ou a consciência — nossa experiência de primeira pessoa — é aquilo que existe de forma mais clara e em primeiro lugar. Com base nisso, se faz física e as outras ciências. Nesse caso a substância material, física, é um subconjunto ou epifenômeno da substância que é nossa experiência de primeira pessoa. Podemos até espelhar as propriedades emergentes como cada uma dessas esferas de exame da realidade, físico, químico, biológico, psicológico, social...


Guilherme de Ockham

Guilherme de Ockham


Uma visão assim aparentemente não é necessária para a física, por exemplo, e por navalha de Occam, talvez seja prudente ignorar uma visão assim. Mas, por outro lado, os problemas epistêmicos particularmente da mecânica quântica, esbarram nas limitações do realismo — e há interpretações da mecânica quântica que assumem a consciência (não definida) como parte do experimento. Em outras palavras, tudo se resume à definição de substância: o fisicalismo é uma forma de monismo que reduz a substância a uma versão atual e particular da física (e em termos de mecânica quântica, a algumas interpretações apenas); já o monismo não fisicalista, simplesmente não se ocupa de determinar a substância, uma vez que ela é o tempo todo redeterminada pela própria física.

Em todo caso, a visão popular desses assuntos normalmente não está “nem mesmo errada”. As pessoas ou assumem um dualismo inexplicado (e possivelmente inexplicável), ou assumem (mais comumente) um monismo fisicalista que chamam de materialismo, e que não reconhecem como uma visão metafísica não justificada (ou justificada circularmente).

Quem se dedica à metafísica sabe que opções idealistas não foram propriamente refutadas, sabe também que o dualismo, por mais complicado e
impopular que seja, é uma tentação comum demais, bem como que o monismo não tem um sabor só. Essas três dimensões escapam à visão convencional do assunto.

Primeiro publicado em julho de 2015, no site Papo de Homem

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