Existe budismo sem renascimento?
Recentemente o grande lama rimê (não sectário) Dzongsar Khyentse Rinpoche deu um ensinamento de dia inteiro na Universidade da Califórnia, Berkeley sobre renascimento. Ele já havia tratado o tema em outros ensinamentos, mostrando-se preocupado com a tendência exagerada de secularização do budismo, particularmente com o modismo ligado a um “budismo sem crenças”, uma bastardização dos ensinamentos onde aspectos considerados embaraçosos pela perspectiva materialista dominante são simplesmente “varridos para baixo do tapete”.
Todos os professores budistas contemporâneos concordam que o budismo pode e deve ser ensinado livre dos aspectos culturais a que se agregou ao longo dos milênios. Ao se estabelecer em inúmeras culturas asiáticas e ganhar cores e sabores próprios, os ensinamentos inevitavelmente se misturaram a elementos sociais espaço-temporais bastante contingentes e possivelmente desnecessários. Porém, é fácil, na ânsia por depurar o cerne dos ensinamentos, cair em um budismo de meras preferências (vedana); um “budismo” em que se escolhe, da receita prescrita pelo médico, o Buda, apenas os remédios mais palatáveis ao gosto de hoje, os menos amargos para um cliente ou consumidor — até evitamos chamar de “paciente” — e sob cuja frivolidade o tratamento não tem como funcionar. Determinar exatamente o que é budismo e o que é aspecto cultural supérfluo não é tarefa óbvia.
Com relação ao renascimento temos vários problemas adicionais.
Primeiro temos o fato de que a versão budista do renascimento não é muito fácil de entender, tendo em vista noções como a ausência de um eu, e a própria impermanência — e a própria vastidão do conceito. A reflexão sobre o assunto é profunda, em termos do que isso implica, bem como do que parece implicar, mas não implica. Além disso, no budismo mesmo parece haver críticas contra a noção de renascimento. Tentarei nesse texto brevemente explicar como essas noções convivem.
Depois temos o fato de que o renascimento tem claros contextos culturais, bem como distorções culturais — e não só na Ásia. Aqui no Brasil a versão popular da reencarnação é a kardecista, e ela pouco tem a ver com a ideia budista de renascimento — embora seja absolutamente impossível nesta terra falar da segunda sem remeter à primeira na mente da audiência, particularmente quando se usa o termo “reencarnação”. O desejo de autopreservação eterna, seja em termos de uma imortalidade corporal ou incorpórea, é considerado um grande obstáculo à prática budista.
Porém, a disposição de incessantemente ajudar os seres não é. A questão dos professores renascidos (tulkus), como Sua Santidade o Dalai Lama, que é o XIV Dalai Lama reconhecido, é outra peculiaridade. Como esse sistema apenas existe no budismo tibetano, ele pode parecer um candidato óbvio a ser um adendo cultural, sem falar que atualmente muitos lamas tibetanos veem crescentes dificuldades no sistema de tulkus. Essas questões também serão tratadas neste texto.
Enfim uma defesa da ideia do renascimento como central ao budismo será feita, com justificativas tanto no nível cotidiano do praticante, quanto no nível da visão última da realidade.
Reencarnação e renascimento
Embora muitos professores budistas sigam usando o termo “reencarnação” para designar a continuidade da consciência, e particularmente dos resultados de nossas ações, este termo não é preciso por uma série de razões.
O termo correto para esse processo, no budismo, é “roda da existência condicionada”, um processo alucinatório de sucessão de experiências boas e ruins a que todos os seres sencientes (não budas) estão sujeitos. Esse processo é dito “infindável”, pelo menos até que se pratique os ensinamentos, obtenha-se lucidez sobre o que está acontecendo, e acorde-se desse sonho sem sentido.
Dentro desse processo há quatro grandes sofrimentos: nascimento, doença, velhice e morte. É importante reparar que o nascimento (bhava) é também visto como um sofrimento, e embora nossa cultura agregue muitos valores positivos à natalidade, todos reconhecemos que tanto para a mãe quanto para a criança, essa situação, por mais compensadora que finalmente seja (a grande generosidade de trazer um potencial praticante da virtude ou professor de lucidez ao mundo seria uma perspectiva positiva comum ao próprio budismo), não é fácil ou agradável a maior parte do tempo.
Morrer, em nossa cultura, por outro lado, tem uma conotação tão negativa que muitas vezes não queremos pensar no assunto — e quando nos deparamos com alguém agonizando em uma cama de hospital, sofremos junto com essa pessoa — e sofremos tanto pela situação dela quanto pela lembrança “inoportuna” de que algo similar vai acontecer conosco.
A princípio a ideia de renascimento parece prover algum alívio com relação a essa perspectiva, mas, se a morte no mais das vezes não é uma experiência agradável, que dizer passar por ela, e por nascimento e possivelmente doença e velhice, repetidas vezes? Por mais que em certo aspecto o budismo acredite em continuidade, o fato é que há uma série de descontinuidades inevitáveis (não concluímos o que achávamos que íamos concluir, nos separamos de nossas memórias, e assim por diante). E, principalmente, não temos, no momento da morte, muito controle sobre nossas experiências futuras — exatamente como não sabemos que tipo de sonho teremos à noite.
Em termos metafísicos, o budismo não acredita numa substância material, ou de qualquer outro tipo. Todo este universo com suas galáxias, pulgas e tobogãs é feito de “tecido de sonho”, isto é, vacuidade, justamente ausência de substância. Qual a causa desse “sonho”? Hábitos mentais, cujo principal é a delusão. O que há além da delusão? Intocada pelo engano está a realidade indeterminada e indescritível, prenhe de todas as possibilidades, e que não rejeita nenhuma aparência. Uma lucidez tão livre que é capaz de não se reconhecer em sua liberdade, e passar a proliferar enganos adventícios — que no fundo nunca efetivamente se dissociam dessa lucidez base. Os sonhos, cada uma das experiências boas e ruins da existência cíclica, quando não reificados pela delusão, tornam-se um mero adorno dessa realidade insubstancial e livre de projeções.
Quando certas causas e circunstâncias ligadas a nossos hábitos mentais configuram um sonho mais estável e coerente, encontramos “obstruções do espaço”, e a isso chamamos de objetos materiais, tais como nosso corpo humano atual, e as tais galáxias e tobogãs. Para o budismo é possível que o sonho, devido a hábitos, causas e circunstâncias, seja de vários tipos, com mais ou menos “obstrução do espaço” (reificação da materialidade), e com mais ou menos felicidade ou sofrimento. Ainda assim, mesmo as circunstâncias mais “desobstruídas”, felizes, estáveis e “puras” são ainda condicionadas e, portanto, sem lucidez.
O surgimento no sonho humano é considerado o melhor de todos, porque aqui temos uma boa distribuição de experiências boas e más (ambas, em excesso, impedem a reflexividade) razoavelmente coerentes, e em alguns casos conseguimos tempo para examinar essas coisas com cuidado e atingir um estado de lucidez perante o sonho — que até podemos chamar de “acordar”, mas que trata-se de um despertar que deixa o sonho perfeitamente intacto, por assim dizer. Acordar num sentido de rejeitar o sonho é um pouco extremista; seria acreditar demais no sonho, ao ponto de achar que ele poderia ser um impedimento verdadeiro para a lucidez.
Portanto, para o budismo, a palavra “reencarnação”, embora ainda seja bastante usada por grandes mestres budistas, é um pouco fora de lugar. Não precisamos “voltar à carne” (e muitos dos surgimentos afortunados ou desafortunados não envolvem materialidade), só o que ocorre, no máximo, é uma “troca de sonho”, em termos de ser um pouco melhor ou um pouco pior, um pouco mais como um pesadelo, ou um sonho bom.
Não sou um especialista no kardecismo, mas me parece que para esse sistema cristão, como para outros cristianismos, há um criador de uma realidade substancial, que pode ser mais ou menos material de acordo com nosso nível espiritual. Dentro desse universo criado por Deus, há criaturas, cada uma delas dotada de uma centelha individual, a alma, dotada de livre arbítrio. Para o kardecismo, com alguns contratempos possíveis, os seres evoluem no plano de Deus, aprendendo com suas dificuldades, e, através de sua evolução moral e intelectual, obtendo corpos melhores e mais diáfanos e aprendendo mais sobre criação e criador.
Há outras versões ocidentais de renascimento, como a “transmigração” platonista. Aqui nos concerne destacar o renascimento budista de outras versões e ideias semelhantes tanto no ocidente quanto no oriente.
O budismo é diferente dessas ideias pelos seguintes motivos:
— não há evolução, no sentido de progresso, na existência cíclica, muito menos evolução necessária: toda conquista pode ser perdida, e as circunstâncias mais felizes não são consideradas necessariamente lúcidas; portanto é bastante fácil um ser humano renascer animal ou como um ser em ainda pior circunstância — ou renascer numa circunstancia nominalmente boa, ou superior, que é de fato uma grande perda de tempo por ofuscar mais fortemente a lucidez;
— no budismo não há criador, e não há plano ou teleologia necessários; a pergunta se “todos os seres irão um dia atingir a iluminação”, embora seja uma aspiração comum e recomendável, é considerada sem resposta;
— no budismo a noção de substância é desafiada pela ideia de vacuidade, portanto o budismo não tem compromisso metafísico com monismo, dualismo, realismo, idealismo, imanência, e assim por diante;
— para os seres que atingem lucidez perante a existência cíclica, a existência cíclica é reconhecida como um sonho, e não é nem mesmo rejeitada (rejeitá-la seria acreditar demais nela, reificá-la);
Relativo e absoluto
Porém, é preciso frisar que essas diferenças, particularmente a última, são mais claramente específicas do mahayana (forma de budismo mais difundida no Norte da Índia, China, Japão, Tibete, Coréia e Vietnã). Quando o Buda ensinava para alunos de menor capacidade, ele algumas vezes ensinava apenas um método de melhorar a experiência cíclica (basicamente ética, o que nem é exclusivo do budismo), e outras vezes, ensinava um método de rejeição da existência cíclica — um método de acordar na base de um “balde de água”, na qual o sonho é considerado um obstáculo.
Assim, encontraremos formas de budismo mais realistas ou idealistas, e diferentes formas de tratar o sonho, de acordo com as necessidades e capacidades particulares dos seres para quem o Buda estava ensinando. A palavra “nirvana”, por exemplo, normalmente se refere à extinção completa dos hábitos de aflições mentais que reificam a existência cíclica, de forma que nenhum surgimento é mais reconhecido. Isso algumas vezes é descrito como “não mais nascer”. O estado de um ser em nirvana só é descrito negativamente, já que a experiência dele é considerada inefável — mesmo seu status existencial, de que modo ou em que sentido ele “segue existindo” ou não, não é passível de exame. Estes ensinamentosreferem-se a um acordar do sonho que reifica o sonho num modo que o rejeita, e o Buda ensinou isso de forma expediente para aqueles que praticariam melhor com essa perspectiva e esse fim.
Nos ensinamentos mais sofisticados o sonho não é rejeitado, e o modo de existência de alguém que atingiu o estado desperto segue o que sempre foi: uma existência que é “como em um sonho”, apenas que agora — no caso de um ser que possui essa lucidez — há clareza quanto a isso.
Os ensinamentos do Buda são classificados tradicionalmente como expedientes e diretos (podemos dizer também definitivos ou últimos). Os ensinamentos expedientes são concedidos para aqueles seres incapazes de seguir as instruções diretas, e se relacionam particularmente às duas acumulações, de mérito e sabedoria. Isto é, são ensinamentos que visam posicionar o praticante numa circunstância pessoal e cognitiva mais aberta, que permita um eventual reconhecimento direto da realidade, a lucidez da mente de um buda — assim que as causas e condições sejam ideais para esse salto no estado de lucidez.
Quando se diz que na existência cíclica não há progresso, estamos nos referindo aos seres de forma geral, que operam aleatoriamente. Os seres que encontram o darma progridem, é claro, dentro das perspectivas expedientes que o Buda forneceu para os seres de diversas capacidades.
A maioria de nós quando ouve isso pensa em alguns meses, ou anos, talvez décadas de prática, para então ser capaz de usufruir da lucidez dos ensinamentos diretos — mas o Buda sabia por experiência própria que isso, embora possa ser muito rápido para algumas pessoas, para outras pode efetivamente levar muitas vidas. O Buda não abandona os seres apenas porque eles não estão prontos para ouvir instruções definitivas, e é na perspectiva de espaços de tempos maiores vastos que englobam centenas de vidas, que há tantos e tão diversificados ensinamentos. Precisamos entender que há corpora completos de ensinamentos expedientes do Buda, para beneficiar seres ao longo de várias vidas em que eles não são capazes de entender ou aplicar os ensinamentos mais sofisticados, e eles são mais vastos e bastante mais comuns do que os ensinamentos diretos.
Os ensinamentos diretos também não são muito incomuns — a propaganda de cada escola budista quanto ao ápice ou instrução central do Buda, que ela algumas vezes unicamente detém, se prolifera nos tempos degenerados, em que buscamos o darma como quem compra um produto, como se fosse um carro ou computador. Ainda assim, modo geral, quando não estamos prontos, esses ensinamentos são ditos “autossecretos”. Os ouvimos, talvez geramos algum fascínio por eles (o que pode ser positivo ou negativo para nossa prática), e não conseguimos entender, aplicar ou estabilizar aquela instrução direta de qualquer forma viva em nossa experiência. São meras palavras, e algumas vezes eles podem até mesmo apenas confundir uma pessoa que não esteja pronta.
E, obviamente, a hermenêutica não existe sem polêmica. Algumas pessoas podem, por exemplo, querer dizer que o Zen, por ser um caminho muito direto, não aceita o renascimento. Afinal de contas, o que conta para o Zen é o presente imediato atemporal, e o Buda disse no Lankavatara Sutra “ensino o renascimento para os alunos de menor capacidade, para os de maior capacidade, ensino o que está além de vida e morte”. Alguns alunos do grande mestre vietnamita Thich Nhat Hahn parecem regozijar com uma visão de um budismo sem renascimento nesses moldes: como passado e futuro são ilusões, como pode haver renascimento?
Porém, o fato é que na visão definitiva não existe absolutamente nenhuma distinção entre expediente e direto. Quem faz essa distinção é justamente a visão expediente. Na visão expediente, há ensinamentos do Buda sobre moralidade que explicam o sofrimento como resposta causal natural a ações que prejudicaram outros seres no passado. E é também a visão expediente que diz que há outra visão mais direta na qual a causalidade é negada, e também tenta explicar que a contradição é apenas aparente.
A contradição é aparente no contexto expediente porque ele precisa lidar com a sabedoria do Buda e a ignorância dos seres, simultaneamente. No contexto direto a ignorância é derrubada num só golpe, e o ensinamento se dá como de um buda para outro, e assim não há como existir qualquer tipo de dissonância cognitiva. Os ensinamentos são todos eles expressão de compaixão do estado desperto buscando a ressonância de nosso próprio estado desperto, para que ele se revele desimpedido.
Os ensinamentos diretos tanto não negam a visão expediente quanto não se distinguem dela. Exatamente como alguém que sonha de forma lúcida não precisa negar nenhum aspecto do sonho, e pode participar dele inteiramente, negar a lógica interna do sonho seria também evidência de acreditar demais nela. É por isso também que os ensinamentos superiores do budismo são naturalmente não sectários: todas as visões são incluídas, cada uma em seu local, e nenhuma entrando em contradição com a compaixão do estado desperto, a mente do Buda. A contradição aparente surge porque, olhando da perspectiva de um sonho particular, fica difícil exercer flexibilidade mental e reconhecer o panorama mais amplo. E algumas vezes o panorama mais amplo é confundido com o que no fundo é apenas outro sonho, talvez mais despojado, fascinante por sua claridade e limpeza.
Num sentido último, também, todo e qualquer ensinamento do Buda, se ele é registrado em ideias, gestos ou símbolos, é expediente. A própria palavra “Buda” e a existência de Príncipe Sidarta 2600 anos atrás são mero sonho auspicioso. O Buda no Sutra do Bom Kalpa (Bhadrakalpita) disse que “surgi como um corpo de sonho num mundo de sonho, para dar ensinamentos de sonho a seres de sonho”. Nesse sentido, não há porque discriminar renascimento como um ensinamento particularmente expediente, e principalmente, particularmente desnecessário porque seria expediente. Todo ensinamento que surge em palavras, ou se refere a uma ideia ou tema particular, é expediente: enfim, todo o budismo de que podemos falar — e até mesmo certas categorias de “silêncio” se enquadram aí. Direto se refere à cognição, não ao conteúdo.
Quando isso ocorre, no argumento de que se trata de um aspecto cultural e desnecessário do budismo como uma construção asiática, precisamos lembrar que é justamente o oposto que está acontecendo. Nosso embaraço materialista, cheio de resquícios abraâmicos, é que é o aspecto cultural desnecessário que está tentando escamotear um aspecto crucial do ensinamento do Buda. Não estamos prestando nenhum favor ao Buda ao discriminar (pejorativamente) ensinamentos supostamente expedientes, muito menos ao vincular os ensinamentos supostamente mais diretos a nossos preconceitos materialistas — o que perdemos com isso é justamente a chance de acumular mérito e sabedoria e assim poder efetivamente, o mais rápido possível, usufruir a lucidez da mente de buda.
Distorções do renascimento
A crença do renascimento é prevalente na cultura asiática, e anterior ao budismo. As ideias culturais que se desenvolveram em torno do renascimento nem sempre são elogiáveis, como a dificultosa ou nula mobilidade social no sistema de castas. O Buda lidou com isso criando um sistema social próprio, sua ordem monástica, onde todos eram respeitados de acordo com sua posição na ordem, independente de casta.
Alguns dos aspectos populares ligados a renascimento, no entanto, seguem criando problemáticas para os ensinamentos.
Essa rigidez das castas na ordem social se espelha hoje nas pessoas com visões “nova era” sobre carma, que o consideram algo semelhante a um “está escrito” — porque, de fato, se misturamos determinismo causal com um plano divino, dificilmente fugimos dessa ideia. No entanto, no budismo há determinismo causal sem plano, e assim há autodeterminação mesmo com determinismo causal (ainda que tudo isso seja expediente, ou “relativo”). Em outras palavras, as coisas não estão escritas, e esse é um dos motivos para se praticar o darma (ensinamentos do Buda): as coisas são impermanentes e podem melhorar, e, mais do que isso, podemos acumular mérito e sabedoria e assim atingir lucidez perante o sonho.
Da mesma forma, algumas pessoas acham a ideia de carma com renascimento cruel: quer dizer que aquela criança morreu de uma doença terrível aos cinco anos de idade porque, numa vida passada, foi alguma espécie de criminoso? Esse pensamento que “criminaliza” o sofredor “inocente”, de fato, inverte o valor da ideia do carma. Quando vemos alguém causando sofrimento aos outros, devemos gerar compaixão por essa pessoa, porque ela também está causando sofrimento a si próprio. Normalmente não temos acesso às causas específicas de um sofrimento específico, mas entender causalidade não é denegrir o sofredor porque foi um “criminoso”, mas sim elevar o criminoso a um objeto de compaixão porque, ora, inevitavelmente será um sofredor! O Buda não criou nada, não desenhou o sistema de carma, nem o supervisiona. Não há sadismo em explicar a realidade.
A visão materialista, oposta ao budismo, dirá que os sofrimentos não têm causa, ou são causados por forças aleatórias. Se isso fosse verdade, também não haveria sadismo em explicar que as coisas são como são. Porém, quando comparadas meramente enquanto ideias livres de seus valores de verdade, isto é, quando não encararmos nem o budismo nem o materialismo como necessariamente verdadeiros, mas como meras ideias sobre as coisas, talvez seja adequado dizer que a visão materialista é um tanto mais cruel e sádica. O mesmo se pode dizer das diversas visões teístas, que se desdobram em mil argumentos para explicar a existência do mal (o sofrimento, vamos dizer assim) num mundo criado por um ser perfeitamente benévolo. A autodeterminação se torna uma espécie de maldição inexplicável, uma condenação a um estado degradado de imperfeição por motivos divinos misteriosos e inacessíveis.
O fato é que não está fácil para ninguém. Sejamos teístas, materialistas ou verdadeiros céticos, o sofrimento é uma realidade para qualquer um de nós.
De todo modo, a reflexão sobre o renascimento se dá, no budismo, também em termos de nossa presente circunstância. Em particular, refletimos sobre a boa fortuna de ter encontrado o próprio ensinamento do Buda, o que só ocorre com o acúmulo de ações virtuosas por centenas de vidas. Então se pode dizer que o budismo cria uma coemergência de empoderamento com seu praticante: na medida em que seu praticante reconhece o valor do darma, ele reconhece seu próprio valor em encontrar o darma — e ele sabe que, devido à impermanência, essa oportunidade pode ser perdida a qualquer momento, e que, portanto, a hora de se engajar e consumar os ensinamentos da lucidez é agora.
A ideia de que o budista poderia, portanto, deixar algo “para depois”, já que ele teria uma perspectiva de infinitas vidas pela frente, é absolutamente absurda. A oportunidade de reconhecer o sonho e estabilizar esse reconhecimento é rara, e deve ser apanhada com força. O nascimento humano é tão raro, segundo os textos, quanto a respiração de uma tartaruga que, nadando num oceano do tamanho do universo, vem à superfície a cada 100 anos. O nascimento humano precioso, isto é, aquele em que há possibilidade e interesse em praticar o darma, é tão raro como essa tartaruga, que vem respirar a cada 100 anos na superfície desse vasto mar, por acaso colocar a cabeça dentro de uma pequena boia à deriva na imensidão das águas revoltas.
Expediente — dentro do tempo, e direto — imediato, além do tempo, não se contradizem. Não produzem dissonância cognitiva. Para essa tartaruga, as coisas estão talvez mais fáceis por um curto período de tempo. Agora é a hora.
Os reconhecimento de professores renascidos
Ao contrário de outras tradições espirituais, em que reinos mais diáfanos são considerados superiores, a perspectiva budista sobre o âmbito humano como o melhor de todos faz com que qualquer praticante aspire renascer nesse âmbito, o único onde a prática do darma é possível. (Estritamente falando, há também as “terras puras”, mas de todo modo o voto de bodisatva é seguir renascendo para benefício dos seres, onde eles estiverem. A terra pura, nesse caso, se torna uma espécie de local de treinamento intensivo para novos renascimentos em lugares mais difíceis, mas onde seja possível trazer benefício aos seres. Se é apenas um sonho, não há o que temer, não há o que esperar.)
E, em particular, acumula-se mérito e sabedoria ao longo de várias vidas para obter/reconhecer (de acordo com a tradição) os dois corpos de um Buda. O “corpo da realidade”, ou o corpo do darma, de um Buda, o darmakaya, é dito o corpo de “benefício próprio”, isto é, é o próprio estado de nirvana/iluminação do Buda, onde ele usufrui o reconhecimento desimpedido da realidade como ela é, livre de fixações. O rupakaya, corpo da forma, é espontaneamente manifestado pelo Buda por compaixão para benefício dos seres enganados pelo sonho. O Buda manifesta necessariamente os dois corpos, e eles não são efetivamente separáveis — novamente, eles são separáveis na perspectiva expediente, por motivos meramente “didáticos”; na perspectiva definitiva, não são separáveis.
O rupakaya se divide em dois tipos, de “forma pura” e “forma impura”. Basicamente os seres que possuem alguma lucidez quanto ao sonho veem um Buda, e os seres totalmente imersos num sonho denso e reificado, veem outro Buda. A forma pura do Buda é atemporal, e a forma impura manifesta nascimento e morte. Sambogakaya, “corpo de deleite” é o nome sânscrito da forma pura, e nirmanakaya, corpo de aparição/emanação/surgimento é o nome sânscrito da forma impura. Resta dizer que impuro/puro se refere aos seres a quem se destina o ensinamento de cada um dos corpos do Buda, e não ao próprio Buda, que está além dessas categorias, e cujos três corpos, darmakaya, sambogakaya e nirmanakaya, são, na visão definitiva, que é a verdadeira, um só corpo.
Em tibetano, nirmanakaya é sprul sku, que se pronuncia “tulku”. Há três tipos de tulku: o Buda pode se manifestar como objetos inanimados sagrados (pinturas, estátuas, estupas, templos) ou ordinários (uma pedra, um riacho); pode se manifestar como professores do darma, em forma indeterminada (isto é, na forma de qualquer pessoa); e na forma dotada das marcas maiores e menores, num corpo “físico” espelhando a forma sambogakaya, isto é, como o Buda Sakyamuni, que tinha uma aura, um tufo de cabelo no meio das sobrancelhas, e orelhas com lóbulos grandes, etc. isto é, uma forma de buda “pré-determinada”.
Com relação ao fenômeno tibetano dos professores reconhecidos, estamos falando da segunda forma de nirmanakaya, a de professores com “forma indeterminada”, isto é, sem as marcas maiores e menores que identificam um Buda.
Essas “formas indeterminadas” do Buda são tradicionais a qualquer tipo de budismo mahayana. A peculiaridade tibetana é a institucionalização do processo de reconhecimento, treinamento e entronização de professores particulares, em linhagens. Isto é, a sociedade achou um jeito de determinar, até certo ponto, o tulku indeterminado. Sem dúvida é um mérito específico a essa sociedade.
Isto é, todo budista mahayana, e possivelmente de outras formas de budismo também, irá conceder que normalmente, ao olharmos uma rua movimentada, não temos como saber quem ali, entre os transeuntes, é um buda ou bodisatva. Então aquela caixa no supermercado, o cachorro vira-lata na rua, o político corrupto na TV, qualquer um deles sem dúvida pode ser um tulku indeterminado: na dúvida, melhor não julgar. No caso do político, ou de um criminoso qualquer, podemos e devemos usar toda a força da lei, e até os prender ou punir da forma adequada, tudo isso sem perder de mente o respeito interno de que pode haver um buda indeterminado ali. Nossa lucidez quanto ao sonho permite a total operação da lógica causal do sonho, da ética e dos procedimentos sociais mais adequados, e nós ainda assim nos congratulamos por estar dando plena exibição àquela forma de buda que encarceramos — se não prendemos, se não seguimos nosso papel moral dentro da causalidade, quem sabe não estamos justamente impedindo ou dificultando o pleno potencial de manifestação daquela emanação? Do ponto de vista da delusão, há dissonância cognitiva, do ponto de vista da lucidez, é uma visão totalmente integrada. A indeterminação, a incerteza, produz mais flexibilidade mental, não mais rigidez. “Respeitar o Buda” significa, acima de tudo, manter essa flexibilidade mental.
No vajrayana o que é uma recomendação para o mahayana, se torna um voto: não só podemos, mas precisamos ver todo e qualquer ser como um buda. Sabemos que são budas potenciais, não sabemos o quanto realizaram desse potencial; estamos curiosos quanto a que tipo de ensinamento podem querer dar com sua atual aparência degradada ou esquisita, e sabemos que, na atemporalidade, todos os potenciais já estão realizados. Desviar-se desse reconhecimento é quebrar um voto raiz do vajrayana.
Numa sociedade em que todas as esferas sociais foram sacralizadas pela estrutura monástica, e pela disseminada prática do vajrayana, como o Tibete pré-invasão chinesa, o tulku foi institucionalizado — também como uma forma de prover estabilidade política, já que os professores budistas seguem os líderes e pessoas mais influentes, mesmo quando deliberadamente tentam se afastar da política. É um sistema que reconhece os prodígios espirituais e lhes concede plenas possibilidades de desabrochar os potenciais.
Como isso ocorreu, na prática? Qual é o maior indício de que alguém é uma emanação de um buda? O principal indício é a corroboração de professores respeitados. Se alguém em que grande parte da população deposita profundo respeito reconhece alguém publicamente, essa pessoa dificilmente será objeto de dúvida. Esse é o cerne do reconhecimento, a confiança no depoimento de primeira pessoa de entidades supostamente (e efetivamente, no mais das vezes) desinteressadas. Depois há o comportamento da criança, e, enfim, o aspecto mais folclórico, um teste com o reconhecimento dos objetos do lama falecido. Na prática, tudo isso, e mais (cartas deixadas pelo lama falecido, sonhos, presságios de todo tipo) são usados como indícios.
O Tibete se focou exatamente nos ensinamentos vajrayana, que são uma forma de mahayana particularmente intensa. Os textos dizem que não é muito comum budas surgirem, e mais raro ainda é, quando um buda surge num determinado tempo, ele ensinar o vajrayana. Buda Sakyamuni ensinou o vajrayana exatamente porque em nosso tempo vivemos relativamente pouco tempo (em torno de 80 anos), e morrendo tantas vezes em tão curto espaço de tempo fica justamente mais fácil reconhecer certos aspectos do sonho. O vajrayana lida com ensinamentos úteis nas descontinuidades da consciência. Em reinos em que os seres vivenciam poucas descontinuidades, os ensinamentos mahayana são suficientes.
O vajrayana estabelece pela prática uma série de hábitos mentais arraigados (ainda que “puros”) e que facilitam, durante a morte e na próxima vida, reencontrar os ensinamentos. Todo praticante vajrayana treina para ser ele mesmo um tulku, para ele mesmo revelar e manifestar plenamente os corpos todos, enquanto se esforça para reconhecer seus professores e companheiros praticantes, e todos os seres enfim, eles mesmos também como budas. A palavra “mandala” se refere a essa configuração de perfeição inata em todos os níveis, grupos de Budas, o universo animado e inanimado como uma expressão dos corpos de buda.
Também as práticas detalhadas de visualização do estágio do desenvolvimento, por exemplo, espelham um nascimento puro — é como se a pessoa todo dia treinasse uma meditação, que, na hora da morte, possibilita encontrar diretamente a lucidez, e caso isso não se dê por circunstâncias desafortunadas, permita pelo menos um renascimento com boas condições para a prática do darma.
E é evidente que, se os praticantes comuns treinam para isso, os professores e mestres desse sistema sejam naturalmente encarados como artistas consumados em “renascer bem”. E o que significa renascer bem? Continuar seu treinamento com os melhores professores disponíveis, nas melhores condições possíveis.
E é aí que o tulku se torna uma espécie de profecia autorrealizada, o que de forma alguma quer implicar a irrealidade do fenômeno. O fato é que, se uma criança tem todo o mérito do mundo, em termos de boas condições dentro do darma — de receber a melhor educação, melhores condições de saúde, e assim por diante — essa criança só pode ser alguém que “soube renascer”. Ao reconhecer/escolher uma criança para ser o receptáculo de um nome, de uma linhagem, e do melhor treinamento disponível, essa criança, pela força da interdependência inexorável, só pode ser exatamente quem ela é, a saber, justamente quem está na posição em que ela está.
E, de fato, muitas pessoas não conseguem compreender como o renascimento se liga com a doutrina budista de que o eu é uma das principais delusões que impedem a pessoa de usufruir felicidade e reconhecer a realidade. Se não há eu, como há alguém que renasce, e particularmente, alguém que renasce e ganha o mesmo nome que tinha na vida passada? Para algumas pessoas parece que aí há uma perpetuidade do eu que está em desacordo com os ensinamentos do próprio Buda…
Porém, qualquer budista refere-se a si próprio com frases como “eu fui à padaria”, e atende com “presente” quando seu nome surge na lista de chamada. Se seguirmos esse raciocínio ao pé da letra, da próxima vez que encontrarmos nosso amigo budista, talvez seja adequado recriminá-lo com algo assim: “Você ainda acha que é o mesmo que eu encontrei 3 dias atrás? Rapaz, você não pratica nada mesmo!” Embora isso até seja verdade, num sentido “biológico”, nós mesmos operamos na expectativa de uma continuidade, e essa “continuidade” relativamente verdadeira e relativamente falsa, tem sua lógica própria que é um modo expediente evidentemente válido, operacional.
De fato, o eu não existe. Mas se o budista não se apresentar ao juiz quando receber uma intimação, porque o nome escrito na intimação não pode ser ele já que não há um “eu”, isso seria apenas uma desculpa furada. A madhyamaka diz que o eu é um nome sem base de designação — é como uma lápide no cemitério, marca um corpo, e daí umas centenas de anos, marca um lugar com alguns ossos, e depois de um tempo, marca apenas um lugar. Isso se a lápide permanecer naquele lugar, é claro, e íntegra. Em outras palavras, o eu tem nome, é claro, ele só não se refere a nada realmente existente, independente ou determinado. Podemos até dizer que o eu é apenas um nome. Meramente o nome, enquanto nossa visão de continuidade usual, expediente, convencional tenta se aferrar a esse nome.
E o caminho inverso é verdadeiro: quando o Buda Dipamkara encontrou o Bodisatva Sumeda e disse “daqui a quinhentas vidas você renascerá como Príncipe Sidarta e acabará conhecido como Buda Sakyamuni”, isso é simultaneamente uma injunção e uma revelação, uma profecia e uma ordem.
Ser chamado por um nome e ser reconhecido como um tulku, por si só é uma interdependência só explicável, no budismo, pelo renascimento. Na medida em que o próprio tulku tenha dúvidas, e a população em geral também, nessa medida, há problemas com relação a esse renascimento, e essa é uma circunstância infeliz para todos os envolvidos. Duvidar dos ensinamentos ou do professor é exatamente o mesmo que duvidar de si mesmo, duvidar de si mesmo é exatamente o mesmo que duvidar dos ensinamentos e do professor. Em certo sentido, rejeitar o rótulo é igualmente reificar o eu — você acredita numa base que não se refere àquele nome. E renascer, em certo sentido, é “apenas” receber um nome — surgir numa forma especifica.
Quando os meninos (e mais raramente as meninas, há muito que aperfeiçoar nisso) recebem seu título de tulku, eles passam por todo tipo de emoção quanto a isso: a posição elevada, a fama e as posses, os pode fascinar, mas logo o peso da responsabilidade, e a própria institucionalização, também pesam. Até o praticante reassentar a perspectiva budista em sua própria consciência, pode levar alguns anos — se o tulku é legítimo. Hoje em dia sabemos de muitos tulkus que desistem de seu papel, por vários motivos — fracasso das instituições, dificuldades na prática do próprio tulku. Tradicionalmente acredita-se que essas pessoas encontram muitas dificuldades na vida por não realizar plenamente seu potencial, mas isso também pode apenas ser um modo de efetuar o controle social sobre o treinamento desses tulkus. O fato é que desperdiçar grandes oportunidades é tão triste quanto seguir solenidades sociais por mera obrigação.
E também surgem problemas como cisão na comunidade, quando dois grupos de alunos elegem dois tulkus (e embora possa haver mais de um tulku de um mestre, nesse caso um grupo não reconhece o tulku do outro grupo), e até a ironia de países materialistas como a China quererem controle sobre o renascimento do Dalai Lama. E sempre houve “tulkus falsos”, crianças que foram utilizadas como mera moeda de troca e manipulação política em linhagens com problemas internos. Os problemas da instituição do tulku são variados, embora a noção do tulku como “emanação indeterminada de um buda ou bodisatva” não seja problema para nenhuma tradição budista.
Alguns professores, como o próprio Dzongsar Khyentse Rinpoche (tulku de um dos mais renomados mestres do século passado — e que afirma sobre sua própria vida passada “devo ter sido um inseto que ele matou sem querer e fez uma aspiração, por isso estou nessa posição”) afirmam que o sistema de tulkus pode não funcionar no mundo moderno, e que nesse caso, talvez seja melhor abandoná-lo. A instituição do tulku não é considerado algo essencial ao budismo, apenas o tulku como um dos três corpos do Buda, e o potencial indeterminado de qualquer um à sua frente ser um buda, essas ideias são sim essenciais a certas formas de budismo — e potencialmente aceitas por todas.
Além disso, mesmo no Tibete já se sabia que para cada tulku justamente reconhecido, havia muitos outros que se “escondiam”, e traziam benefício sem ostentar uma posição elevada. Da mesma forma que se sabe que alguns tulkus não deram nada certo, e provavelmente foram reconhecimentos problemáticos, se sabe que alguns mestres budistas preferem trabalhar fora de instituições e qualquer tipo de reconhecimento público.
Kyabje Dilgo Khyentse Rinpoche (à direita) e seu tulku — renascimento reconhecido, chamado de yangsi “outra vez”.
Qual é a utilidade da reflexão sobre renascimento
Na prática quotidiana, uma série de ideias ligadas ao renascimento são bastante importantes.
Primeiro, é preciso reconhecer o carma, a causalidade ligada a ações negativas, neutras e positivas e os resultados correspondentes, e esse reconhecimento só funciona bem se consideramos muitas vidas. Em particular nossa circunstância atual, e o fato de que nos interessamos pelo darma, são explicados pelo darma como um conjunto muito vasto e cuidadosamente cultivado de ações virtuosas e aspirações pelos ensinamentos.
Depois, quanto à reflexão sobre o sofrimento, essencial para o praticante budista, os sofrimentos de uma só vida, e das vidas humanas e animais com que temos contato, não são, pasmem, suficientemente vastos na perspectiva budista. Precisamos visualizar reinos onde há sofrimentos evidentes e piores, bem como reinos onde há sofrimento não tão evidentes, na forma de intensa satisfação enganosa. Da mesma forma que perdemos a sensibilidade quanto aos mendigos em nossa rua, ou quanto a tragédias vastas em que a vida das pessoas é vista como uma estatística, precisamos cultivar um reconhecimento agudo e vasto de todas as formas possíveis de sofrimento, o que inclui situações aparentemente extremamente favoráveis, mas que não permitem a prática do darma e a lucidez. Isso, modo geral, requer que os sofrimentos não sejam tão simplesmente eliminados com a mera morte, por exemplo, talvez com um tiro na cabeça. Caso nossa perspectiva seja de que o sofrimento cessa com a morte, se tornará absolutamente impossível praticar o darma — e, de fato, sob certa perspectiva, nem mesmo será possível enfrentar os inevitáveis sofrimentos desta vida com dignidade, que dirá de outras vidas extremamente desfavoráveis possíveis.
Enfim, precisamos refletir que todos os seres já foram nossa mãe incontáveis vezes. Qualquer inseto com que nos deparamos já cuidou de nós, nos alimentou do próprio corpo, trocou nossas fraldas, etc. milhares de vezes. E não só foi nossa mãe, mas manteve bilhões de vezes cada um dos relacionamentos possíveis, significativos ou não, que vivenciamos com os vários seres com que nos deparamos ao longo dessa vida e de qualquer vida possível: insetos, animais domésticos, animais de que nos alimentamos, namorados, chefes, celebridades, professores, atendentes de telemarketing, vizinhos.
Dessa forma, a reflexão sobre o renascimento amplia naturalmente nossa perspectiva sobre causalidade, sofrimento e compaixão — e de nossa posição atual, numa encruzilhada que pode levar a mais lucidez, ou a mais confusão. O próprio entendimento do que é existência cíclica, base do refúgio (tomamos refúgio no Buda para que ele nos proteja dos sofrimentos da existência cíclica), sem renascimento, acaba se resumindo a uma espécie de bipolaridade emocional, circunscrita a nossa experiência mais rasteira das últimas semanas ou anos — particularmente no mahayana não há refúgio no Buda num contexto de prática que só inclua uma vida.
Um dos sinais de que a pessoa se tornou uma “pessoa do darma”, um praticante, é exatamente ela não direcionar sua prioridade para conquistas desta vida, mas para a geração de méritos que a servirão no momento da morte e por muitas vidas. Alguém, no mesmo estilo da argumentação dos ensinamentos “mais diretos”, pode dizer que, de todo modo, ela segue olhando para um futuro que também é “como um sonho” — portanto “perdendo o momento presente”, ou algo assim. E, novamente a resposta a isso é que não existe contradição alguma entre ensinamentos expedientes e diretos. O momento presente é tão “como um sonho” quanto qualquer outro momento passado ou futuro. Os ensinamentos diretos referem-se a um “momento” fora do tempo, a instrução sobre o momento presente, presente em muitas tradições budistas, é também um ensinamento expediente. Além do que, quem reifica supostos ensinamentos diretos em detrimento de perspectivas expedientes, expostas pelo próprio Buda em sua sublime compaixão, está basicamente distorcendo o darma para obter uma desculpa.
O Buda nunca ensinou a alguém acreditar apenas por acreditar, mas é importante treinar nesses itens nem que seja como experimentos de pensamento. Então só é um problema se você acreditar muito fortemente que o renascimento não é uma possibilidade. Na medida em que ele for uma possibilidade, você faz essas reflexões, e isso naturalmente aprofunda sua prática.
Se alguém quer confirmações sobre o renascimento, relatos de pessoas que lembram detalhes de vidas passadas existem, mas não parecem ajudar muito. Há muito mais pessoas que não lembram coisa alguma, inclusive eu e possivelmente você. A prática de meditação, feita intensamente por um longo tempo, sob a supervisão de um professor qualificado, pode produzir memórias confiáveis, e esse tipo de experiência pode fortalecer muito a prática de alguém. Porém há objetivos mais fáceis dentro da prática que são mais benéficos, então essa motivação para a prática de meditação talvez não seja a melhor.
Renascimento além do tempo e interdependência profunda
Num sentido mais profundo, o tempo faz parte da delusão. Na realidade última, todos os surgimentos são interligados atemporalmente — não há propriamente “surgimentos” ou nascimentos, e nunca houve, senão na nossa experiência delusiva, no nosso “sonho”. O único motivo pelo qual dói em nós quando alguém nos belisca, e não dói quando outra pessoa é beliscada, é a delusão, nossa ignorância. De fato, se vemos o outro sofrer, tendemos naturalmente a sofrer junto em certa medida. Chamamos isso de “empatia”, que é, na verdade, nossa cognição operando com um pouco mais de clareza. Reconhecendo um pouco mais a realidade, que é a inseparatividade atemporal de todos.
Todos esses seres que sofrem só surgem como seres separados nos três tempos, passado, presente e futuro, porque reificamos o tempo e o espaço e nossa experiência presente — nosso sonho “atual”. Essas experiências todas são tão nossas quanto deles, e é por isso que atingir a lucidez é esclarecer todo o sonho, para todos os seres, além do tempo. A lucidez é um néctar que purifica cada existência e cada sofrimento como nada mais do que a própria experiência de lucidez. A delusão, por outro lado, transforma tudo que toca numa prisão separativa onde só há problemas sem solução, e assim, saltamos para uma nova tentativa de operar livremente, apenas para nos ver enredados em outra circunstância sem solução.
Temos vivido uma sucessão infindável de experiências sem solução e sem sentido. Talvez seja hora, se temos mesmo mérito para tanto, de parar e olhar o que está acontecendo. Talvez seja o momento de tentar entender o que significa “Buda”, e que tipo de postura (manifestação) um ser com essa perspectiva traz ao sonho que reconhecemos como mundo.
Podemos usar a linguagem de que cada nascimento — de qualquer ser, em qualquer tempo — é nosso próprio nascimento, além do tempo. Mas mesmo isso seria reificar a nós mesmos como o centro de alguma coisa, o que é bastante desnecessário.
Este texto foi inspirado pelas palestras de Dzongsar Jamyang Khyentse Rinpoche sobre o tema, mas não tenho a pretensão de com esse panfleto superficial fazer jus, ou mesmo fielmente reproduzir como um papagaio, os ensinamentos de um professor insuperável. Qualquer resquício de sabedoria que eu imprecisamente tenha espelhado aqui se deve unicamente à compaixão dos professores autênticos que minha boa fortuna permitiu ver em pessoa, enquanto que qualquer erro que eu porventura tenha cometido é culpa apenas de meu diletantismo. Que a partir dessas reflexões pretensiosas e delirantes, olhos se arregalem e mentes explodam para além da restrita percepção do sonho centrado na cabeça de um corpo com dois braços e duas pernas. Que todos os seres vivenciem o estado de lucidez sem centro, dotado de tantos braços de amor e pernas de compaixão — e olhos, cabeças, ornamentos e palácios — quanto partículas aparentam preencher o sonho de um espaço sem limites. Que a visão definitiva, que nunca obstrui qualquer ensinamento expediente, mas de fato ressoa em todos eles e assim desnuda todas as intrincadas aparências perante a lucidez, seja espontaneamente conquistada por todos.
◦ Budismo sem renascimento, vídeo no Canal Tendrel no YouTube
◦ Seriam os reinos budistas apenas metáforas?, texto de Padma Dorje em tzal.org
◦ Os reinos budistas realmente existem?, vídeo no Canal Tendrel no YouTube
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