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Uma Resposta sobre Nichiren


Estive em contato com suas respostas sobre “formas de budismo”, o achei de extrema utilidade intelectual. Porém, particularmente com a parte onde se refere ao budismo de Nichiren Daishonin, confesso ter ficado decepcionado.

É compreensível a interpretação de que o budismo de Nichiren Daishonin prega a ultrapassabilidade dos ensinamentos de Shakyamuni Buda, mas e se essa é uma conclusão acertada? O budismo de Nichiren reconhece o crescente aninhamento dos seres humanos às aflições mentais, e por consequência, a crescente dificuldade na compreensão dos ensinamentos de Shakyamuni.

A recitação do nome do Sutra do Lótus, mais especificamente, em devoção ao sutra (“Namu MyoHoRenGueKyo”), é uma peculiaridade do budismo de Nichiren. Após reconhecer que o Buda descartou os meios hábeis e descreveu a própria iluminação sem discriminação, particularmente (em essência) para os Bodhisattvas, Nichiren Daishonin, reconheceu a própria iluminação no sutra. Para não perdermos a carruagem, Daishonin reconheceu o grande significado que o sutra carrega, e só por devotar-se à ele, é-se possível, “alcançar” a iluminação.

Permita-me contextualizar de que perspectiva venho. Quatrocentos anos antes de Nichiren, o budismo era reintroduzido no Tibete, pelo “Segundo Buda” Guru Rinpoche. O budismo entrou no Tibete num período que vai do ano 600 até o ano 1000, mais ou menos, período em que a tradição budista tardia na Índia estava sendo dizimada pelos muçulmanos.

Eu pratico a tradição de Guru Rinpoche, que começa pelo ano 800, na qual há uma quantidade imensa de meios hábeis, destinados a pessoas de todos os tipos de inclinação, com ou sem capacidade de se focar em práticas extensas ou estudo, com foco na devoção ao próprio professor como a manifestação de um buda. Não um professor que morreu lá no passado e está na história, mas o próprio professor atemporal que se manifesta como aquele que ensina para você nesta vida, e que enfim, revela sua própria natureza como a mesma dele e de todos os budas.

Também, nessa tradição, já no ano 800, se acreditava que os “tempos degenerados” em que as aflições mentais eram fortes demais para permitir a prática nos moldes que Shakyamuni ensinou mais abertamente já havia chegado. A prática ideal para tempos como os nossos foi portanto enfatizada por Guru Rinpoche.

Se a pessoa quer se focar em textos, muito bem, se ela quer recitar mantras, ou o nome de um buda ou sutra, tudo bem também. Mas essas são consideradas práticas inferiores perante o reconhecimento direto da natureza de liberdade atemporal inata, ornamentada por todas as qualidades iluminadas. Quem não se detém nisso natural e espontaneamente, sem esforço, pode então se engajar numa profusão de métodos, inclusive recitar coisas, lembrar com afeição de figuras históricas importantes no budismo, ou olhar para textos com grande esforço — esses métodos “inferiores” estão sempre disponíveis pela compaixão dos budas.

Porém, o reconhecimento direto é o método superior nos tempos degenerados, segundo descreveu o nosso “Segundo Buda”.

Nossa tradição efetivamente também preservou o Sutra do Lótus, e em meio a uma profusão de métodos, o classifica como mahayana tardio, e embora ele seja objeto de recitação anualmente em alguns festivais (juntamente com 300 ou 400 outros sutras), ele não é sequer foco de estudo (muito menos a recitação de seu nome — afinal, há tantos nomes exaltados para recitar). O budismo tibetano se foca nos tantras, que são considerados ensinamentos embasados nos sutras, mas superiores. No entanto o budismo tibetano atribui a origem dos tantras, nesse kalpa bom, ao próprio Buda Shakyamuni. Apenas que a entrada nesses ensinamentos não era aberta a todos: os tantras são ensinamentos de Shakyamuni para assembleias “VIP”, mais restritas. O que está descrito nos sutras mahayana foi o que foi ouvido em assembleias públicas, com a presença de muitos bodisatvas, o que está descrito nos sutras hinayana foi ouvido em assembleias ainda mais públicas, com a presença de muitos ouvintes e monges e não tantos bodisatvas, e o que está descrito nos tantras foi ouvido em assembleias restritas, na presença de apenas bodisatvas mahasattvas (se revelando budas no tantra) e outros budas.

A tradição tântrica no budismo começa pelo ano 200, chega a seu apogeu no ano 600, e na Índia vai até o ano 1000, com as invasões muçulmanas. Ela é preservada de forma mais completa então pelos tibetanos — que é um povo ainda mais isolado e mais xenófobo que o povo japonês. Dessa forma, foi apenas em expedições a partir do séc XVI que o ocidente vem a conhecer o Tibete, culminando com as primeiras traduções de textos na década de 1930, e enfim com a diáspora causada pela revolução cultural, os primeiros tibetanos começam a estudar os hábitos ocidentais — e eles são essencialmente professores budistas. É apenas a partir da década de 1990 que os estudos do budismo tibetano primeiro ganham maior profundidade no ocidente. Comparativamente, o Japão tem sido muito mais estudado — e reciprocamente estuda-se o ocidente no Japão desde o século XIX. Então, para dois brasileiros falando de budismo, pode parecer que o budismo japonês tem mais preponderância no imaginário global, mas no contexto asiático, do próprio budismo, e no contexto global a partir de 1990, o resgate de literalmente milhares de tradições budistas da Índia, China e Tibete começam a obliterar a perspectiva japonesa, até agora dominante.

Mas, sem querer ser muito comparativo, podemos estabelecer que são cinco as línguas centrais do budismo: páli, sânscrito, chinês, tibetano e japonês. Todas essas línguas produziram professores muito importantes e muitos “segundos budas”, em vários momentos históricos distintos. Com certeza Nichiren é um dos muitos contribuintes exaltados do quinhão que concerne o japonês, a mais tardia e derivativa das línguas budistas. (Por que derivativa: todas dependem do páli, o tibetano e o chinês dependem do páli e principalmente do sânscrito, e o japonês depende do páli, do sânscrito e do chinês — pode-se assumir que a cada tradução do darma algo se perca, e que quanto mais etapas, mais perda). Agora, um brasileiro escolher arbitrariamente uma cultura asiática de estimação e focar num “segundo buda” etnicamente restrito, é um pouco de racismo. Mas eu também sou culpado disso, dada minha preferência pelos tibetanos. Isso é um pouco carma também — positivo, negativo, neutro —, como time de futebol.

De fato, para um brasileiro, recitar o nome de um sutra que foi exposto em sânscrito usando o japonês é um passo bastante arbitrário, não é mesmo? Em certa medida, nós que praticamos o budismo tibetano, também somos culpados do mesmo tipo de arbitrariedade, embora no Tibete sempre tenha havido uma tentativa muito forte de preservação do sânscrito, particularmente no nome dos textos e mantras. Então, se nós no budismo tibetano fôssemos efetuar a prática de recitar o nome de um sutra, certamente o faríamos na língua original ou em nossa própria língua, não numa língua intermediária (e por isso arbitrária) como o japonês ou o tibetano. Ainda assim, é comum aos praticantes do budismo tibetano incorporarem erros de pronúncia comuns a tibetanos, mesmo com fonemas que nos são naturais no português, como o representado pela letra “v” (que os tibetanos não pronunciam bem, e transformam em “b”). É muito comum copiarmos hábitos próprios da cultura e língua tibetana, e isso também é uma forma de respeito por nossos segundos e terceiros budas, isto é, pela linhagem que nos passou essas recitações.

Na visão do budismo tibetano, recitar o nome de um sutra é uma atividade virtuosa, mas recitar dharanis é superior, e recitar mantras raiz superior ainda. Porém a recitação, por virtuosa que seja, e por mais que nos engajemos nela no budismo tibetano — acumulando milhões de recitações do mantra do Guru, ou do mantra de Amitaba, ou do mantra do bodisatva Avalokiteshvara — é um meio hábil inferior perante o reconhecimento direto. Quem não reconhece, daí faz prática de sadhana, que é uma meditação guiada com foco na recitação de um mantra — quem não consegue isso, faz shamata, meditação em silêncio. Quem não consegue shamata, faz circumambulações e prostrações. Quem não consegue isso, faz doações em trabalho e dinheiro para a sanga. Quem não consegue isso, ouve o darma. Quem não consegue isso, lê o darma. Quem não consegue isso, assiste o darma no YouTube. Provavelmente, o melhor é fazer todas essas coisas, e focar na que funciona melhor para você.

Independente disso, uma vez por ano, mais ou menos, a pessoa pode entrar num festival de recitação de sutras, onde se recita todo o cânone, sem focar num sutra específico. Infelizmente, o estudo dos sutras (além da mera recitação) está negligenciado no Tibete há alguns séculos — infelizmente porque é importante e meritório preservar ao máximo a tradição de Shakyamuni, que aliás inclui o Sutra do Lótus. Ninguém estuda e ninguém reverencia especialmente o Sutra do Lótus no budismo tibetano, não a frente de outros sutras, e particularmente não a frente de tantras, que são considerados métodos mais rápidos e mais adaptados a essa era degenerada onde as aflições mentais são muito fortes, e onde não há tempo para praticar, e as condições externas também são difíceis (poluição, por exemplo). Os Sutras, tais como o Sutra do Lótus, mas literalmente centenas de outros, são o fundamento e justificativa de tudo, mas esses tempos difíceis exigem práticas mais diretas, e essas práticas, na visão do budismo tibetano, estão nos tantras.

Na verdade, o ensinamento que penetrou o Tibete já existia na Índia, focando-se na universidade de Nalanda, a primeira universidade que existiu, e principal centro de aprendizado ligado aos ensinamentos do aliás também “Segundo Buda” Nagarjuna, quase mil anos antes de Nichiren. Nichiren, por essa conta, já seria o “Quarto Buda”, não é mesmo? Se vamos levar em conta cada um que foi aclamado como segundo buda dentro do budismo, é um bocado arbitrário começar justo com um japonês! O primeiro a receber esse título com certeza foi Arya Nagarjuna, se a gente tá contando. Acho importante que os japoneses tenham suas próprias tradições budistas, mas sem perder de perspectiva, é claro, que outros lugares tiveram outras histórias. Agora que estamos falando português, ficar presos em quem se chamou de “Segundo Buda” em sânscrito (Nagarjuna), tibetano (Guru Rinpoche) ou japonês (Nichiren, aliás, o mais novo “segundo buda” aqui mencionado, mas certamente há outros depois dele que também receberam o epíteto) é um bocado arbitrário!

O tantra penetrou também no japão, na forma do budismo Shingon. Porém, o Shingon só levou os tantras inferiores (há, dependendo da escola, quatro ou seis classes de tantra, sendo os inferiores, os “externos”, correspondendo às três primeiras classes tanto na lista de quatro quanto na de seis). Apenas o Tibete — devido ao clima seco — preservou todas as classes de tantra e a maior variedade de textos originais e traduzidos de todas as tradições do continente asiático até mais ou menos o ano 1000. Após o ano 1000, as centenas de tradições tibetanas continuaram compondo incontáveis textos, com incontáveis perspectivas, como também aconteceu no Japão, com possivelmente a mesma diversidade, antes e depois de Nichiren.

Na minha tradição, o título “Segundo Buda” na verdade não faz sentido: é sempre, em cada um dos casos, o primeiro, que é a própria natureza da realidade inseparável da natureza da sua própria mente, a união de compaixão e sabedoria. No entanto, como Buda Shakyamuni é o primeiro registro histórico nesse “bom kalpa” de 1002 Budas, ele é mais importante para nós no budismo do que qualquer outra figura. Que haja um budismo que coloca o seu próprio professor patriarca à frente de Shakyamuni é até bem bonito. Soa esquisito, mas entendo, porque na minha tradição colocamos nosso próprio professor nessa vida, aquele que vemos em carne e osso, como à frente de Shakyamuni, porque ele teve a compaixão de surgir para nos ensinar aqui e agora, não surgiu na forma de um texto morto, ou de um nome na história. Então o “Primeiro Buda” é meu próprio professor. Ou a própria natureza da minha mente. Um desses dois é primeiro e o outro segundo, ou, na verdade, não tem preponderância não, não tem tanta diferença na verdade... De todo modo, foi meu professor nesta vida que me apresentou a Shakyamuni e todos os outros “Segundos Budas”, tais como Nagarjuna, Asanga, Guru Rinpoche, Milarepa, Sakya Pandita, Tsongkhapa, Bodhidharma, Ikkyu, Mipham Rinpoche, Dilgo Khyentse, Trungpa Rinpoche. E meu objetivo não é ser ou me reconhecer segundo ou “n Buda”, mas exatamente igual a esse sempre primeiro Buda, inseparável de todos os professores do darma, e particularmente de Shakyamuni, e, no meu caso, Guru Rinpoche.

Claro, é bom lembrar que Shakyamuni, na tradição indo-tibetana, é o “Quarto Buda” desse kalpa particularmente bom — há muitos kalpas que não tem Buda algum, enquanto alguns, no passado e no futuro, tem menos de 1002 budas, ou muito mais que isso, chegando aos bilhões em alguns kalpas “excelentes”, sejam anteriores ou posteriores a este. Algumas tradições japonesas colocam Shakyamuni como “Oitavo Buda” desse kalpa. De todo modo, nas tradições que contam os 1002 Budas, o quinto desses 1002 só virá quando até o nome ou qualquer referência a Shakyamuni estiverem totalmente esquecidos — exatamente como aconteceu com aqueles três budas que surgiram antes de Shakyamuni nesse kalpa. Kalpa é um período de tempo bem grande. Embora Milarepa seja um Buda, ele ensinou o darma num tempo em que o Buda Shakyamuni ainda é lembrado, e sob sua direta influência: então Milarepa certamente se prostra ao Buda Shakyamuni, sem reservas. Caso Nichiren espere que o Buda Shakyamuni se prostre a ele, ou ele se recuse a se prostrar ao Buda Shakyamuni — realmente não sei se chega a tanto —, então tudo bem, deve ser uma tradição new age do Japão medieval, mas não é budismo. Caso ele seja, como entre tantos, mais um completamente iluminado pelo caminho de Buda Shakyamuni, regozijamos com sua presença na sanga.

Nota: Há muitas tradições japonesas que se formaram em torno de Nichiren Daishonin. A mais popular no mundo, e no Brasil, infelizmente não é uma forma autêntica de budismo, sendo uma forma de “nova religião” do pós-guerra japonês, ligada à política e ao que reconheceríamos como semelhante ao fenômeno que no cristianismo se reconhece como “igrejas evangélicas” ou “neopentecostais” focadas em resultados materiais e no dízimo. No entanto, parece haver formas de budismo influenciadas por Nichiren que são autênticas, elas só são bem mais raras no mundo, e particularmente no Brasil.

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