Uma reflexão pessoal sobre a existência rotulada
O jogo de um ser (supostamente) realizado no séc. XXI
Este artigo foi escrito por Thangtong Trulku para a publicação anual Udumvara1Texto original em inglês..
Sou um tulku mimado, facilmente distraído, preguiçoso e arrogante. Para ser franco, sou a última pessoa que deveria estar escrevendo sobre qualquer coisa, quanto mais um artigo para a revista de Rinchen Namgay. Eu nem consigo corresponder às minhas próprias expectativas, então a chance é tão pequena de eu conseguir inspirar jovens budistas que chega a ser risível! Mas Rinchen Namgay é meu amigo, e ele insistiu muito para que eu escrevesse algo para ele. Suponho que o ‘OK’ despreocupado que escapou de minha boca indisciplinada seja uma forma de pagar algum tipo de dívida cármica. Seja como for, me senti obrigado a escrever estas poucas palavras. Até onde posso ver, elas só servem para mostrar minha ignorância, mas fiz o possível para não pregar ou ensinar. Em vez disso, ofereço a você um vislumbre da minha vida e das coisas que amo a respeito do budismo.
Eu tinha quatro anos quando fui reconhecido como tulku por ninguém menos que S.S. Sakya Trinzin. Não estou dizendo isso para me gabar, mas para que você imagine como isso é estranho. Aos quatro anos eu não pensava nessas coisas. Tudo o que me interessava eram brinquedos e comida — só isso! Então, de repente, meu pequeno mundo mudou, mais ou menos da noite para o dia. Fui dormir um despreocupado menino de quatro anos e acordei no dia seguinte uma pessoa completamente diferente.
Depois de ser reconhecido como um tulku de Thangtong Gyalpo, fui enviado à Índia para começar minha educação monástica. Ainda lembro vividamente do dia em que meus pais me deixaram sozinho com todos aqueles homens carecas de vestes vermelhas. Eu instintivamente sabia que ficaria sozinho quando meus pais voltassem para casa, só não sabia quando isso aconteceria. Um dia eles me disseram que iriam sair para comprar uns baldes e que voltariam em breve. Lembro-me de brincar com outros pequenos monges até ficar exausto, e depois adormecer. Quando acordei no meio da noite, não achei meus pais em lugar algum. Quando um monge mais velho me disse que eles tinham voltado para o Butão, fiquei arrasado. O que mais doeu foi que eles nem se despediram. Mas deve ter sido difícil para eles também, especialmente para minha mãe. Anos depois ela me contou que chorou durante todo o caminho de volta para casa.
Foi assim que fui apresentado à vida monástica.
A maioria de vocês provavelmente espera que um tulku seja bem comportado, sábio e inteligente por natureza. Vocês também devem pensar que os tulkus são diferentes das pessoas em geral, e que tenham qualidades especiais e lembrem de suas vidas passadas. Bem, não foi assim para mim. Eu fui, e ainda sou, um garoto muito comum. Não tenho nenhuma qualidade especial e não consigo lembrar nem o que almocei hoje, que dizer minhas vidas passadas. Foi uma grande surpresa descobrir, durante minha entronização, que o título ‘tulku’ literalmente significa ‘o jogo de um ser realizado’.
Nos anos 90, Pewar Rinpoche concedeu o Rinchen Terdzö em Bir. Um dia, saí do salão de iniciação para ir ao banheiro. No caminho de volta, avistei uma enorme estátua cercada de vidro. Era linda, e atrás dela havia muitas pedras mani. Eu era tão travesso e curioso quanto qualquer outra criança, e assim peguei uma pedra e a arremessei contra o vidro. Felizmente, o vidro não quebrou, mas o barulho imediatamente atraiu a atenção de Orgyen Tobgyal Rinpoche. Eu não havia percebido que ele estava por perto. Na época ele era conhecido por sua ira desmedida — todos o temiam — então corri em desparada para salvar minha pele. Mas não fui rápido o suficiente. Seu atendente rapidamente me apanhou e me levou até OT Rinpoche. Não havia escapatória. Descaradamente, inventei a história de que na verdade estava mirando na árvore atrás da estátua, mas OT Rinpoche não acreditou nem por um segundo. Ele me deu vários tapas pesados nas costas, agarrou minha orelha, torcendo-a dolorosamente, e me arrastou de volta ao meu lugar.
Não adianta tentar suavizar, eu era muito travesso durante toda a minha vida de estudante, especialmente nos anos que passei no shedra. Na verdade, eu não estudei nada — talvez tenha conseguido estudar umas 50 horas no total em sete anos! Na maior parte do tempo, eu apenas dormi, li quadrinhos, assisti filmes e fiz tudo o que me diziam para não fazer. Minha reputação era de ser o aluno mais encrenqueiro de todas as classes que frequentei. Alguns dos tutores de meus amigos não permitiam que eles andassem comigo — achavam que eu era uma má influência para seus tulkus e que os encorajaria a serem imprudentes.
Como muitos de vocês, sempre que me deparava com situações difíceis ou exigentes, eu me sentia inadequado. Com certeza sempre senti que não era bom o suficiente para ser um tulku. Às vezes até tinha dúvidas sobre certos aspectos do budismo. Por exemplo, quando estudei a filosofia do Caminho do Meio, eu discutia o tempo todo com os colegas. Cheguei até a afirmar que o budismo não é nada assim tão especial, que é só uma religião criada por um homem superinteligente chamado Sidarta, em quem todos acreditaram cegamente.
Por eu ser um tulku e minha vida e criação não terem sido comuns, muitas pessoas parecem pensar que estou destinado a naturalmente exalar qualidades especiais. Isso nunca vai acontecer. Eu não sou diferente de qualquer outro ser preso ao samsara. Não consigo andar sobre a água ou voar no céu. E, embora agora eu saiba que tudo o que vejo e experimento é apenas um jogo, como todos os outros jovens da minha idade, estou cheio de emoções negativas, pensamentos turbulentos e aguardando impaciente a próxima temporada de Game of Thrones e The Walking Dead.
Quando criança, eu não tinha noção do que significava ser um tulku. Não fazia ideia do que se esperava de mim. À medida que fui crescendo, comecei a ter dúvidas sobre se eu realmente era o “jogo de um ser realizado”. Será que S.S. Sakya Trinzin havia cometido um erro? Será que ele poderia ter escolhido o garoto errado? Alguém com tantos defeitos poderia, ainda assim, ser “autêntico”? Eu conversava muito sobre isso com meus amigos. Embora todos eles concordassem que me faltam quaisquer qualidades extraordinárias de um tulku, ainda assim seguiam acreditavam que eu sou um tulku, porque confiam implicitamente no mestre que me reconheceu. E foi essa fé e devoção extraordinárias que eles tinham no guru que me fizeram pensar.
Percebi que, apesar de ser tão preguiçoso, tive o bom carma de encontrar muitos mestres especiais e de ter recebido muitos ensinamentos preciosos. Então, talvez tudo o que aconteceu comigo tenha acontecido por um motivo? Talvez eu fosse destinado mesmo a ajudar as pessoas? Gostei dessa ideia. Por menor e insignificante que parecesse, a ideia de que eu tinha um propósito transformou minha visão. Tudo aquilo que antes eu duvidava e parecia inútil, de repente, não era mais.
Não posso falar pelos outros tulkus, mas até agora, nesta vida, tive que aprender e desaprender muitas coisas. Demorei um pouco para perceber de verdade que a devoção genuína e a confiança inabalável no Darma de Buda não podem ser encontradas em simples rótulos e títulos. Elas são resultado de uma luta constante, introspecção, contemplação dos vastos ensinamentos de Buda e uma devoção profunda e sincera pelo Guru. Meu Guru, Dzongsar Khyentse Rinpoche, tem sido uma grande inspiração. Ele sempre demonstrou muita confiança em mim e uma bondade incrível. Ele realmente me ajudou a superar minhas dúvidas.
Desde que percebi que tinha um propósito, minha crença no budismo cresceu. Me sinto mais feliz e mais à vontade comigo mesmo, independentemente de quem as pessoas pensam que eu sou. Não me importo mais com o fato de ser ou não um tulku, e definitivamente não me pressiono pensando nisso o tempo todo. Hoje em dia, apenas tento ser eu mesmo e, se possível, ajudar os outros.
Khyentse Rinpoche, meu Guru, também abriu a porta para o retiro de três anos para mim. Mas minha principal razão para permanecer em retiro foi o fato dele querer que eu fizesse isso. Eu não teria ousado tomar essa decisão por conta própria. O retiro me ensinou habilidades valiosas para a vida, como culinária, cortar lenha, carpintaria e fazer tormas! Mas a lição mais valiosa que aprendi foi que, se alguém como eu pode fazer um retiro de três anos, não há limites para o que qualquer um de vocês pode fazer. Só é preciso vontade e determinação para começar, e o resto segue naturalmente. Devo confessar, no entanto, que, como de costume, eu fui a pessoa mais preguiçosa e indisciplinada do retiro.
Se eu pudesse viajar no tempo e encontrar meu eu mais jovem, diria a ele para estudar mais, dar o seu melhor em tudo o que estivesse fazendo, ser mais feliz e não se pressionar preocupando-se com o que os outros pensam dele. No fim do dia, a única pessoa que complica e torna as coisas desnecessariamente difíceis é você. Não quero parecer rude, mas a verdade é que ninguém mais pode fazer a sua parte por você.
Hoje em dia, a maioria das pessoas carece de confiança. Acho que essa falta de confiança leva a desemprego, solidão, uso de drogas, depressão e suicídio. Praticar o budismo, estudar um pouco e praticar quando sobrar um tempo, pode ajudar a mudar tudo isso. Isso me ajudou — eu, o tulku mais preguiçoso e travesso do planeta — então por que não funcionaria para você também? Não caia na armadilha de imaginar que, um dia, tudo vai se resolver, ou que você começará a praticar budismo quando se aposentar, porque tudo nesta vida é impermanente e instável. Pergunte a si mesmo: você tem alguns minutinhos por dia para fazer algo significativo? Para aprender a confiar em si mesmo e assumir total responsabilidade pelo resto da sua vida — e não apenas pelas partes boas? Acho que todo mundo tem, e talvez agora seja o momento perfeito para você começar.
Traduzido por Padma Dorje em 2024.
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