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Perfil: Chagdud Tulku Rinpoche (1988)


O artigo que segue é do exemplar de outono de 1988 da Snow Lion Newsletter. É possível ver aqui o artigo em seu contexto original.

O pensamento dualista é a rede que aprisiona. O detentor do reino é o reconhecimento [awareness] espontâneo. A exibição surge do reconhecimento imutável, incessante. Como a brincadeira de crianças, não há nada a abandonar, nada a que se apegar.

Chagdud Tulku Rinpoche recebeu estas palavras do grande siddha Padampa Sangye, numa visão aos seis anos de idade. Elas foram sua primeira lembrança de ter recebido transmissão Dzogchen (Grande Perfeição), o ensinamento definitivo, e a meditação sobre a natureza da mente. A revelação do Dzogchen lhe tem ocorrido num fluxo contínuo durante a vida, ainda que os próprios eventos da vida lhe tenham ensinado a verdade profunda de nada a abandonar, nada a que se apegar.

Chagdud Rinpoche é um mestre de meditação, um médico e curandeiro da medicina tibetana, e um artista que criou nove grandes estátuas de deidades de meditação budista desde que chegou aos Estados Unidos em 1979. Como Abade do Chagdud Gonpa em Kham (Tibete oriental) e líder espiritual da Fundação Chagdud Gonpa nos Estados Unidos, Rinpoche dedicou sua vida ao estabelecimento do budismo no ocidente, e a estabelecer a paz no mundo.

O treinamento de Chagdud Tulku começou logo após ter sido reconhecido como o tulku do Chagdud anterior, aos três anos de idade. Sua mãe, Dawa Drolma, foi sua primeira professora. Ela era reverenciada como uma grande lama, e era famosa como uma delog que em certa ocasião havia abandonado o corpo num estado completamente semelhante ao da morte, para entar retornar à vida e descrever as experiências de sua consciência na medida em que viajava pelos vários reinos dos seres. Muitos lamas altamente realizados a reconheceram como a corporificação de Tara, o aspecto feminino da iluminação. Por ter uma mãe com essas qualidades, bem como uma irmã cujos poderes espirituais extraordinários são renomados no Tibete até os dias de hoje, Chagdud Rinpoche nunca teve qualquer dúvida sobre as capacidades das mulheres como praticantes. A primeira lama que ele ordenou no ocidente é uma mulher, Inge Sandvoss.

O relacionamento de Chagdud Rinpoche com sua mãe frequentemente era o de um menino extremamente travesso com uma disciplinadora extremamente irada. Mesmo assim, Dawa Drolma acreditava que a energia endiabrada de seu filho podia ser canalizada em prática. Pratique bem, ela lhe disse, e haverá algum benefício a partir do que você conquistar. Com seu encorajamento, aos 11 anos de idade ele começou seu primeiro retiro de três anos. A morte de Dawa Drolma, que ocorreu enquanto ele ainda estava em retiro, foi um dos pontos de virada em sua vida, uma experiência indescritivelmente profunda de impermanência.

O Tibete, nos cem anos antes da invasão Chinesa, vivia uma das grandes eras do budismo, um período em que os ensinamentos floresciam, o sectarismo diminuía e lamas elevados demonstravam as qualidades extraordinárias que engendraram as lendas da terra de magia e mistério. O treinamento de Chagdud Rinpoche ocorreu no crepúsculo dessa era, quando os avisos de destruição já ecoavam como trovões distantes. Mesmo assim ele conseguiu receber ensinamentos de muitos dos mestres de seu tempo, entre eles, Jamyang Khyentse Chokyi Lodrö, Khenpo Ngaga [Ngawang Pelzang], Shechen Kongtrul, Khenpo Arak [Tulku Arig?], Tromge Tulku, Khenpo Dorje, Dilgo Khyentse Rinpoche e Dudjom Rinpoche. Vez após vez ele ouviu seus ensinamentos sobre a natureza da mente, fazendo longos retiros para praticar o que havia ouvido. Uma compreensão essencial da Grande Perfeição se tornou o coração de toda sua prática.

Em 1955, após ter recém completado um segundo retiro de três anos, Chagdud Rinpoche foi para seu mosteiro na região de Nyarong em Kham. Situado de forma espetacular num despenhadeiro alto, milhares de metros acima da passagem estreita de um vale de rios, ele é o segundo mosteiro mais antigo de Kham. Rinpoche ficou ali por alguns meses, e então decidiu fazer uma peregrinação para Lhasa. No caminho, em uma experiência visionária, ele recebeu o aviso de não retornar para Kham, uma vez que a situação logo ficaria difícil. Ele viajou com o reconhecimento de que estava deixando a terra natal de sua infância para trás. Ele não retornaria por 31 anos.

Em Lhasa, ao encontrar Khenpo Dorje, um insuperável mestre Dzogchen, ele recebeu seus ensinamentos. Embora as notícias sobre Kham fossem de que a violência se intensificava, e essas ondas de violência começavam a tomar também o Tibete Central, para Rinpoche aquele era um momento de participar unifocadamente no ensinamento e na prática. Ele não tinha dúvida de que as circunstâncias auspiciosas que encontrou em Lhasa logo se desfariam, e por isso mesmo ele estava determinado a utilizá-las ao máximo.
Inevitavelmente, o exército Chinês apertou seu certo a Lhasa, e Rinpoche se viu forçado a fugir. Com Khenpo Dorje ele se dirigiu para a fronteira da Índia, se escondendo nas montanhas, evitando as metralhadoras dos aviões Chineses, e esperando até que o clima das planícies indianas esfriasse um pouco, de forma que seu professor, que agora estava com 70 anos de idade, tivesse alguma chance de sobrevivência.

Rinpoche relata sobre aquele tempo, “Da noite para o dia perdemos tudo. Deixamos nossas famílias, nossos mosteiros, nossos textos, nossos implementos rituais, tudo que considerávamos precioso, tudo que havíamos consagradado com a tradição. Não tínhamos sapatos, não tínhamos o que comer. Vivemos com a possibilidade da morte a qualquer momento, e de fato, muitos outros tibetanos morreram tentando escapar. Externamente era como se, repentinamente, tivéssemos entrado no reino dos fantasmas, em constante movimentação, famintos, e na expectativa de que alguém nos atacasse. Interiormente, tínhamos a perspectiva de nossa prática, o reconhecimento de que mesmo esses eventos pesadelescos eram em essência, vazios, exibições ilusórias da mente.

Chagdud Rinpoche e Khenpo Dorje, em conjunto com alguns outros tibetanos que se uniram a eles, cruzaram a fronteira em segurança. Não muito tempo depois disso, porém, na turbulência do reassentamento, Rinpoche se separou de seu professor reverenciado, e Khenpo Dorje morreu antes que ele o conseguisse ver novamente.

Pelas duas décadas seguintes, Chagdud Rinpoche viveu em cinco ou seis assentamentos na Índia, e então se mudou para o Nepal. Aos poucos alguns alunos ocidentais do darma, atraídos pelo seu calor humano e acessibilidade, acabaram ficando mais próximos e pediram a ele que os visitasse no ocidente. Rinpoche chegou a São Francisco no outono de 1979. Um ano depois ele se mudou para o Oregon, e agora tem centros e terras de retiro tanto no Oregon quanto na Califórnia.

Quando Rinpoche conta histórias sobre os lugares onde esteve, ele muitas vezes usa a expressão “sentei”. Fui ao Nepal e sentei por dois anos. Desde que ele chegou no ocidente, ele viaja e ensina de forma contínua, ainda assim, onde quer que ele vá, seja para ficar um dia ou dois, há um sentimento de que ele se assentou ali, de que ele é a montanha, e que os ventos da atividade ocorrem a seu redor. Ou, como um aluno diz, Rinpoche tem tempo para as pessoas, e interesse nas atribulações de suas vidas cotidianas. Esta clareza penetra o próprio coração das questões, de forma a encontrar e fazer bom uso do potencial para benefício.

Em seus ensinamentos o Rinpoche enfatiza o desenvolvimento de uma motivação altruísta, profunda e inamovível, na direção da conquista da iluminação para benefício de todos os seres. É preciso praticar a essência, que é amor e compaixão desinteressados, e então tentar ajudar os outros na maior medida, em toda sua capacidade.

Uma forma de ensinamento que Rinpoche está desenvolvendo é Treinamentos da Paz do Bodisatva, que trabalham com resolução de conflitos num nível individual e com a paz mundial num nível global. Rinpoche diz que, “O pavão é o símbolo do bodisatva, o Guerreiro Desperto que trabalha pela iluminação de todos os seres sencientes. Se diz que o pavão come plantas venenosas que então transmuta nas gloriosas cores de suas penas. Ele não envenena a si próprio, da mesma forma que nós que queremos a paz precisamos não nos envenenar. Convença seu oponente tão efetivamente quanto você saiba fazer, mas sempre esteja ciente de seu próprio estado mental. Caso você comece a experimentar raiva, dê um passo atrás. Caso você consiga prosseguir sem raiva, talvez você penetre a delusão terrível que causa a disputa e a guerra, e todos os sofrimentos infernais que surgem da raiva.”

Como muitos outros tibetanos, e particularmente os lamas, Chagdud Rinpoche tem um senso profundo da impermanência. Ano passado, quando ele retornou para Kham, ele se surpreendeu com o fato de que seu mosteiro não havia sido devastado pelos chineses, e que os lamas, monges e as pessoas nos vilarejos vizinhos, com habilidade e lealdade, tinham sido capaz de proteger não só os prédios, mas os textos e a arte. Mesmo assim, os prédios que os chineses pouparam, estão agora caindo em ruínas e ficando danificados. Os lamas estão ficando velhos, e os jovens não receberam treinamento completo. Seu retorno, embora alegre e triunfante, foi, como comentou um dos monges mais velhos, “como os vivos encontrando os mortos”.

Há certa melancolia nisso tudo, ainda assim, para Rinpoche, ela provê um sentido de urgência para a prática espiritual. Como está escrito em seu livro, “A Vida Em Relação à Morte”:

Sempre reconheça as qualidades oníricas da vida, e reduza o apego e a aversão. Pratique a bondade com relação a todos os seres. Seja amoroso e compassivo, não importa o que os outros lhe façam. O que eles fazem não importa tanto quando você reconhece como um sonho. O truque é ter intenção positiva durante o sonho. Esse é o ponto essencial. Esta é a verdadeira espiritualidade.

Para maiores informações, fale com Jane [isto é, Chagdud Khadro, a partir de 1996] nos telefones (503) 942-7270 e 942-5081. [Atualmente o Chagdud Gonpa, que continua as atividades de Rinpoche no Brasil e no mundo, pode ser encontrado pela internet.]

Tradução por Padma Dorje, setembro de 2018.

Uma das faixas do CD Voice of Tibet, de Chagdud Tulku Rinpoche, transliterada e traduzida. Trata-se da porção inicial do ngondro do famoso ciclo de Karma Linga, que orientalistas datados costumam chamar de “Livro Tibetano dos Mortos”.tzal.org

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