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No que depositar confiança?


Fui convidado a fazer uma análise de dukkha (insatisfatoriedade) sem falar explicitamente no budismo. Considerei isso impossível, mas fiz uma tentativa, colocando uma menção ao budismo só no final — ficou soando ainda mais uma propaganda. O texto não foi aceito para publicação pelo Papo de Homem, então agora o publico eu mesmo.

Das minhas meditações infantis sobre o tempo e o universo, salpicadas de ficção científica e livros de popularização da ciência, só restou uma amarga sensação de que na física não há salvação. Não estou dizendo que ela em algum momento tenha se proposto a isso, mas na esfera nem vou dizer astrofísica -– a geológica já basta -–, todas nossas conquistas humanas (coisas como Shakespeare ou Bach), são não só irrelevantes, mas minúsculas anomalias entrópicas, “explicadas” por algum atrator fractal aleatório. Claro que muito dessas leituras coloca o homem numa encruzilhada, prestes a atingir potenciais quase divinos: a conquista de outros planetas, longevidade estendida indefinidamente, e até mesmo a fusão de nossas mentes com consciências artificiais... especulações provocantes para uma mente infantil -– porém, a teleologia está sempre lá para incomodar. (Por teleologia quero dizer tanto a finalidade do sentido disso tudo, quanto a finalidade do final efetivo temporal disso tudo.) O fim disso tudo, se olhamos pelo viés puramente científico (e que outro viés está disponível para um pensador infantil e sério?), não é muito encorajador: provavelmente nos dissiparemos em energias cada vez menores, até o zero kelvin. Outra possibilidade é “outros universos” surgirem, mas, mesmo assim fica aquele gostinho amargo de “tudo de novo”, e de novo, e de novo...

Mas a gente não consegue ser uma criança niilista por muito tempo, afinal niilismo não dá bons resultados na escola. Então em vez de sonhar com as vastidões incompreensíveis de tempo e espaço que não deixam muita chance para ninguém fazer nada que importe, passamos a refletir sobre talvez a sexualidade, uma vez que a puberdade está batendo à porta. O reino das relações humanas é outra vastidão de complexidade em que até mesmo as mais promissoras e felizes situações no mais das vezes se tornam fonte de profunda perturbação. Você olha para todos os lados e só o que vê é insatisfação pontilhada por alguns momentos de felicidade que beira a mania de tão perturbada. E quem disser que sua adolescência foi um período fácil e feliz merece algum prêmio ou camisa-de-força. Quem você quer não quer você, quem quer você, você não quer: se você é popular, nada presta, se você é impopular, você não presta... e assim vai. Aí você se perturba antes, durante e depois de ficar com alguém. E, no longo prazo, a situação mais completa é quando um morre antes do relacionamento terminar.

Porém, se temos algum lastro de sanidade intacto ao fim das cada vez mais longas adolescências, nos focamos nas experiências positivas e vamos aceitando nosso papel de adulto, não interessa que sonhos em termos de relacionamentos e profissão acabamos tendo de abrir mão. Ou o quanto sejamos forçados a ignorar para não ficar cheios de angústia.

No melhor dos casos, em todas as situações, vamos ter tudo perfeitinho apenas para nos deparar com doença e morte. No mais das vezes teremos insanidade, exploração, pobreza, violência, abandono, roubalheira, canalhice, vícios, instabilidade, humilhação, codependência, tédio, confusão, totalitarismo, guerra, enfermeiras sádicas, câmaras de gás, ligações para o SAC, médicos loucos, baratas que vem comer sua saliva e secreção nasal na calada da noite, filas, trabalho desinteressante e incessante e assim por diante pontuados por uma excelente lasanha ocasional, talvez uns fins de semana na praia ou pelo menos uma fortuita manhã de sono tranquilo. Se pararmos para considerar nossa “felicidade”, alguns de nós podemos encontrar as pessoas queridas e certas estabilidades na vida: olhando, é claro, dentro de um tempo bem especificado, e, é claro, ofuscando bem os velórios e visitas ao hospital, até que eles se tornam cada vez mais frequentes e, enfim, acabamos nós os visitados e velados.

É preciso deixar claro: somos experts em não olhar o problema de frente. Criamos distrações, e tanto deliberadamente como inconscientemente, nos autoenganamos. Se não podemos confiar nas grandes possibilidades da ciência, já que a própria ciência mostra que nada que podemos observar é estável... e se não podemos confiar no nosso pequeno microcosmo de ambiente, relacionamentos, carreira... e se, principalmente, não podemos confiar em nossos corpos, e não podemos nem mesmo confiar que a morte não vai acontecer logo em seguida, deixando tudo isso que tanto nos ocupa pela metade, e tanto nó mal-amarrado, que se olhamos diretamente vai doer demais... talvez possamos encontrar algum conforto em certas mentiras bem contadas, como certas noções ditas espirituais, tais como mundo espiritual ou alma.

Já que tudo é incerto, que tal postular alguma coisa bem sólida e então se jogar nessa crença? Talvez Deus, talvez até mesmo o sentimento comunitário de participar de uma Igreja, ou de uma causa qualquer maior do que nós mesmos?

Não vou debater os benefícios psicológicos de abraçar algo maior, seja uma causa social ou alguma ideia espiritual. Isso é talvez essencial para certa saúde psicológica. As pessoas que depositam sua energia em algo maior do que elas mesmas parecem vingar melhor em termos de estabilidade e suavidade em suas experiências. Porém, isso tem pelo menos três problemas.

O primeiro problema é encontrar, em meio a toda essa confusão memética, uma causa de verdadeiro valor. A maioria de nós não tem tempo ou capacidade de pensar adequada e sistematicamente, então apenas nos jogamos, meio que aleatoriamente, em uma série de ideias para abafar noções como a morte e nos dar certo sentido. Algumas vezes essas ideias são até mesmo contraditórias umas com as outras, outras vezes são simplesmente ruins, e no mais das vezes não produzem nenhum outro benefício senão a mera fuga. Outras vezes elas são eficientes em dar certo sentido provisório, suficiente, e que vai levar a pessoa a encarar a morte de uma forma mais jovial e levar a vida de uma maneira mais justa e proveitosa. Porém, em geral não temos sequer clareza sobre o que estamos buscando nessas ideias, e muitas vezes elas se tornam problemas adicionais. Perdemos tempo demais em meio a elas, as defendendo para nós mesmos e para os outros, evitando ataques, proselitisando. Ou só andando em círculos, ou aleatoriamente.

Mais do que isso: não podemos confiar em nossas mentes chegarem a ideias corretas, se manterem nelas, e irem até os “fins” do raciocínio. Podemos ter hoje tanta clareza e amanhã mudar de ideia. E, além disso, temos mais hábitos mentais do que propriamente ideias: eles são muito mais fortes. Por repetição, interna e externa (pensando ou ouvindo), acabamos cheios de lixo conceptual grudento, difícil de limpar. Então podemos querer ser de um jeito, mas não temos tanta liberdade nem perante nós mesmos. A liberdade perante nós mesmos é de difícil conquista, muito mais difícil do que a liberdade perante as forças externas, que também nos assola com grandes dificuldades através da publicidade e de certas ideologias funestas.

Com relação a mim mesmo, hoje já não sou nem um pouco tão niilista quanto já fui. Sempre gostei desse tipo de reflexão mesmo antes de me engajar numa religião, e não conseguiria me engajar numa religião que não começasse explicitando essa piscina de merda toda. Porém me foi pedido que não fizesse proselitismo minha própria fé, e com bom motivo: é bem verdade que ninguém atura propaganda, e ademais existe uma noção de que se possa falar certas coisas sem vinculá-las a um rótulo particular. No entanto, sinto que perante reflexões como esta, eu mesmo nunca encontrei nada que falasse disso sem cair em depressão e não se chamasse “budismo”. Então existem três possibilidades: não fazer reflexões como estas, fazer reflexões como estas e se tornar um niilista, ou seguir o Buda. Mas, sobre budismo, também eu não sou a fonte adequada para explicar o que é: caso interessado, procure uma fonte fidedigna. Eu só posso dizer que perante certas perspectivas (totalmente inexoráveis e certas) de sofrimento, e com a mente dura e cética que tenho, com meu compromisso perante não me autoenganar, só a reflexão sobre a natureza onírica e impermanente de tudo me permitiu em certa medida transcender o niilismo.


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