Moby-Cock
Reviro-me na cama, algo incerto me incomoda.
Uma presença marrom peluda espreita para subir pelos lençóis, sem dúvida capaz de seguir, com suas antenas longas e ágeis e perninhas rápidas serrilhadas, até meus beiços.
Trinta minutos se passam, e mais uma hora.
Há dias sei que está ali, a última de 30 e tantas, aquela que me olha por entre as portas do closet. Aquela que corre para dentro quando me aproximo com o tubo de CD para a captura...
Resolvo levantar, apanho a lanterna.... é hoje!
Você que ignorou as mais deliciosas armadilhas de salgadinhos e cerveja, a que outras sucumbiram sem pestanejar, hoje é seu dia!
Nada no armário, nada na pia da cozinha...
AHÁ! Ali está ela, solta na vasta planíce livre do banheiro.
Rápido! Apanhe o tubo do CD! Vai ser agora!
Plóc! Ela é muito ágil... muito mais ágil que todas as outras. É uma legítima “barata alfa”, o grande outro sedimentado como horror lustroso-marrom. O adversário final, o boss deste videogame urbano que é a captura das baratas.
Fugiu para a sala, ah... aqui grandes obstáculos, muitos lugares onde se esconder.
Sob a estante? Aqui não será tão difícil.
Tento afugentá-la com a luz da lanterna para uma área de fácil captura, ela hesita duas ou três vezes mas retorna para o abrigo seguro sob uma área de 1,5cm livre no vão inferior da estante.
Será mesmo que terei de despir a estante para virá-la e então seguir a captura? Não posso desistir! Mais um único dia com ela, possivelmente a última de tantas que já capturei, simplesmente solta pela casa não será aceitável!
Primeiro é necessário retirar os cerca de 500 dvds e cds em tubos. O faço desordenadamente, os colocando em uma área distante de forma que não formem um esconderijo seguro. Depois retiro o amplificador, com várias conexões a serem desfeitas, e enfim, a impressora.
Mas ela logo percebe algo sinistro, e no exato momento delicado em que retiro a jato de tinta com seu bulk, ela desata correndo, largo a impressora do jeito que dá, pego o tubo, e três tentativas caóticas depois ela retorna para baixo da estante. Então reparo que os fios do bulk ink se soltaram e há tinta amarela, azul, preta e magenta pelo parquê e pela parede! O horror!
Ah! ESSA BARATA COR DE COCÔ!
São 1h30 da manhã e o barulho já foi grande. Retiro os monstrinhos do topo da estante, tomando cuidado para que o Domo não se suje de tinta. A estante está livre! Lentamente a deito, vejo Mobi-cock parada num canto, e sem deitar totalmente a estante no chão, a apanho com o tubo do CD.
Ela se debate incrivelmente rápida! É a barata mais inteligente e ágil que já vi!
Estou segurando a estante com uma mão, e o tubo do cd contra a prateleira prendendo a barata! Preciso descer a estante, mas suavemente. Onde encontrarei um papel mais duro para tapar a boca do tubo e assim movimentar a barata até seu destino de soltura? Ah! Uma capinha de CD, o ideal.
Cuidadosamente, já fiz isso centenas de vezes em minha vida, coloco o papel duro por sob a boca do tubo! Vitória! Mobi-cock está presa entre o tubo e a capinha de CD... mas, espere!
Ao me levantar deixei uma fresta grande o bastante, nem quero acreditar! O próximo golpe é um grito agudo efeminado que provavelmente desperta todo o condomínio: Moby-cock correndo em minhas mãos para uma liberdade desmerecida! Puxa-vida, que raiva! Como fui burro, deixar escapar justo essa barata!
Agora foi para a cozinha. Vou ter que abandonar tudo.
Um pano para limpar a tinta enquanto não seca, álcool, uma grande bagunça na sala que foi justamente limpa hoje mesmo pela faxineira, e Moby-cock solta em algum recanto da cozinha. Ah! Mas não vou deixar isso assim, é hoje que capturo essa barata! Ela deve estar nas proximidades bagunçadas da minha grande caixa de fios... e assim começo a bagunçar também a cozinha.
Mas ali está ela de novo! Como pegar? Tento novamente algumas vezes, mas na cozinha há demasiada bagunça e lugares onde se esconder, olho para atrás da pia onde guardo uns azulejos e penso: não, não vou mexer ali. Melhor desistir, montar melhor as armadilhas e seguir minha vida... um dia nos encontraremos de novo.
Ao me voltar, no entanto, a quem vejo QUEM na soleira da porta? Será que ainda há mais de uma na casa? Não! É ela mesma! Eu reconheceria aquelas antenas em qualquer lugar!
Muita calma nessa hora.
Desligo a lanterna e a ponho sobre a pia. Ela me encara de frente, ela também me conhece e sabe quem eu sou, é evidente. Movimento-me lentamente com o tubo na mão, ela caminha para a sala. Mas não muito longe. Retiro a outra estante (que tem rodinhas) para que ela não fuja para lá. A balança é um lugar bom, onde já peguei várias. Elas vão por baixo e basta virar vagarosamente e sacar o tubo.
Dou três botes muito precisos, mas ela é muito ágil. A peguei pela metade numa das tentativas, mas, embora ferida, consegue seguir para o armário embutido. Ah, se ela entra por lá, não vai ter jeito. Foram muitos dias que a avistei e tentei pegá-la no armário, mas ali há lugares inacessíveis. Resolvo apelar para o sabão: tenho um recipiente de sabão quase vazio no qual ponho água, e jogo espuma sobre a barata para limitar seu movimento. É algo que nem sempre funciona. Mas ela já está ferida, é possível que a espuma a acerte.
Sim! Consegui! Ela está derrapando, com um plóc, desço o tubo. Pego uma capinha de cd maiorzinha. É melhor me vestir e caminhar, uma e meia da manhã, até a praça da bronze.
Que outras baratas estarão por nascer em ovinhos estratégicamente colocados? Que outras Mobi-Cocks poderei encontrar em aventuras futuras? O futuro é incerto, mas hoje é só júbilo.
A condição humana
Uma reflexão sobre gostos e filmes, e dificuldades que as pessoas, pessoando, têm com certos gêneros.
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Minha relação com tempestade ocorrida em Porto Alegre em janeiro de 2016.
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