Budismo e jogos
Encaradas de forma estrita, a maior parte dos entretenimentos em que nos engajamos se enquadra sob a categoria de desvirtude rotulada como conversa fiada, ou fala inútil. “Fala”, no jargão técnico budista, também inclui o aspecto emocional sutil.
O conceito de inutilidade nesse caso diz respeito a particularmente fazer os outros perderem tempo, mas devido a urgência da prática para alguém que tomou refúgio no Buda, uma vez que não sabemos para onde o carma o levará no momento seguinte, que dirá na vida seguinte, também diz respeito a nossa própria perda de tempo.
Claro que isso depende do contexto da prática que a pessoa está fazendo. No caso de shamata (meditação que visa uma absorção imperturbável e é pré-requisito para a investigação da mente), para praticantes leigos ou monásticos, qualquer forma de entretenimento é obstáculo. Pode-se fazer, é claro, uma flexibilização — com períodos “de retiro”, onde a prática é focada intensamente por dias, meses ou anos, e períodos mais soltos, onde algum grau de entretenimento é aceito enquanto se mantém uma prática diária mínima de meditação como “higiene mental”.
No caso do compromisso monástico, algumas formas de entretenimento, como dançar ou ouvir música, ou mesmo brincar na água, ou correr, são infrações do conjunto de preceitos completo, ainda que de cunho leve — exigindo confissão perante a comunidade.
Essa passagem do Brahmajala Sutra descreve vários jogos:
“Enquanto que alguns honrados recluso ou brâmane, enquanto sendo sustentado pelos fiéis, se entregam nos seguintes jogos que são base para desleixo: aṭṭhapada (um jogo que ocorre num tabuleiro de Xadrez de 8 casas de cada lado); ākāsa (um jogo do mesmo tipo com um tabuleiro imaginado); parihārapatha ("amarelinha," um diagrama é desenhado no chão e se pula nos espaços permitidos, evitando as linhas); santika (arranjar as peças numa pilha, removendo e as retornando sem perturbar a pilha); khalika (jogos de dados); ghaṭika (acertar uma vareta curta com uma vareta longa); salākahattha (colocar a mão na tinta, riscar uma parede, e fazer os participantes adivinharem que animal é); akkha (jogos de bola); paṅgacīra (soprar flautas de brinquedo feitas de folhas); mokkhacika (salto acrobático); ciṅgulika (brincar com redemoinhos de papel); pattāḷaka (brincar com medidas de brinquedo); rathaka (brincar com carrinhos); dhanuka (brincar com arcos de brinquedo); akkharika (adivinhar as letras escritas nas costas de alguém); manesika (adivinhar os pensamentos de outra pessoa); yathāvajja (jogos que envolvem a mímica de deformidades) — o Gautama recluso se abstém de tais jogos e recreações.” (DN I, II, 2:14)
Para um praticante leigo, é um pouco diferente — embora devamos manter isso em mente. Fora de um período em que está focando em meditação de forma mais intensa, o entretenimento de forma geral cai sob a perspectiva de “redução de impacto” ou “consumo consciente”. Isto é, devemos estar sempre desconfiados e atentos sobre o uso de nosso tempo e nossos recursos de atenção, mas, dependendo do nosso nível de prática, podemos tentar praticar em meio a qualquer coisa, e transformar qualquer coisa com que nos deparamos em prática.
Isso, claro, é para quem pode, não para quem quer. Também diz respeito a coisas com que inadvertidamente entramos em contato, e não temos escolha. Com relação ao que temos escolha, precisamos discriminar da melhor forma possível. Isso quer dizer que precisamos saber o que conseguimos integrar e ser bastante honestos para com nosso potencial, sem usar desculpas. Sua Santidade o XVII Karmapa disse que joga, ou que durante um período da vida, jogou videogames. Algumas pessoas tomaram isso como um passe-livre, porém o comportamento dos grandes professores sempre foi difícil, para não dizer problemático, de imitar — no sentido de que eles tem capacidade de integrar com a prática coisas que nós normalmente, ou ainda, não temos.
Algumas representações clássicas da Roda da Vida na China incluiam uma alusão irônica as “7 artes”, com um lado fora e ao pé da roda contendo desenhos de pessoas engajadas nelas, e do outro, esqueletos engajados nas mesmas atividades — representando a ausência de reconhecimento da morte, e a perda de tempo. Um dos esqueletos está jogando num tabuleiro.
Mas qual seria a diferença entre jogar, brincar e ver um filme ou ler um livro de ficção?
A diferença pode ser grande ou até não tanta, dependendo do conteúdo e de outros qualificadores. Contar histórias parece ser universal, o Buda contava histórias, e, claro, tudo depende da história, e de como a encaramos, mas de forma geral elas são bem mais integráveis na prática do que qualquer outra forma de entretenimento. A ficção tem o propósito evolucionário geral de nos ensinar empatia e outras emoções, ao nos fazer deparar com situações hipotéticas muito díspares de nossa vida cotidiana. É moralmente neutra, podendo ser muito ruim ou muito boa devido a inúmeros fatores.
Óbvio que há ficção que nos envolve de maneira negativa, que nos faz torcer por uma vingança, e assim por diante. Mas mesmo nela o engajamento é bem mais livre, isto é, temos uma “caixa de areia” onde verificar nossa prática, e onde treinar até onde engajar, ou não, nossas emoções em conjunto com um narrador ou protagonista. Claro que a ficção mais efetiva é aquela que nos manipula sem que sequer percebamos, mas os nossos venenos mentais também nos manipulam dessa forma oculta — e não há muita diferença entre os conteúdos de fora e os de dentro.
Ainda assim cabe verificar se conseguimos integrar uma história em particular, se ela nos perturba demais, ou se ela produz em engajamento mental negativo. Pode ser adequado evitar certos conteúdos, como quem evita certos alimentos por causa de uma condição digestiva, algumas vezes até bem circunstancial. Vai da discriminação da pessoa, e isso se depura com a própria prática.
A brincadeira tem mais ou menos a mesma dimensão, isto é, ela faz parte dos nossos relacionamentos — mas há formas mais ou menos fáceis de integrar, e talvez formas específicas a evitar completamente. Em particular, é a forma com que as crianças engajam umas com as outras, e os adultos com as crianças. Há brincadeiras que se tornam naturalmente inadequadas ou desinteressantes na vida adulta.
A definição de jogo é complexa, Wittgenstein quebrou a cabeça tentando encontrar um bom jeito de incluir tudo que “play” em inglês quer dizer, e que inclui a brincadeira. Mas vamos definir jogos como brincadeiras específicas, que envolvem um elemento central: competição. Essa competição pode ser com você mesmo, com a ajuda de um computador ou não, ou com outras pessoas.
Aqui também cabe uma classificação, entre jogos mais fáceis ou difíceis de integrar. Isto é, um jogo onde você treina matar, segundo o ensinamento budista, vai tornar mais fácil cometer a desvirtude de matar. O budismo, no nível da mente, não faz distinção entre ficção e realidade: se você treina a sua mente para ações negativas, você as acaba cometendo. Você não gera carma ao matar um personagem de um jogo, mas você gera uma marca mental negativa que irá resultar em carma futuro. Ora, todo o budismo é embasado exatamente nesse insight: como você treina sua mente determina como é sua experiência.
Isso é semelhante a você regozijar com um personagem que comete uma vingança, e às vezes o diretor ou autor nos manipula a regozijar, e é muito difícil não regozijar com a morte de um vilão. Porém, entre as suas ações necessárias num jogo e a sua liberdade perante assistir passivamente a um filme, ou ler um livro, a primeira é quase impossível de integrar com a prática de treinamento da mente e moralidade no budismo. E a segunda é mais como caminhar por um lugar perigoso, onde se sabe que há assaltos, mas assumir o risco.
Embora nem todo jogo seja violento ou contenha a ação de matar (de forma mais ou menos violenta), todo jogo envolve competição, e qualquer jogo suficientemente bom nos incita trishna, isto é, sede, a ânsia por jogar de novo, que é o que queremos dizer quando “o jogo é viciante”. Sob um aspecto mundano, fora do darma, viciar num jogo, se atrapalha de alguma forma nossa vida, é uma doença. No aspecto do darma, se vincular voluntariamente a esses aspectos significa duas coisas a) não entender bem o que é samsara; b) querer mais samsara.
Em particular, nossa sociedade em tempos de degenerescência já justifica o valor da competição, e a glorifica. O que foi reconhecido como um processo adaptativo biológico virou valor moral do capitalismo, e aspectos como eficiência, crescimento e progresso se tornaram coisas que não se discute, só se quer mais e mais. Os limites desse tipo de pensamento se tornam mais claros a cada dia.
Algumas vezes os jogos são louvados como exatamente formas de treinar a mente, agora não na complexidade emocional de cenários hipotéticos da ficção, que são moralmente neutros, mas treinar a mente para os valores da sociedade capitalista, ou até mesmo a cultura da guerra.
Jogar se torna uma forma de educação em samsara, e no samsara específico de nosso tempo, que é, aliás, uma transformação da sociedade na direção de relações cada vez mais gamificadas. O capitalismo, com todas as suas consequências ambientais, é uma glorificação do jogo.
No contexto budista, se alguém compara sua prática com a de outro, ou até mesmo se há uma fixação na noção de progresso na prática, isso é considerado um obstáculo, uma doença.
Portanto, caso estejamos desenvolvendo uma noção de economia da atenção, ou consumo consciente de conteúdo cognitivo, fora de um contexto mais estrito de prática de meditação (que eliminaria toda e qualquer forma de entretenimento, e em alguns casos, até mesmo ler qualquer coisa, inclusive não ficção), precisamos atentar ao que conseguimos integrar, e aos valores de treinamento da mente que são mais condutivos aos valores budistas, ao treinamento da mente de forma geral, e a uma boa vida.
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