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Por que o darma não é relativista


Algumas pessoas me perguntam como no darma não é relativismo quando se explica que um deva (deus mundano) vê água como ambrosia enquanto que um preta (“fantasma faminto”) vê lava. É simples: água (a visão humana), lava e ambrosia são, as três, projeções de seres ignorantes. Embora cada uma delas seja cognição válida para a percepção respectiva de cada um dos seres, essa cognição válida ocorre no âmbito relativo, que, do ponto de vista absoluto, é inteiramente falso. É possivel errar de muitas formas, mas só é possível acertar de uma única forma, que é aquela na qual não há substância independente.

Em todas as ocasiões em que se ouve ou lê que os seres têm perspectivas diferentes, leia-se que a ignorância tem muitas faces. Nenhum desses seres está “certo” ao perceber como percebe — está relativamente certo, o que quer dizer absolutamente errado (ou, como na expresão de Pauli, “não chega nem a ser errado”).

Algumas vezes tendemos a achar que nossa percepção atual, humana, de água como água, é a correta, mas ela também é um sonho particular — mesmo que nesse sonho particular se proponha caracteristicas para determinar o que é ou não é água, e esse é o campo da cognição válida, essas características todas também são dependentes dessa visão-bolha particular. O fato de que assumimos uma única cognição válida em termos de algo que é intrinsicamente dependente não é contraditório exatamente porque a cognição válida ocorre num mundo possivel (loka) que guarda uma coerência interna (por força de hábito, samskara). E não se trata de relativismo na medida em que cognição válida é uma mera pseudo-epistemologia, que opera em termos da reificação de substâncias e cognições, que são separativas e impermanentes (mutáveis e com início, meio e fim), e portanto falsas.

A cognição válida dentro do âmbito relativo (que é todo falso) é como dizer que “Sherlock Holmes não era um pedreiro” é uma afirmação verdadeira (o que é). Embora Sherlock Holmes nunca tenha existido, entendemos que estamos falando de um personagem fictício, e que enquanto personagem ficctício, nem tudo vale: ele não era um pedreiro, ele era um detetive. Seria um mero abuso postular um Sherlock Holmes que fosse um pedreiro — ele seria, sob todos os aspectos, outro personagem. Pode haver todo um estudo, usando evidências, para corroborar o que estamos dizendo — pode de fato haver uma teoria do conhecimento de obras ficionais. Uma pessoa desvairada pode afirmar que é “sua verdade” que o personagem universalmente conhecido seja pedreiro, mas ela está simplesmente errada em termos da cognição válida relativa. Então o relativo budista não implica relativismo, mas uma forma fraca de perspectivismo, com relação a objetos de conhecimento inerentemente falsos.

Em termos da diferença entre absoluto e relativo, é nesse sentido (geral, guardadas as proporções) que se pode dizer que algo é água, e algo não é — enquanto cognição válida. (É claro que dentro da cognição válida relativa há a cognição válida convencional, e dentro dessa, existe mesmo a da ficção propriamente, que aqui foi usada como uma metafóra para comparar dois outros âmbitos epistêmicos.)

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A imagem do coelho de chifres, ou jackalope, representa no debate budista uma cognição inválida — em filosofia ocidental ele seria mais tido como um objeto possível mas que não existe. Há “objetos” impossiveis, tais como um círculo quadrado. Em epistemologia, independente da forma de filosofia, é importante definir os critérios segundo os quais algo pode ser dito verdadeiro ou falso, com alguma substanciação ou garantia. De fato, estabelecer os critérios do que é conhecimento é o objeto e definição de epistemologia.

O relativismo é a noção de que a verdade é meramente subjetiva, e que se um louco disser que água é lava, e sentir sua pele queimando, essa é “sua verdade”, ainda que o fato de que ele esteja louco diga algo sobre sua capacidade de perceber as coisas de forma inválida. O sentido de verdade e justificação não podem ser relativistas sob pena de a linguagem não ter mais utilidade. Se falamos e queremos ser entendidos, é necessário que haja algum critério objetivo, isto é, comum. De outra forma, somos todos loucos uns para os outros, e ninguém consegue se comunicar. Para o darma, os critérios objetivos da linguagem são todos falsos, porém eles são critérios, e eles valem em âmbitos comuns. O critério definitivo, ou a verdade, é além das palavras, e é a realização de um Buda — que reconhece todas as coisas como temporárias, e como uma espécie de sonho na qual seres ignorantes se fiam, e sob a qual seres ignorantes desenvolvem critérios e epistemologias. O conhecimento do Buda é a realidade direta e nua.

No âmbito relativo, há mesmo certo relativismo, mas é quanto a conhecimentos, todos eles, inerentemente falsos. E mesmo esse relativismo é qualificado. Porém, o conhecimento de um Buda é da realidade, e é o mesmo para todos os seres despertos, não havendo possibilidade de relativismo quanto ao que é real.

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A noção de eu é tão falsa quanto dizer que Sherlock Holmes é um pedreiro. O eu é falso, não existe, nunca existiu, nunca existirá. (cognição inválida, ou completa falsidade). Ainda assim, quando chamam nosso nome na chamada, respondemos “presente”. Mesmo um Buda responderia presente, porque suas respostas são para seres ignorantes — e que entendem o que é uma chamada e o que significa marcar presença num papel, etc — , não para benefício dele mesmo.

Falar que Sherlock Holmes é um detetive é comparável, em termos da verdade absoluta, a conquistas da ciência, matemática, etc. (falsidade coerente).

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Que o delicioso leite ordenhado do desenho de uma vaca nos faça reconhecer que o eu é mera cognição inválida, uma crença supersticiosa que nem mesmo a esfera relativa, completamente falsa, é capaz de corroborar em sua falsidade coerente.

(trabalhado a partir de uma postagem pública de maio de 2015).

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