As premissas injustificadas da ciência
A maioria de nós acredita que as trevas do pensamento supersticioso e irracionalista, em que a vontade se confunde com realidade, foi absolutamente superado pela ciência. Porém, até que ponto a ciência realmente explica as coisas, e ela pode superar ou substituir de fato o sentimento religioso e prover sentido para a vida humana?
Isso é uma pretensão verdadeiramente científica ou apenas expectativa de seus seguidores menos esclarecidos?
Mais do que isso, o quanto ainda persiste de irracionalista na própria ciência?
Em primeiro lugar, é bom deixar claro que uma coisa é o ideal científico e outra é a ciência como ela é praticada no mundo hoje. Qualquer fanboy da ciência concorda que, embora a ciência tenda aos fatos, e ao longo do tempo essa aproximação com a realidade se torne cada vez mais efetiva, na prática sabemos que as pesquisas não são absolutamente neutras e, sem dúvida, a escolha sobre o que pesquisar tem a ver com vários interesses não necessariamente puramente vinculados com os objetivos do conhecimento científico.
Em termos do que seria ideal, a ciência não trabalha com certezas, mas com uma verdade que necessariamente deve poder ser provada falsa. Em outras palavras, todo conhecimento científico consiste de verdades potencialmente temporárias — que podem se manter indefinidamente —, mas para ser considerado ciência, é preciso que se possa desenhar situações e experimentos que, se derem determinados resultados, mostram que aquilo é falso.
Se algo ainda não foi mostrado falso e pode, um dia, ser mostrado falso, é considerado conhecimento científico. São necessárias essas duas características: não ter sido mostrado falso, poder ser mostrado falso. Pelo menos essa era a visão de Karl Popper, e isso é amplamente aceito.
O oposto disso seriam certezas, que podem efetivamente ser impossíveis no campo empírico — mas, no estado atual, e por toda a história da erudição sistemática, não estamos certos nem mesmo quanto a isso. As variações sobre esse tema são irrelevantes para o contexto deste texto. A visão popular da ciência é de que ela busca certezas, mas isso não se mostrou prático ao longo do tempo.
As proposições científicas, no jargão popperiano, precisam ser “falseáveis” — senão, são outros tipos de verdades, ou, mais provavelmente, não são verdades de nenhum tipo.
A premissa nem tão oculta: “o dinheiro fala mais alto”
Com relação às imperfeições do aspecto prático da ciência, temos várias dimensões. No mundo de hoje, é cada vez mais difícil a pesquisa básica, isto é, que se dá em termos de pura curiosidade científica, sem uma aplicação em vista. Isso porque a ordenação ideológica do mundo se dá em torno de, principalmente, resultados econômicos.
Como “o que estudar” tem implicações diretas sobre os resultados que se obtém (sem falar no “como estudar”), o foco de atenção de políticos, empresários, cientistas e público em geral fica distorcido na direção de certos elementos da ciência que podem produzir produtos e serviços na economia.
Na imprensa estadunidense, muitas vezes vemos pesquisas básicas, aparentemente absurdas mesmo (lagartos fazendo sexo no espaço, por exemplo), sendo ridicularizadas em nome do “desperdício do dinheiro público”. Não obstante isso, o argumento dos cientistas tenta aplacar a distorção econômica da ciência falando de um jeito que os empresários possam entender: ora, a maioria das grandes revoluções tecnológicas surgiu de forma adventícia pela pesquisa básica.
Rutherford estudando os raios gama e fazendo modelos do átomo não previa e não buscava a energia nuclear, com todo o seu potencial positivo e negativo, geopolítico, medicinal e energético.
É só estudando tudo e qualquer coisa que o inusitado, inclusive em termos de bons resultados econômicos, pode surgir. É assim que argumenta a ciência básica ao pedir recursos. Porque, é claro, a ciência custa dinheiro, ela naturalmente depende de financiadores.
Com relação a tensão entre economia e ciência, o lugar onde isso fica mais claro é talvez na indústria farmacêutica, em particular, a conectada aos manuais psiquiátricos.
O NY Times publicou em 2008, por exemplo, uma reportagem sobre pesquisas que mostravam que os antidepressivos mais comuns em uso não produziam efeitos relevantemente maiores do que o placebo em depressão suave e média, e chegou a afirmar que tais pesquisas teriam sido escondidas pela indústria farmacêutica.
As ondas dessa discussão ecoam até hoje, com todo o tipo de crítica quanto à quinta edição do manual de doenças psiquiátricas, a mais usado no mundo — vindas de dentro, dos próprios médicos envolvidos ou profissionais de renome. A indústria farmacêutica, por algum motivo, podemos adivinhar qual, parece tender a colocar dinheiro em pesquisa de drogas de uso contínuo e a ajudar também as pequisas que aumentem a gama de prescrição destas drogas.
Enquanto isso, doenças que matam muita gente sem dinheiro não promovem nenhum furor investigativo.
Sem falar que grande parte do financiamento em pesquisa farmacêutica se dá para o desenho de drogas que tenham efeitos parecidos com os das concorrentes, mas que não sejam objeto de litígio por propriedade intelectual. Dai que boa parte da ciência seja feita para burlar o sistema jurídico, encher bolsos e, mais do que isso, soterrar pesquisas que ataquem interesses em periódicos irrelevantes, até o esquecimento.
Parece haver uma construção de consenso em torno das necessidades de pesquisa e, portanto, da maioria de seus resultados. As pesquisas sobre o efeito adverso do tabaco existem desde o fim dos anos 50, ainda assim a indústria do tabaco conseguiu sustentar confusão científica até pelo menos o fim dos anos 70. Com bastante dinheiro, se contrata pesquisadores e especialistas que fazem pesquisas em número maior e publicadas em revistas de maior prestígio, que tendam aos resultados que são financeiramente mais interessantes.
O alarmante é que isso é feito dentro do escopo de boa ciência, isto é, a distorção é a mera exploração de nichos de pesquisa que resultam favoráveis — não em pesquisa deliberadamente, dentro do seu desenho interno, mal feita ou falsificada. Simplesmente se dá mais dinheiro para aqueles pesquisadores que estão seguindo linhas que tendem a dar resultados mais favoráveis e, de forma geral, se fomenta o prestígio de publicações simpáticas a esses interesses.
É o determinismo econômico suplantando a objetividade.
Isso não é tão diferente das distorções que ocorrem em outro âmbito que, no ideal, a pureza epistêmica é um objeto extremamente respeitado, que é o do direito. Ora, todos sabemos que os melhores advogados contratam os maiores times de pessoas mais qualificadas e encontram os melhores detalhes para explorar, e quem vence é muitas vezes o poder econômico e não os fatos ou quem tem a razão.
Mas além do viés óbvio da pressão econômica e da visão de mundo que coloca a economia a frente de tudo — o materialismo —, a fonte mais provável de imperfeição na ciência em seu aspecto prático não é tão evidente.
A cegueira científica quanto a certas premissas
O problema, no mais das vezes, são o que se poderia chamar de “premissas ocultas”. Isto é, partes da visão de mundo científica que não chegam a ser examinadas pelos cientistas, muitas vezes não são reconhecidas ou são deliberadamente evitadas. São problemas que, se o cientista parasse para resolver, ele não faria ciência, ou pelo menos acredita que não sobraria tempo para isso.
Ele então simplesmente as sufoca, presumindo inexistência ou irrelevância.
Normalmente essa briga se dá, e vemos isso muito, com os cientistas dizendo que “não querem se meter em filosofia”. O que é bastante louvável, porque eles querem fazer ciência, e não “discutir infindavelmente sem chegar a lugar nenhum”. Perfeitamente compreensível.
Porém, um detalhe: se certas doutrinas filosóficas são acatadas e são a base daquela linha científica particular, só que não são reconhecidas, trata-se de um tipo pior de desonestidade.
De que tipo de premissas estamos falando? Elas possuem certa variedade, com certeza no tempo, mas também em termos de “escolas”, naquelas ciências que as possuem. Certo pensamento científico tradicional diria que a existência de escolas interpretativas em uma disciplina com pretensões científicas a rebaixaria ao ramo de “proto-ciência”, algo que um dia pode ser que vire ciência. Porém, hoje, na verdade, até a respeitada física (porque a mais “pura” ciência empírica), possui “escolas”: vide as mais de 18 interpretações da mecânica quântica descritas pela wikipedia.
A maioria dessas “interpretações” calcula bem, isto é, produz resultados repetíveis e se coadunam umas com as outras em termos destes resultados. A explicação sobre como as coisas se dão e como o cálculo é feito possui variações extremas. E na base dessas variações se encontram “preferências” filosóficas ou, mais precisamente, epistêmicas.
Além do escopo da física (que é o exemplo consumado de ciência empírica), e de uma forma bastante geral, vou descrever algumas ideologias científicas que passam sem exame algum, e seu status em termos de a) poderem ser falseadas, b) não terem se mostrado falsas.
A ciência reduzida a uma engenharia
O instrumentalismo é uma premissa (algumas vezes oculta, mas nem sempre; proposta abertamente por Richard Feynman, por exemplo) do trabalho científico que elimina, à força, todo o aspecto filosófico da empreitada. Por aspecto filosófico, está se falando em explicações finais, isto é, todo aspecto da ciência que não seja funcional é passível de ser explicado ou calculado. Mas o que realmente acontece, bem, não interessa.
Sob esse ponto de vista, que é incomum mas existe em vários graus na ciência, se calcula, está bem. É o máximo de explicação que se pode obter mesmo. O resto é especulação. Assim, se são universos paralelos, supercordas, ou “colapso da onda”, pouco importa. O que importa é que o modelo calcula bem e produz resultados.
Se por acaso ele é contraditório com outro modelo que calcula com a mesma precisão, azar. Se ele fosse falso, ele não ia calcular direito.
O extremo disso é certa tendência na física teórica a encontrar um formalismo matemático excitante, “bonito”, e a partir disso desenvolver uma teoria. Depois dela, um método experimental é, se possível, desenvolvido, juntamente com todos os instrumentos necessários à observação — embasados eles próprios nessa cadeia de vieses que começou com o julgamento mais ou menos subjetivo do que um físico considera matemática elegante.
No meio disso, para ser preciso, o instrumentalismo absoluto é impossível. Algum grau de explicação é sempre buscado e encontrado, e toda ciência foge de certas formas de explicação, isto é, conhece certos limites epistêmicos — e consegue reconhecer (até mesmo para deliberadamente ignorar) outros tipos de conhecimento que estritamente, contemporaneamente, não consideraríamos ciência.
O instrumentalismo, portanto, nem sempre é uma premissa oculta, e muitas vezes ele é uma opção deliberada. E nada de errado com isso. O problema começa com um jogo de whac-a-mole no qual, ao mesmo tempo que se exclui certos aspectos do conhecimento da pesquisa científica, se continua mantendo promessas ou expectativas dentro desses aspectos. Pressionados, dizem que não é papel da ciência. Não pressionados, trata-se da expectativa comum, popular, e algumas vezes partilhada até por cientistas no olho público.
O exemplo mais cabal disso é a tomada da noção científica de Big Bang como resposta cosmológica ao problema de origem. O Big Bang, como o primeiro acontecimento dramático que se estuda, é tido por muita gente como uma explicação teleológica, e algumas vezes até substitutiva ou concorrente de explicações teológicas — mas o que o Big Bang explica, do ponto de vista científico, são certas características do universo como ele é hoje.
O problema de origem segue um problema metafísico, como sempre foi — e com todas as possíveis soluções metafísicas sugeridas, inclusive minha favorita, a de que é um problema falso.
Nossa visão moderna da ciência surge de uma tensão que não é clara para nós mesmos.
Começa com a noção de gravidade newtoniana. Para Newton, explicações finais são de cunho religioso. O que causa a gravidade, num sentido último, é Deus. E vamos uma hora lá estar com o senhor e entender a parte final da coisa; no momento, parece ser segredinho dele, deixa assim. Só que então Voltaire pegou essa noção de separação e eliminou, como que por decreto, a necessidade de explicações finais.
Se isso é com Deus ou não, azar, não nos interessa mesmo. Essas duas visões convivem hoje na forma do ateísmo científico e dos cientistas deístas (embora, pra clarificar, Voltaire fosse deísta e Newton bem teísta, as linhagens dos dois, hoje, escorregaram para essas posições). Porém, ainda que explicitamente as duas coisas sejam comuns de se ouvir, a expectativa segue em torno de explicações.
E o popular, e alguns cientistas, muitas vezes acreditam que existam explicações finais na ciência — sem falar nas noções naturalistas que pretendem derivar predicados morais das descobertas científicas. Se espera da ciência muitos valores que ela, se olhamos bem, nem sequer explicitamente pretende, desde pelo menos Newton e Voltaire, na sua atividade mais esclarecida de si própria, fornecer.
É pior do que isso: se sabe que ela não pretende, mas o discurso convencional, publico, tanto de cientistas quanto de fãs da ciência, implica no mais das vezes essa exata pretensão.
O fato é que as expectativas comuns das pessoas com relação à ciência, mesmo as dos instrumentalistas mais aguerridos, são maiores do que “simplesmente calcular”. Transformar a ciência numa mera empreitada de engenharia, desprovida de sentido ou explicação, não satisfaz a ninguém — e daí que a pretensão dos limites tão humildes do instrumentalismo esteja em constante tensão.
A ciência, de modo geral, acaba possuindo a pretensão de prover sentido, se não teleológico ou moral, ao menos funcional. Porém, boa parte desse suposto sentido ou explicação, mesmo quando puramente funcional, como ele se apresenta hoje, é circular ou parte de outras premissas ocultas.
Eu aqui, o mundo lá: a falsa isenção do realismo ingênuo
O instrumentalismo está em competição direta com o modelo mais comum, que é o realismo.
O realismo científico é como você e eu entendemos o mundo e a ciência de forma geral. Eu estou sentado aqui na frente do monitor, que é uma coisa que existe na minha frente. Quem desafia isso?
Só mesmo os lunáticos chatíssimos da filosofia.
Mas é aqui que os instrumentalistas se tornam úteis: no seu desafio do realismo. Uma vez que eles reconheceram as muitas interpretações de, por exemplo, a mecânica quântica, e todas funcionando; e como as primeiras não eram realistas, e calculavam bem, eles disseram “hm, fora a operação ordinária dos sentidos, não há motivo algum para sustentar o modelo realista”. Isto é, a partir da década de 30, os cientistas mais espertos, tipos uns muito raros mesmo, se deram conta que o realismo não é passível de ser provado falso — e que portanto não é conhecimento científico.
Ele é só outra especulação filosófica. E porque aceitar ela, em detrimento de algo contraintuitivo, mas que também funciona?
E, em particular, o que o realismo estará obstaculizando em termos de descobertas? O problema maior das visões filosóficas não é quando as entendemos e não conseguimos demonstrar essa ou aquela como a visão vencedora: o problema maior é quando elas estão operando automaticamente e muito possivelmente impedindo o progresso do trabalho científico!
Então, dentro do realismo, temos várias outras concepções ocultas operando. Algumas vezes não tão ocultas, mas com seu status de dogma ou conhecimento não científico não explicitado, como é o caso do fisicalismo.
Let’s get physical, physical
O fisicalismo é uma forma de monismo no qual a substância que existe é a substância material. Mas não é bem assim. Muitas vezes um dos sentidos da palavra “materialismo”, que não é o ligado a economia ou ensejos tidos como “mundanos”, é o de não existir um mundo espiritual — existirem apenas as coisas materiais.
O fisicalismo e o materialismo (no seu sentido econômico) possuem algumas intersecções interessantes, como a questão de manufatura de consenso por parte da indústria farmacêutica.
Na verdade, a definição precisa para o fisicalismo é que a substância única que existe é a substância que a ciência chamada “física” reconhece — porque essa substância variou bastante com o tempo e hoje inclui como coisas existentes e físicas (e não tão “materiais”) tais como campos de força, ondas, nuvens de probabilidade, partículas, energia — e talvez, em alguns modelos teóricos não plenamente confirmados, algumas coisas mais coloridas tais como supercordas, matéria escura, informação, fator x, éter e outros balangandãs.
Sem falar no espaço, conceito que por si só Einstein alterou drasticamente e que, como Kant já previra, não é um objeto muito fácil de lidar, criando todo tipo de antinomia por si só.
Facilmente se percebe um argumento circular, um petitio principii. Ora, o que existe? O que a física confirma. E o que a física confirma? O que a física examina, de acordo com seus experimentos e instrumentos desenhados por seus modelos teóricos, como existente. Como ela desenha seus experimentos e instrumentos? Buscando examinar o que existe, isto é, o que ela confirma como existente, através de seus experimentos, baseados no que ela examina que existe. Ad nauseam.
Mas e qual seria a alternativa? Voltamos a acreditar em fantasmas e duendes?
Não há, de fato, alternativa. O fisicalismo não é conhecimento científico, porque não pode ser mostrado como falso. As alternativas também não são conhecimento científico, pelo exato mesmo motivo. Isso não quer dizer, de forma alguma, que a ciência no seu cerne esteja errada ou que não seja possível.
Ou, pior, que tais proposições metafísicas (porque o fisicalismo não é uma ausência de metafísica, mas exatamente o comprometimento com uma visão metafísica particular) sejam irrelevantes.
Porém, no mais das vezes, são só alguns passos injustificados e deliberadamente não examinados que muitos cientistas dão em nome da ciência, mas que efetivamente, ainda que caibam em seu escopo de investigação, produzem efeitos sobre os modelos e vieses através dos quais os experimentos são desenhados e as pesquisas são conduzidas.
Verifique se o fisicalismo realista do seu cientista favorito não é assumido sem justificação e com irredutibilidade fundamentalista... muito difícil encontrar um cientista sequer que não só trabalhe apenas dentro da perspectiva fisicalista — o que é bastante aceitável até, uma vez que é, afinal de contas, o consenso — mas além disso, espose explicitamente a perspectiva fisicalista como “autoevidente” ou acredite que suas justificativas circulares são cogentes — o que, diferentemente, é uma vergonha verdadeira.
Mas, como no caso do realismo, ir além do fisicalismo pode ajudar a ciência. Se não nos comprometemos com uma visão fisicalista da mente, por exemplo, todo um aspecto extremamente relevante para nossa vida, nossa experiência direta de primeira pessoa, não é reduzida a simples causalidades materiais, dentro de um cérebro operando causalidades físico-químicas.
Múltiplos determinismos, aleatoriedades e causalidades
A ciência se apropria de uma ideologia não examinada, a reifica, e a devolve como ideologia para a mente popular, com consequências muitas vezes funestas.
Normalmente quando pensamos em nossa circunstância, vemos duas classes de causas principais para explicar como ela se encontra nesse momento (saudável, doente, etc): o inato e o adquirido, nature e nurture. Isto é, o que é dado, em termos genéticos, e o que o ambiente fez conosco e que interagiu com o que nos foi dado.
Dentro disso, há um espaço maior ou menor, dependendo da ciência, para o que podemos chamar de “causalidade de baixo para cima”, isto é, autodeterminação. É óbvio que somos em grande medida condicionados por fatores fora de nosso controle. Na maior medida, provavelmente. Mas, em geral, vivemos sob a ideia — curiosamente fomentada também pela ideologia capitalista/materialista — de que agimos livremente.
Se isso é ou não uma ilusão, talvez esteja no reino das coisas que não podem ser provadas falsas, isto é, fora do escopo da ciência.
Em outras palavras, esteja isso correto ou não, ninguém conseguiu verificar, geralmente acreditamos que possuímos algum grau de autodeterminação. Embora isso nos pareça evidente (como o realismo muitas vezes nos é), muitas vezes entra em choque com ideologias provenientes da ciência. Isto é, se tudo é aleatório ou se tudo é determinado, em ambos os casos não há espaço para a determinação humana — que, mais importante que tudo, tem a ver com consciência, e pode ter a ver com nossa própria saúde mental e física.
Porém, a ciência, sem justificação, assume e reifica (na mente do público), ora uma destas proposições metafisicas, ora a outra, e algumas vezes tenta assumir, de algum jeito inexplicável, as duas!
Mas, de toda forma, talvez seja possível introduzir uma noção de ciência — e algumas ciências é claro já tocam nisso — em que nossa experiência de primeira pessoa, tenha o status ontológico que tenha (isto é, seja algum tipo de materialidade, um epifenômeno ou outra substância), possa ser objeto de alguma noção cogente de causalidade, e portanto de investigação científica.
Em meio a determinação material, ou aleatoriedade material, sem reificar nenhuma das duas, podemos encontrar talvez mais de um tipo de causalidade (além da fisicalista, ou mesmo da materialista).
Vejamos, por exemplo, a noção de neuroplasticidade.
Quando usualmente pensamos no cérebro, pensamos em como a massa cinzenta nos determina, e que se ela tem certos tipos de desequilíbrio, precisamos agir sobre a massa cinzenta. Com substâncias materiais, químicas, e talvez eletrochoques ou ondas eletromagnéticas, coisas desse tipo. Mas parece haver ampla evidência de que mudanças em nosso comportamento alteram não só os elementos materiais mais fluídos, tais como química e eletricidade, mas efetuam mudanças estruturais nos miolos.
O caminho oposto a isso até se tentou fazer em termos de cirurgia nos anos cinquenta (o caso mais extremo sendo a lobotomia transorbital, em que se enfiava um picotador de gelo em cima do olho do paciente e dava umas voltinhas) mas que em geral não deu muito certo.
A psicanálise, no extremo oposto, e aqui não vou defender esse lado, seria uma tentativa de fazer ciência levando em conta um dualismo, pelo menos funcional. Isto é, esqueça os conteúdos orgânicos subjacentes, vamos lidar com as ideias independentemente de qualquer coisa. Esse tipo de enfoque encontra hoje todo tipo de resistência, porque em muitos de seus âmbitos não consegue preencher as exigências de reproducibilidade de experimentos e possibilidade de provar a falsidade de seus conteúdos teóricos.
As tentativas de encontrar um substrato físico para nossa experiência consciente, e mesmo para coisas como aprendizado e inteligência, é a base do problema da inteligência artificial. Não sabemos, hoje, como reproduzir ou criar consciência — bem pior que isso: não temos nem como dar um palpite razoável de como isso poderia um dia se dar.
Não temos sequer modelos para explicar o que seria consciência, e, de fato, devido a isso, não temos sequer como provar a falsidade de uma consciência artificial que porventura criemos. O teste de Turing é uma confissão de limite epistemológico: não temos acesso ao status de consciência dos outros — podem ser todos máquinas ou zumbis filosóficos, que, desde que se portem como se possuidores de consciência, precisamos assumir que uma consciência está presente.
No entanto, quando discutimos aborto ou eutanásia, ou mesmo o conceito de morte clínica, usamos uma correlação comum, cerebral, com o estado de consciência. Na falta de um critério efetivo, usamos o critério que possuímos: certos indícios de atividade cerebral. Ao fazer essa concessão, engolimos muitas vezes todo o fisicalismo, e talvez mais o materialismo, o determinismo e o escanteamento da “causalidade de baixo para cima”, e magicamente a premissa se torna a conclusão, e assim seguimos tomando mera correlações como evidência de causalidade.
Correlação não implica nem mesmo correlação
É evidente que há correlação entre os estados mentais e as condições fisiológicas do cérebro, e, ademais, do resto do corpo. O que não temos é substrato suficiente para estabelecer a relação causal. Mais do que isso, já sabemos que a causalidade no sentido inverso, isto é, de nossa experiência consciente para o nosso organismo, possui algumas evidências tão boas quanto o oposto, ou seja, de nosso organismo para nossa experiência consciente (coisa que qualquer um que já bebeu álcool conhece).
Correlação não é causação, qualquer nerd nos informa (e alguns nos informam que correlação não é nem mesmo correlação). No entanto, no mais das vezes, quando declaramos uma morte clínica, por exemplo, assumimos causação. Bom, na falta de algo melhor, até tudo bem.
Desde que não nos enganemos: não há evidência maior do que a de mera correlação.
O resto, para qualquer lado, é especulação metafísica. Sim, acreditar que a mente se reduz ao cérebro é especulação metafísica sem justificação, ao menos tanto quanto o oposto, isto é, que a mente esteja fora do cérebro (como outra substância, no caso do dualismo, que embora impopular, nunca foi também refutado, ou até em outras mentes/cérebros, como no caso do externismo — ou, a minha preferida, a opção de certo tipo de idealismo de que o cérebro, juntamente com todos os demais fenômenos, é que seriam “epifenômeno da mente”).
A crença na causalidade é superstição
Até aqui tratei de problemas epistêmicos (viés, instrumentalismo), metafísicos (monismo, realismo, fisicalismo) e práticos (ética, determinação, materialismo).
Mas há outra premissa metafísica pouco examinada, que é a própria noção de causalidade. Talvez a principal base da ciência, mas por si só um saco de problemas filosóficos. Hume e Wittgenstein demonstram que o que tomamos como óbvio, a necessidade causal, não pode ser estabelecida. “A crença no nexo causal é superstição”, Wittgenstein não ameaçou apenas Popper com o atiçador, mas cutucou todo o conhecimento científico.
Mesmo que assumamos a causalidade de graça, o que talvez até seja justo: problemas com algumas poucas causas são relativamente fáceis. Problemas clássicos, como o problema da interação gravitacional de três (3) corpos, são ainda insolúveis. Você tem idéia de quantos corpos há no universo? Algo me diz que é bem mais que três... então, temos três dimensões nesse problema: correlação e causação, os problemas inerentes da causação, e mesmo se a causação está aí, snafu — situation normal, all fucked up. Como nossos smartphones e seus parceiros satélites funcionam super bem, a glória da ciência segue intacta mesmo com essa confusão toda intimamente presente em suas entranhas.
Mas vamos seguir adiante, em termos das premissas ocultas.
Indução, inferência e derivação de leis universais no espaço e no tempo
A física tem dois postulados claramente injustificados: que suas “leis” valem de forma igual no tempo e no espaço. A própria física ocasionalmente brinca com esses limites inventados: nas situações extremas, dentro de buracos negros ou considerando os primeiros instantes do big bang, algumas teorias aceitam flexibilizar leis físicas para explicar certos fenômenos.
Mais do que isso, temos a indução e a inferência.
Wittgenstein disse, por exemplo, que só porque o sol nasceu todos os dias até hoje, isso não quer dizer que nascerá amanhã. A continuidade não é garantida para nenhum fenômeno, mesmo depois da n experimentação; em n+1 algo como a constante de Planck pode, quem sabe, mudar drasticamente. Ou a força que mantém o núcleo do átomo coeso pode simplesmente, capuf, deixar de existir.
Porém, como estas ideias de estabilidade e continuidade espaço temporal (essa fé no status quo das coisas) até podem ser falseadas (num dado momento), e portanto se mostram conhecimento científico. Até agora, a continuidade de grande parte das leis estabelecidas se manteve, e as alterações ocorreram não porque houve uma mudança na realidade, mas porque mais fenômenos foram explicados.
Mas nada – absolutamente nada – impede que esse tipo de alteração (do lado da realidade, digamos, uma força deixar de existir, ou outra passar a existir) também ocorra. Porém, nenhum cientista que deseje seguir fazendo ciência pode abandonar essa fé.
A consciência é o novo “Deus está morto”
A física já tem problemas suficientes sem considerar imponderáveis, e, ainda assim, cresce o número de premissas injustificadas. Na sua raiz, em Galileu, por exemplo, a física é uma espécie de comunhão divina — e de fato isso espelha muito o tom “substitutivo da religião” de séries populares como Cosmos (tanto a nova quanto a antiga). Embora a física queira hoje explicitamente se dissociar da ideia de Deus, dizer que é assunto que não lhe diz respeito, a raiz é o estudo da realidade pela matemática como forma de entender Deus através de sua criação.
E ideais injustificados cuja genealogia pode ser traçada a esses tempos persistem no pensamento científico mais ateu de hoje: a forma particular de realismo que Einstein ou Stephen Hawking praticam é herdeira direta da teologia da imanência. Entre Einstein e Hawking só muda o fato que o primeiro era ainda um “iogue” do teísmo assumido e Hawking, como qualquer contemporâneo que se preza, deixa essa questão maior de lado — ainda que siga com o mesmo tipo de realidade imanente que o teísta projeta, com a maior ingenuidade.
Um exemplo de físico que não fez essa projeção seria Niels Bohr. A interpretação da mecânica quântica de Bohr e amigos, conhecida como Interpretação de Copenhagen, lida com a questão do observador, isto é, o experimentador e seu modelo teórico. Isso, em seu extremo, introduziu a noção de uma cadeia causal que vai da consciência do observador até o colapso de onda.
A crítica ordinária realista quanto a isso, vista em outras interpretações da mecânica quântica (que calculam tão bem ou quase tão bem), é que, ora “o que tem a ver a consciência do sujeito com o experimento que está acontecendo lá fora, na realidade”.
Se, por um lado, isso parece a visão mais cética, porque vê os acontecimentos físicos no cérebro como absolutamente separados do experimento, acaba projetando um dualismo na medida em que reconhece a experiência de primeira pessoa, e se ela não faz parte do experimento, ela acaba sendo outra substância. O realismo implica certo dualismo sutil.
Se a física possui, desde a década de 30, tensões internas quanto a noção da substância pensante, as ciências médicas simplesmente acatam o fisicalismo mais raso. Isso coaduna em parte com os interesses da indústria farmacêutica, a quem interessa que nos vejamos como engrenagens deterministas “consertáveis” pela química.
Materialismo e fisicalismo de mãos dadas, como se fossem a mesma coisa. Não é a física ou a medicina que nos diz se somos um espírito livre e totalmente desimpedido (para comprar no supermercado ou na amazon.com) ou sacos de substâncias em desgoverno (para comprar remédios): são as prerrogativas da ideologia capitalista.
E não pensemos que a “substância pensante” é um anacronismo absurdo, de uma época em que a ciência se misturava com a filosofia e a religião. O fato é que até hoje a ciência vez que outra inventa uma substância misteriosa qualquer, teórica, não detectada, e trabalha naturalmente com hipóteses desse tipo.
O problema é que a substância “espírito” é tão antiga, e talvez pré-científica, que todo tipo de preconceito com relação a ela é, por um ou outro viés, justificado. Mas substâncias bizarras e com justificação meramente teórica, tais como o éter, que Einstein derrubou como meio de propagação da luz, ou hoje talvez matéria escura, supercordas, ou em uma interpretação da mecânica quântica literalmente um “fator x” — uma caixa preta misteriosa, teórica, com uso especifico e reconhecido — são amplamente aceitas como objetos, ainda que temporários, de construção de modelos de experimentação e pesquisa.
Crenças injustificadas e imperceptíveis, mas impactantes
E a ideologia e a ciência são um caminho de duas vias: se a ideologia define quais linhas de pesquisa são mais interessantes, e qual a cara e o estado da ciência num determinado ponto da história, a ciência provê aparentes justificações para as ideologias.
É muito difícil não pensar nas raizes morais do capitalismo, e seus valores sagrados de eficiência e crescimento, sem considerar o darwinismo. Naturalmente, se pesquisamos o mundo de determinada forma e fazemos pesquisas do jeito que fazemos porque pensamos dessa ou daquela forma, os resultados dessas pesquisas também nos afetam, enquanto sociedade, ou digamos, paciente, de forma correspondente.
Não só num sentido direto, mas em termos de nossas prerrogativas morais, e mesmo de nossos estados de humor e perspectiva perante a existência. Mas, efetivamente, é um salto injustificado acreditar que, já que a competição por recursos na natureza é uma pressão para a adaptação, que por esse motivo adaptar mecanismos para facilitar a competição por recursos na sociedade humana é adequado.
Isso já começa com a maioria dos leigos pensando “evolução” como progresso, melhoria, e daí o salto para “crescimento econômico” é um só. Esses são valores da ciência enquanto corpo que se automelhora, e também são observados no mundo: no entanto, nada disso provê conteúdo moral para essas opções. Ademais, evolução no sentido do processo de seleção natural, tem mais a ver com ser adaptado ao mundo do que com melhorar continuamente. É mais uma ideologia que impomos perante a ciência bruta, e que lhe é natural porque ela mesma se vê como processo em evolução, mas cujo salto “observado” (na natureza) ou “bem sucedido” (nos resultados da ciência) para “moral” (bom) é total e absolutamente injustificado.
“Mas lembre dos seus antepassados imundos e doentes, morrendo aos 25 anos de idade, o livre empreendedorismo nos salvou disso tudo!” Perfeito, nada de errado com isso. Podemos agora examinar alguns dos problemas que estamos enfrentando em nível global e pessoal, com a crise ambiental, as epidemias de doenças mentais e outras ligadas ao consumo desenfreado e a falta de perspectiva existencial?
E, além do materialismo darwinista, o fisicalismo, como premissa oculta injustificada da maioria das ciências, também produz efeitos sobre como pensamos sobre nós mesmos e sobre os outros. Ele não é isento de se imiscuir em nossas considerações morais, e em nossas ideologias. É oculto e injustificado, mas não é livre de impacto sobre nossa vida, e sobre nossa qualidade de vida.
E, ainda assim, o fisicalismo claramente ainda não conseguiu resolver a situação da “substância pensante”. O problema da substância pensante no fisicalismo tem várias soluções apresentadas, que se resumem na fórmula geral: da complexidade emerge uma propriedade maior do que as partes (emergentismo) que não é a mesma coisa, mas tampouco é separável da coisa física (epifenomenalismo, superveniência). Como essa propriedade emerge, até agora, só é explicado por vodu. Se soubessemos, teríamos alguma ideia de como prosseguir em termos de inteligência, e consciência, artificiais.
Se o “fantasma na máquina” cartesiano, a união da substância pensante, feita de tecido espiritual diáfano, com a carne pulsante da caixola através de algum mecanismo intrasubstancial causa todo tipo de problema, a substância pensante emergente da fisicalidade também não é nada tranquila. Por mais que, para quem não quer pensar no assunto de verdade, e aceite de boa uma manipulaçãozinha da indústria do consenso, isso pareça garantido.
A ideia de Deus escondida nos dados
Uma das consequências desses problemas foi introduzir mais uma categoria diáfana e incerta no já diversificado conjunto de tipos físicos. Além de massa, energia, forças, campos, espaço, a informação. Mas a “substância informação” encontra alguns dos limites da substância pensante, uma vez que a informação subsume um interpretador – e aqui acabamos com mais circularidade, problemas de ovo ou galinha.
O realismo muitas vezes carrega outras duas premissas ocultas injustificadas, que herdou do teísmo, e que tentam esconder esse problema. Uma delas é a noção de que a matemática seja parte inextricável da forma, isto é: a substância contém massa, energia... e matemática. Isso vem do teísmo porque na tentativa de entender a mente de Deus e seus desígnios, como uma organização popular diz, o Grande Arquiteto, deixou na obra a marca de sua inteligência.
E não estou falando do criacionismo anticiência do “design inteligente”, é muito mais irônico do que isso. Esta ciência que busca a substância pensante emergente na informação, e que não prescinde da matemática como estrutural (e não uma projeção do ser pensante sobre uma massa entrópica indistinta, o que é uma possibilidade pelo menos tão boa quanto), está, no fim das contas, ajoelhada no mesmo altar dos incautos.
O emergentismo, o epifenomenalismo, é um deus ex machina (no sentido metafórico E irônico) que espelha, através das características, em termos de premissas ocultas que exige da substância física, a existência divina genealogicamente preservada na estrutura do pensamento realista-teísta da física, desde Galileu. Ou, sei lá, desde os gregos.
A ironia não para aí. A Igreja Católica defende a vida humana (no aborto, na eutanásia) por que razão? Ao contrário da ciência que louva, mesmo que não explicitamente, e no mais das contas, inconscientemente mesmo, a presença do divino na substância física (através da matemática, tradicionalmente o jeito que Deus pensa e faz as coisas), a Igreja vem pela substância divina – a consciência humana é preservada porque é como um espelho de Deus, é onde Deus vê a si próprio.
“À imagem e semelhança” não significa que Deus tenha um corpitcho de Alison Brie: significa que a consciência (a propriedade emergente das carnes da Alison Brie, segundo os fisicalistas), espelha a existência de Deus. E Galileu e Newton — e Einstein — ficariam felizes com essa perspectiva. Mas, é tanto hocus pocus quanto qualquer astrologia.
É difícil fugir desses dois dualismos, quando se pensa de forma realista – e tanto o catolicismo quanto a maior parcela do fisicalismo são realistas, é preciso dizer. Lembro que realismo aqui significa que a consciência e a realidade são separadas. Deus pairando sobre a criação, ou o epifenômeno mental, ou em casos fisicalistas mais graves, a ilusão da consciência.
Sim, porque essa sua experiência de primeira pessoa aí, para alguns fisicalistas mais lunáticos, é uma mera confusão temporária da matéria, sem importância alguma. Mas, falando sério, é o único jeito de se ser verdadeiramente monista quanto ao assunto: esse que repara a realidade física, o realista, não existe. Esse sujeito é uma aberração do monismo (mas não exatamente o tal “monismo anômalo”), adventícia, e irrelevante.
Em outras palavras, o fisicalismo, se é puramente monista, ignora a consciência. Se tenta explicar a consciência como processo emergente, o que promete, mas ainda não cumpriu, acaba com problemas semelhantes aos do dualismo.
Desinfetar a ciência da ideia de Deus não é tão fácil
Precisamos desta tralha toda para fazer ciência? Claro que não. Mas se você chega para qualquer cientista aí que trabalhe com a noção de epifenomenalismo ou assemelhada, ou leis físicas, equações unificadoras quase como “fórmulas da mente divina”, ele não vai engolir fácil todo esse filosofês. Porém, sem isso é fácil se tornar presa de algum tipo de “cientismo”, isto é, algo que tem aparência de ciência, mas é só dogma.
E se esses resquícios religiosos/filosóficos estão presentes nos cientistas, que dirá nos populares, que substituíram todas as noções supersticiosas por algo agora garantido por um clero mais críptico e respeitável do que os cabalistas medievais.
Embora o sujeito comum não seja capaz de efetuar os cálculos, ele se maravilha com visões sobre subpartículas e a suposta profundidade das explicações científicas — sem jamais querer suspeitar que no meio de todas essas engrenagens em funcionamento (e que funcionamento: é o show de mágica dos lasers e aceleradores de particulas, dos GPSs, MRIs, sequenciamento genético e da humanidade toda em rede) as premissas injustificadas abundam, sem falar que só há explicações funcionais, quando muito.
Mas, compram o pacote todo: a insatisfação pessoal que tudo isso muitas vezes produz (e produz sem dúvida na sociedade como um todo encaminhada num sentido niilista) vista como um indício da honestidade científica. É o refresco de Jim Jones na forma de um universo impessoal, aleatório, explicável até certo ponto não muito bem delimitado, mas sem sentido verdadeiro, e com certeza sem significado íntimo.
E o fanboy da ciência só se ajoelha perante o que não entende, presumindo que entende, mas comendo a hóstia das premissas ocultas injustificadas do fisicalismo, enquanto o epifenomenalista abençoa o substrato físico com um processo emergente misterioso. O mesmo ocorre com o jornalista que trata as palavras “mente” e “cérebro” como obviamente sinônimos. Tem um bocado de história e tensão por trás dessa sinonímia para a gente simplesmente comungar.
Há uma barreira conceitual a partir do momento que a noção de substância é esclarecida, se é que ela pode ser esclarecida para alguém que vê a si próprio como substância inerte que magicamente cria, num passe de mágica, uma “aberração descontínua da matéria” para olhar para si mesma e para o mundo. Mas uma coisa fica perfeitamente clara: não é tão simples, mas nos empurram o fisicalismo como se fosse óbvio, garantido e confirmado.
Parece mesmo até coisa da Igreja.
Primeiro publicado em setembro de 2014, no site Papo de Homem.
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