“A mente cria tudo”? Não como você pensa
Citação falsa do Buda promovida pelo pessoal que mexe com essas ideias de autoajuda/nova era chamadas “O Segredo”.
Um dos elementos mais comuns no pensamento nova era, que algumas vezes é confundido com um ensinamento do Buda, é a ideia de que o pensamento cria a realidade.
Na visão budista, a mente, em certo sentido, cria a realidade. Ou seja, nossa experiência é inseparável de nossa mente, e não há realidade separável de nossa experiência. Nesse sentido “a mente cria a realidade”.
Porém, a ideia de que o pensamento, positivo ou negativo, alterará nossa realidade futura é um tanto enganoso.
Em certo sentido, o que no budismo chamamos de “aspiração” existe. Isto é, se você deseja algo, você deixa uma semente para aquilo acontecer. Porém a visão da nova era parece propor uma ideia de que sua experiência, nessa vida, vai se transformar. E isso é extremamente raro. Ao ponto de ser infantil fazer propaganda com essa possibilidade.1É uma forma socialmente aceitável do sintoma psiquiátrico conhecido como “pensamento mágico”.
Patrul Rinpoche comenta que certa vez olhou para um campo verdejante e muito bonito. Ao perceber toda aquela beleza e o que aquilo o fazia sentir, ele logo rezou para não renascer ali, porque percebeu que o apego poderia fazer com que ele renascesse como um inseto. Esse tipo de coisa parece que a nova era não ensina, mas o budismo de fato ensina.
É considerado muito fácil se distrair no momento da morte e ser levado pelas muitas aspirações aleatórias que fizemos em vida, caindo em circunstâncias comuns desfavoráveis, ou, pior, onde não existe o ensinamento do Buda.
Essa ideia, portanto, tem muito mais a ver com nossa mente não ser treinada, e não sabermos aspirar corretamente, do que com simplesmente “pensar positivo”.
De fato, evitar falar em coisas ruins como o câncer não vai fazer com que você esteja imune a doença nessa vida. Fugir da realidade da existência da doença não vai nos livrar dela. E normalmente não aspiramos ter câncer, como isso acontece então?
As coisas não acontecem apenas por aspiração. Há causas e condições, a aspiração é só uma entre muitas causas. Tendo esse corpo, é inevitável ter doenças e/ou morrer. Não vai ser possível “pensar forte” até atingir a saúde perfeita ou a imortalidade. E embora aspirar por saúde para você e para os outros seja positivo e gere um aspecto da circunstância futura para que isso ocorra, não é suficiente. Nunca será suficiente. Samsara2A experiência de mundo que surge em conjunto com nossos hábitos mentais., na visão budista, não tem solução.
Quando aspiramos um corpo humano, ou de animal, essa aspiração continha ali a possibilidade do câncer — e a certeza da morte e de outras doenças. Esses outros resultados de causas e condições não precisaram de uma aspiração específica. Eles são simplesmente fatores embutidos em qualquer aspiração mais geral que fizemos.
Isso é assim porque tudo no samsara, absolutamente tudo, tem defeitos. Por mais perfeito e atraente que pareça.
Ainda assim, mesmo quanto ao contexto de “melhorar o samsara” (ter experiências melhores), o budismo ensina algo mais que a nova era. Se você quer que algo bom aconteça no futuro, você aspira e promove as causas e condições para que isso ocorra.
Assim, se você quer ficar rico, nessa vida, aspirar quase certamente não vai ser suficiente. Você provavelmente vai ter que se mexer. E além de fazer algum ou muito esforço, vai ter que ter muita “sorte”.
O ótimo é que o budismo ensina a desenvolver uma maior chance de se ter sorte (punya, mérito)! Segundo o budismo, a prática da ética, ao longo de várias vidas, vai levar você a ter mais facilidades no que quer que você queira em termos do que acha que o vai fazer feliz.
Então, temos a vontade, a aspiração. Daí temos que ter os meios. Os meios mundanos são se mexer no mundo para obter o que se quer: estudar, trabalhar, cuidar da saúde, se planejar para efetivar o que se quer, etc. Essas são causas grosseiras, bastante circunstanciais e temporárias. Tem gente que se esforça muito nisso e não obtém absolutamente nada. Ainda assim, faz sentido que sejam causas comuns desses resultados. Porém há uma causa mais sutil, bem mais importante: a prática da ética, isto é, evitar prejudicar a si mesmo e aos outros. E além desta há uma causa extremamente sutil, que é o treinamento da mente, já que percebemos que a ética nem sempre nos é natural, precisamos desenvolver o hábito da ética.
A causa extremamente sutil é o ponto, muito mais importante do que a causa mediana, apenas ética, e extremamente mais importante do que a causalidade ordinária de se mexer no mundo para obter coisas. Treinar a mente para reformular os hábitos, através da prática do darma, é absolutamente o mais crucial, se queremos ter experiências mais felizes. É, no fim, o que vai nos possibilitar praticar a ética. Apenas aspirar pode não ser suficiente, ou pode levar centenas de vidas. Apenas se esforçar de forma causal grosseira no mundo, no geral não funciona para a maioria das pessoas. O crucial é a prática da ética, e o mais crucial ainda é o que leva a prática da ética, a formação de novos hábitos positivos através do treinamento da mente.
Isso não é só, como a nova era ensina, apenas “pensar positivo”. Pensar com força, pensar com fé, pode ser um elementinho, mas não vai ser o crucial para aquilo acontecer. Com certeza não nessa vida, ou mesmo nas vidas imediatas. Além disso, imagine quantos obstáculos estão embutidos na sua aspiração inocente, já que você aspira de forma parcial e sem conhecimento de causas e condições? Você obtém uma coisa boa que aspirou, e um milhão de coisas ruins que não aspirou, mas para que gerou causas mesmo assim. E essas coisas todas podem vir ao mesmo tempo, de forma que você nem mesmo é capaz de aproveitar o que aspirou!
Aspiração, ética e treinamento da mente, com o objetivo de ser mais feliz, parece prática espiritual, mas essa prática só se torna espiritual quando a pessoa abandona a expectativa de melhorar a presente vida, e se foca em melhorar vidas futuras.
E mesmo essa prática ainda não é budismo, não é o que caracteriza o budismo.
Embora o budismo explique isso da forma mais clara que eu conheço, todos esses elementos estão presentes em outras tradições. O treinamento da mente nem sempre é tão sofisticado ou diversificado como no budismo, mas algumas vezes está presente. Na nova era, nem mesmo muitas vezes existe o treinamento em ética. E quando existe é muito superficial.
O que seria a perspectiva peculiar do budismo? É quando o objetivo não é sequer melhorar vidas futuras, mas obter uma realização que transcenda o samsara, isto é, transcenda a experiência condicionada. Uma vez tendo percebido que no samsara não há solução, não abandonamos estes métodos de causar felicidade condicionada, mas os focamos para a busca de sabedoria.
Também entender os ensinamentos do Buda depende de termos causas e condições. Então aspirar e praticar ética e treinamento da mente são todos elementos que, se direcionados além de meramente buscar felicidade condicionada ou boas experiências, produzirão a conexão com o darma. O darma então proverá o sentido final para superar a busca exaustiva por experiências melhores, ao nos depararmos com o estado desperto que caracteriza a mente do Buda.
Quando esta mente é revelada, não nos ocupamos de viver ou criar sonhos bons ou ruins, mas repousamos no reconhecimento direto da natureza da realidade, que é cheio de meios para ajudar os outros e de uma satisfação plena e não condicionada.
Enquanto não estamos lá, podemos aspirar principalmente por isso. E não apenas aspirar por bons relacionamentos e boas condições financeiras e de saúde. E também não devemos praticar ética e treinamento da mente apenas para encontrar condições melhores, mas devemos ser um pouco menos mesquinhos do que isso, e as praticar para encontrar o sentido definitivo.
Particularmente, quando aspiramos ser budistas, não aspiramos coisas mundanas particulares. Aspiramos da forma mais ampla e genérica. A iluminação de todos os seres. Essa é a aspiração sublime. As outras aspirações são perda de tempo. E algumas vezes, como Patrul Rinpoche nos mostra, são perigosas.
Prática formal e informal
Como prática formal e informal interagem, uma discussão sobre terminologia e alguns aspectos da prática budista em geral e do vajrayana em específico.
O Triste Caso de Nellson Ribeiro (“Padma Querido”)
Exemplo de alguém a evitar. Uma pessoa que se passa por monge budista em Pelotas.
Budismo e colonialismo
Os espectros do universalismo e do perenialismo, bem como as tentativas sempre frustrantes de encaixar o budismo nas categorias de religião, espiritualidade, filosofia e ciência.
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