A húbris científica
A questão não é nova. O mito de Prometeu é desde sempre conectado com o surgimento da ciência, e, de Frankenstein a HAL 9000, há dois séculos estamos absorvendo advertências histriônicas contra o “progresso”.
Mas a distopia, na ficção e na realidade, vem plotando um gráfico semelhante ao do aquecimento global: cada vez se reconhece mais a inescapabilidade de grandes sofrimentos sobre o homem, causados pelo homem.
Até aí, nada de novo. Além das catástrofes naturais e dos sofrimentos também naturais, pessoais e inexoráveis ligados a doenças, envelhecimento e morte, sempre tivemos guerras, tortura, o escambau. Muitas vezes houve uma combinação de eventos naturais, como a seca, com configurações sociais e políticas desafortunadas, bem como tiranos etc. – agravando coisas como fome, guerra e inquietação e turbulência social.
Uma coisa leva a outra, segunda lei da termodinâmica, a confusão aumenta.
Porém, já advertindo que o argumento aqui não é “já está tudo ferrado mesmo, vou ali pro meu sofá ficar deboas, olhar o Face tomando uma breja”, o tópico é o culto da ciência e do materialismo projeta uma vasta sombra sobre o futuro, e quando mais nos esclarecermos uns aos outros quanto a isso, menor o sofrimento. Diminuir o sofrimento é sempre nobre, não interessa em que amplitude, muito menos se haverá ou não uma solução definitiva para um sofrimento particular ou todos eles. O beija-flor que joga a gota de orvalho sobre o incêndio está fazendo sua parte.
A descrição do tópico usou palavras precisamente escolhidas, peço que o leitor não adicione ou retire qualquer ideia disso ao tecer sua ruminação interna sobre se aceita ou rejeita a informação. Mesmo assim, vou aqui frisar o que disse, para dirimir os erros que já pressinto serem possíveis numa leitura frívola: culto da ciência, ou cientismo, é uma visão ideológica da ciência, que alguns fanboys, cientistas ou leigos, algumas vezes mantêm, em graus diversos de intensidade; o sentido de materialismo aqui é o mais vasto possível, e inclui o fisicalismo, ou a perspectiva de alguns proponentes do culto da ciência que reduz a experiência humana (e de outros seres sencientes) a um mero processo determinista ou aleatório (ambos são problemas), mas também a ideia diferente mais intimamente conectada da cultura do predador, em que crescimento econômico, competição e valores distorcidos ligados ao consumismo, e ao que seria uma boa vida ou felicidade, são continuamente martelados como “a vida como ela é” e precisa ser.
Quando falamos em crítica à ciência, logo muitos olhos se arregalam porque, afinal de contas, ciência e esclarecimento sobre o mundo são vistos como sinônimos – e de fato, em vasta medida, são mesmo. Por isso mesmo, aqui, estou frisando pela segunda vez que o aspecto criticado é exatamente essa ciência qua sagrado, que não admite críticas. A bem da verdade, os aspectos criticados não são a ciência. Mas muita gente acha que eles são, daí o problema.
Ora, a decisão sobre o uso de qualquer tecnologia, por mais que tome dados e evidências na consideração de sua aplicação, nunca foi – nem nunca poderá ser – uma decisão puramente científica. Nem mesmo, no mais das vezes, a decisão sobre o que pesquisar é uma decisão puramente científica. A crítica aqui vem da confusão prevalente entre esse IO (entrada e saída, o que pesquisar e como e onde aplicar esse conhecimento) com a relativa imparcialidade e pureza (e nobreza) da atividade científica. Ora, há até quem acredite que a ciência pode determinar a visão da ética, simplesmente entregando a ideia de escolha e autodeterminação para um corpo externo (semelhantemente, ironicamente, a alguns problemas que as religiões monoteístas encontram).
Afinal, qualquer um pode se apropriar de algo, dizer que é ciência, misturar com sua ideologia e ver se os outros acreditam. Isso já é bem ruim, mas nesse caso trata-se apenas de um charlatão comum. O problema surge quando há três complicadores nesse charlatão: quando ele mesmo confunde a ideologia com a ciência; acredita, também por isso, estar de posse de um token moral (e, portanto, num sentido estrito sendo de fato ignorante ou louco, não um charlatão); e é bem sucedido, em termos de verbas e opinião pública, em reificar a autoridade científica de sua ideologia.
Agora abandonemos por um instante essa macroabordagem abstrata, que pode estar tratando de agentes com autoridade científica ou poder econômico, e falemos dessa gentinha pequena que escreve e lê um texto como o meu. Os Fulanos e Beltranos se dividem – lá vem de novo essa danada polarização – em dois campos: há os que acreditam que o progresso científico, e mais precisamente o progresso tecnológico, sempre foi e continuará sendo a melhor chance de promover bem-estar e resolver os problemas, e há os que são céticos quanto ao progresso científico/tecnológico/material, e alguns dos valores puramente ideológicos muitas vezes atrelados a esses fins. Este texto, você já reparou, está no segundo campo.
Aqui não se trata de montar um espantalho. Se você não é um purista, e acredita em certa medida que o progresso científico ajuda e continuará ajudando, mas que não é crucial ou suficiente – isso basta para não estar no primeiro campo, e eu também acredito nisso. Porém, se você considera que:
1. Somente a tecnologia (aplicação da ciência) é capaz de solucionar problemas humanos;
2. Bem-estar ou boa vida são definíveis de forma puramente materialista;
3. A tecnologia até gera alguns problemas, mas acredita que apenas a tecnologia os solucionará.
Basta um dos três itens para qualificar você como a oposição aqui. E já que, nas suas formas não absolutistas ou extremas, os itens 1 e 2 são relativamente corretos (isto é, alguns problemas são solucionados pela ciência, e algumas coisas materiais são de fato essenciais – mas não suficientes – para uma boa-vida ou bem estar), o ponto realmente insidioso é o terceiro. E é exatamente nele que está a húbris do cientismo.
Húbris significa, se observamos o sentido clássico, um tipo específico de arrogância. Ela é exagerada, num sentido específico, sendo aquele momento de “já ganhou” em se que passa a desconsiderar o oponente. É uma arrogância com uma grande ignorância atrelada.
No caso aqui o oponente é justamente a desconsideração, indiferença e alienação perante os vastos problemas ambientais causados, em grande parte, pelos avanços científicos. Esses problemas são na verdade totalmente causados avanços científicos, mas com um caveat: os avanços não ocorreram tanto pela ciência sozinha cuidando de si mesma e se autodeterminando: quem dirige as rédeas da ciência é justamente a cultura materialista, que por sua vez se pretende justificada pela ciência. Portanto esse tal culto da ciência é de fato o elemento mais insidioso: é ele que promove a alienação perante os problemas muito reais em nível global e pessoal criados pela máquina do materialismo.
Podemos falar de um sem número de questões: o carrocentrismo, as vastas distorções da agricultura e pecuária comerciais, a obsolescência programada, a publicidade invasiva, as vastas distorções da indústria farmacêutica, as vastas distorções da indústria alimentícia, as vastas distorções da mídia, a perda de privacidade, a dissolução das democracias em faux democracias que são corporatocracias, a lista é imensa.
Um mísero exemplinho singelo
O que me surpreende, porém, são aqueles que recomeçam a argumentar a favor de, por exemplo, usinas termonucleares que usam reatores de fissão. Ora, dizem eles, não queremos diminuir o carbono na atmosfera? Nada melhor do que essa “tecnologia limpa”!
O desastre de Fukushima tem quatro anos de idade. Ele foi muito menos grave do que poderia ser – no pior cenário, basicamente metade do Japão ficaria inabitável por décadas. Felizmente, usando métodos extremamente pouco ortodoxos, os heróis trabalhando na usina sob grande risco pessoal, conseguiram estancar um processo de meltdown nas piscinas próximas aos reatores contendo resíduos nucleares. Ainda assim, houve uma contaminação relativamente severa da região próxima, e, pior do que isso, não se tem nesse momento a mínima ideia do que fazer para desativar os reatores (eles não produzem mais energia, estamos falando de “desativar” no sentido de não precisar ter gente trabalhando e monitorando a coisa toda o tempo todo, gastando dinheiro, tempo, energia, e não solucionando a situação de forma alguma).
Um plano temporário (temporário!) de 40 anos (quarenta anos) não foi totalmente resolvido, e um plano de desativação definitiva não tem perspectiva. O Japão vai lidar com essa ferida por centenas de anos. Chernobyl está completando com certo atraso, e ao custo de bilhões de dólares, uma cobertura para seu acidente, 30 anos depois. Essa cobertura é também temporária.
“Mas”, o proponente do culto da ciência dirá, “isso foi um acidente freak, imprevisível, quem iria imaginar um terremoto e um tsunami – em situação normal as usinas nucleares são perfeitamente seguras!” (E Chernobyl foi “incompetência e húbris comunista, e uma série de erros imprevisíveis!”)
E o ponto é exatamente esse. Isso é a húbris (da ciência, não só do comunismo). A húbris é “confiar no próprio taco” de uma forma insustentável. Afinal, a Lei de Murphy – mesmo sendo “informal” – faz certo sentido. O enunciado é “tudo que pode dar errado, vai dar errado”: e nós nem sabemos o que é que pode dar errado. Saber alguns cenários: ok. Mas todos os cenários? Quantos são imprevisíveis? Ninguém sabe medir a ignorância. Todo mundo, até os cultistas da ciência, vão convir, não é possível. Eles tentam produzir medidas de risco – mas não se engane – essas são para companhias de seguro, para os chefes e planilhas de orçamento, não para as criancinhas que brincavam no parque em Pripyat.
E a energia nuclear para fins comerciais não é uma questão pouco complexa de engenharia, natureza e sociedade. Talvez o engenheiro que avalia a segurança dessas instalações consiga se convencer de que pensou em tudo que realmente importa, mas há fatores muito claros que estão bem além desse engenheiro.
Um deles é o tempo. Os reatores operam por mais tempo que os engenheiros e que as equipes de engenheiros. Algumas vezes mais tempo que as empresas que os desenvolveram. Eles ficam lá, operando com sua tecnologia obsoleta há 20, 30 anos (porque novos reatores estão sempre sendo desenvolvidos, mas os velhos seguem em operação por muito tempo), e lidando com segurança numa fórmula que evidentemente está numa planilha de custos. Tempo e dinheiro são, portanto, as duas primeiras pressões inexoráveis sobre a Lei de Murphy no caso nuclear.
E os impactos com problemas pequenos ou grandes ocorrendo em qualquer etapa da geração de energia por meios nucleares são enormes e com repercussões vastas no tempo e, algumas vezes, no espaço (o acidente de Chernobyl afetou metade da Europa).
E claro, nem falamos aqui no lixo nuclear. Por que Fukushima tinha aquele material armazenado no mesmo prédio do reator? Porque o Japão não tem ainda uma usina pronta reprocessar combustível gasto para reuso, e nenhum lugar na ilha quer aceitar os resíduos que sobram desse processo. Nenhum lugar queria aceitar antes de Fukushima, muito menos agora.
Assim todas as usinas daquele país, inclusive algumas que timidamente recentemente voltaram à operação, armazenam junto a seus reatores vastas quantidades de resíduos – que deveriam estar sendo processados e enterrados em algum lugar seguro por dezenas de milhares de anos. De preferência em algum lugar que não fosse o Japão, que tem certa preponderância a problemas sísmicos... porém, nenhum país aceita os resíduos de outro: tá louco? Alguém acha que o Japão ia seguir pagando o outro país? Por quanto tempo? Quando geopolítica é mais sensato do que a sua ciência, é hora de reconsiderar sua ciência...
E por que exatamente a usina de reprocessamento de resíduos do Japão não está pronta? Bom, aconteceu nessa usina de reprocessamento, antes de Fukushima, um pequeno acidente que contaminou o lugar, tornando um projeto, já caro demais, inviável. Atualmente ninguém na iniciativa privada acredita que essa usina ficará pronta, mas o governo japonês espera por ela para resolver a questão do combustível gasto mantido próximo aos reatores em operação (e aos desligados também).
Aí o governo não permite que se dê fim a esse combustível (que em parte pode ser reaproveitado), enquanto essa usina não fica pronta. Mas a iniciativa privada não está a fim de por mais grana – quem sabe o contribuinte não se coça? Ora, se a pressão é sobre a segurança pública, quem tem que pagar a conta é o governo, não é mesmo? E assim o custo da energia nuclear é transferido para quem está com a batata quente, isto é, todos nós. Quem ganha dinheiro com isso, bom, a pressão econômica é transferir os custos para o futuro e para os outros – o que é tão, tão fácil nessa indústria.
De toda forma, eles só têm espaço para resíduo próximo aos reatores para mais 20 anos de operações. Cada país, ao mesmo tempo, lida com esse problema. Os desenhos ultramodernos de reatores (não os das centenas ou milhares atualmente em atividade no mundo) prometem combustíveis com menos resíduos. Beleza, em vez de 1000 toneladas de complicações por 10.000 anos, 250 toneladas por 8.000 anos. Bem melhor... Super limpo.
Os únicos dois países do mundo que têm sua política de disposição de resíduos radioativos resolvida são a Finlândia e a Noruega. Algumas décadas atrás o pessoal largava uns tonéis no fundo do mar, pras criaturas abissais e o Cthulhu resolverem, mas daí os ambientalistas chiaram (“ai que gente chata, defendendo o futuro, será que eles não veem que tá cheio de baleia pra pescar agora, e que é isso que interessa?” Ah, anos 50, uma “era de ouro” em que a mentalidade era: “o lance é detonar mais uns ‘testes’ na água, lançando partículas de ar radioativas por toda a terra – a gente já fez isso umas 30 ou 40x e não deu tempo de medir quanto está custando mais aos hospitais em termos de câncer... então, manda bala!”).
Porém, na Finlândia os quilômetros de túneis escavados dentro de uma montanha são fonte de preocupação: o lugar precisa funcionar e ser protegido por milhares de anos. É preciso sustentar guarda ali por todo esse tempo, porque qualquer terrorista que ponha a mão nesse material pode fazer tantas bombas sujas quantas tornarão toda a vida na terra inviável várias vezes consecutivas. Aí a coisa sai do Kafka e vai pra Mitologia Suméria, né não?
Os engenheiros que lidaram com o lugar chegam a ter que considerar cenários do tipo: e se a espécie humana quase suma, mas sobreviva e reencontre o lugar? Como avisar essas pessoas? Tem um engenheiro em algum lugar sentado numa mesa pensando que sinal usar, que língua inventar para avisar os remanescentes de um cenário apocalíptico. Sério.
Em todo caso, segue verdade que com certeza ninguém tem como imaginar todos os jeitos de dar merda.
Aí o cultista pode inquirir quase sensatamente: “então não poderemos fazer qualquer coisa, já que sempre vai poder dar alguma coisa monumentosamente errada! Assim ninguém faz nada!” Não, de fato podemos fazer coisas mais simples e menos perigosas – coisas que não dependam tanto de esforços de segurança, e que não joguem a conta e a responsabilidade para o futuro – porque há um sistema ideológico que pressiona os agentes a agir em autointeresse imediatista.
É uma cultura de lucrar lançando problema pros descendentes e para toda a vida na terra. A ideologia incentiva isso. Funciona, gente fica rica, usufrui de certas felicidades temporárias – enquanto joga uma vasta sombra sobre o futuro.
A energia nuclear é só um exemplo extremo. Mas você sacode uma moita e caem 10 defensores dela, cheios de argumentos tecnocráticos que se resumem em “está cada vez mais limpa e mais segura”. Porém, pressão econômica, erro humano e catástrofes naturais estão sempre à espreita para revigorar a lei de que sempre pode dar uma merda enorme. Essa gente tem muita fé em engenheiros, ignora as externalidades depositadas no futuro, e joga a conta das incomensuráveis variáveis causais imprevisíveis para baixo do tapete – ou arredonda para cima. Funciona, é assim que “funciona” – os incentivos estão aí.
Só que está errado, e não tem justificação.
Em particular, precisamos mudar a mentalidade materialista que acha que crescimento econômico é uma boa coisa. E que mais é sempre melhor. Afinal de contas criar essa confusão nuclear toda para alguém tomar banho de chuveiro elétrico, ou assistir novela, talvez não seja o melhor uso de nosso tempo na terra.
E aí está o problema da “vasta sombra”, ela não é só sobre o futuro – que o nosso sistema atual efetivamente vende como se fosse commodity, largando externalidade a torto e a direito por cima dele. A vasta sombra se refere ao fato da profunda alienação que temos quanto aos impactos de nosso consumo. A húbris é a alienação do cientista, do engenheiro – que joga para os próximos engenheiros, perante qualquer problema que surja, a mera “confiança” de que ele “vai dar um jeito” – e nossa alienação é a separação entre o impacto que causamos e o que usufruímos, o que precisamos e o que faz sentido.
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