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A crença infundada em uma realidade externa

A definição do termo “realismo” em filosofia não diz respeito a uma característica emocional ou social, em que não se é romântico ou viajandão, mas pé-no-chão e prático. Um realista, na definição mais específica e precisa da filosofia, e que diz respeito à metafísica/ontologia, pelo contrário, é alguém que acredita na existência de uma “realidade externa”.

Quando falamos “externo” queremos dizer independente, sustentável por si só – não apenas “externo a nossa percepção”, embora em algumas variedades da crença, seja também exatamente assim.

Essa crença a princípio não nos parece algo absurdo, pelo contrário; nosso modo usual cotidiano de processar o mundo e falar sobre ele é eminentemente realista. É assim que nos referimos a nosso gato e pedimos o almoço no restaurante: o prato, o gato, o garçom e a conta estão todos bem presentes, reificados lá fora, e nos entendemos relativamente bem uns com os outros ao assumir isso. Por incrível que pareça, funciona relativamente sem problemas. Este, na verdade, é o maior argumento em favor do realismo, senão o único.

O realismo é o modus operandi natural para todos os seres dotados de órgãos dos sentidos e, mais do que isso, num passo adicional, usam a linguagem de alguma forma. E aqui há de fato alguma confluência entre o sentido corriqueiro do termo e seu sentido filosófico. Em certas patologias mentais pode justamente existir a crença de que tudo se refere a nós, ou que tudo está sob nosso controle – rompendo a barreira entre sujeito e objeto com base numa nova reificação, agora do sujeito. Evidentemente, essas pessoas não funcionam direito no mundo, e sequer se comunicam de forma totalmente inteligível.

Em certo sentido, é visto como saudável acreditar que há muitas coisas externas, uma vez que a maioria das coisas parece efetivamente estar fora do nosso controle e não nos dizem respeito. Podemos dizer que mesmo para começar no caminho budista é preciso manter essa atitude e visão realista.

Assim tendemos naturalmente a considerar as coisas todas separadas e os objetos todos “cada um no seu quadrado”, e nosso vocabulário e modo de agir e pensar no mundo se tornam biológica e adaptativamente vinculados a essa reunião específica de causas e condições.

Identificamo-nos com a culminância desse processo adaptativo na forma de linguagem e sentidos que operam de forma realista, ainda que isso apenas diga respeito a algo extremamente contingente, que, no caso de um ser humano, no mais das vezes dura somente algumas dezenas de anos; tempo que, ainda por cima, não passamos sempre ou na sua maior quantidade agindo no mundo, mas sim extremamente envolvidos com atividades pura ou principalmente mentais, que por sua vez muitas vezes demandam certa suspensão do realismo.

Na visão budista, por estas e outras razões, o realismo muitas vezes é afirmado como uma crença injustificada, e uma forma aguda de ignorância. Como pode isso? Como a refutação de algo tão essencial a quem tem olhos, ouvidos, etc., surgiu por adaptação evolucionária e produziu linguagem pode ter uma variante não patológica?

Sem dúvida o budismo entende que, pelo contrário, nosso aparato cognitivo e sensorial, e o corpo que o ampara, bem como todo o processo adaptativo das espécies, e todas as demais ocorrências no mundo são consequências do hábito formado por essa crença injustificada, ou ignorância básica, e não o oposto. A visão comum reitera que as causas materiais produzem o corpo, o corpo se adapta e produz os sentidos, e os sentidos se adaptam e produzem cognições cada vez mais elaboradas, e enfim a linguagem.

Para o budismo, no entanto, os hábitos, que são uma forma rarefeita das mesmas cadências e emoções que produzem a linguagem, é que produz as cognições, que enfim produz sentidos, que produz os corpos, que por sua vez produz as experiências em corpos, o nascimento, a doença, a velhice e a morte. Está tudo lá no ensinamento sobre os doze elos da originação interdependente, que o Buda revelou na semana subsequente ao seu despertar completo para a natureza verdadeira das coisas.

O entendimento comum, inverso ao que pode ser verificado através da experiência com a prática budista, não só é errado, mas esse erro tem consequências bastante diretas sobre nosso modo de vivenciar o mundo e as relações com os outros seres. Para o budismo, todos os sofrimentos, sejam de que tipos forem, surgem da ignorância quanto à natureza das coisas.

Essa ignorância não é uma “ignorância de uma mente”, que obscureceria nossa mente corporificada apenas, e seria uma propriedade dessa mente. Essa ignorância obscurece nossa natureza verdadeira, independente de causas e condições materiais ou sutis, e esse obscurecimento por sua vez é a fonte de todos os enganos, inclusive causalidade, tempo, espaço, forças, substâncias, matemática e adaptações biológicas, e a mente comum que opera de acordo com essas limitações, e assim sofre.

Porém, a própria crença errônea num mundo externo, e as crenças errôneas subsequentes, não são apenas uma formulação a ser desfeita num passe de mágica. Elas estão incrustradas nos hábitos, e só podem ser dissolvidas no trabalho com os hábitos. Entender é relativamente fácil, transformar a mente de acordo com o entendimento, um tanto mais trabalhoso.

Em outras palavras, da mesma forma que a impermanência é uma descoberta, a interdependência e a não separação entre as coisas também são objetos de internalização através de contemplação com esforço.

Isto é, na visão budista, para a maioria de nós no dia a dia, não nos é natural ver a realidade como ela de fato é – e também exatamente por isso ainda não somos Budas. Um Buda é alguém que vê as coisas como elas realmente são, e na nossa perspectiva usual, determinada por nossas limitações próprias, Budas ou seres extremamente sábios são relativamente raros.

Mais do que isso, estes são exercícios de contemplação que demandam esforço, e estão bem no começo do caminho. É o ato de contemplar a impermanência até atingir uma percepção cada vez mais aguda dela que nos leva a gerar urgência na prática do darma. Sem isso, não praticamos, e assim não dissolvemos todas as visões errôneas que nos são tão naturais, e que além de impedir que reconheçamos as coisas como elas realmente são, nos fazem sofrer por causa disso, e também nos levam a causar sofrimento no mundo através de vários impactos negativos de nossas ações.

Na visão budista, todo sofrimento e as causas do sofrimento advêm do não reconhecimento da natureza das coisas como elas de fato são.

Já que nossa tendência é estipular uma existência duradoura a tudo que observamos, e nos surpreender quando alguém morre ou quando algum de nossos eletrodomésticos pifa, é preciso trazer a impermanência à mente continuamente, o tempo todo. É preciso lembrar exemplos, reconhecer suas formas grosseiras e sutis. Enfim, se torna necessário sentar com a colunar ereta e pensar no assunto de forma sistemática: fazer contemplação, e depois descansar a mente. Em todas as tradições tibetanas é assim, e isso não é incompatível com nenhuma forma de budismo.

Algumas pessoas associam a posição de meditação com algum tipo de branco mental, um estado de ausência, um silêncio místico. No entanto, particularmente no início, é necessário pensar sistematicamente e lidar com os hábitos de várias formas hábeis através das práticas budistas de todos os tipos.

Embora a contemplação sobre a impermanência esteja bem no início do caminho, a contemplação que supera a visão errônea do realismo é um bocado mais avançada. O modo de começar com essa contemplação é expandir a empatia, gerar compaixão.

Na visão budista, a empatia e a compaixão são características inerentes de “possuidores de mente”, isto é, seres sencientes. Ainda assim, devido a obscurecimentos adventícios, essas qualidades não são usufruídas, e assim existem vários treinamentos da mente e meditações que visam fortalecer e revelar cada vez mais essas qualidades.

Algumas vezes pensamos que ser budista é ser bonzinho, até o ponto da passividade ou mesmo indiferença, no entanto a energia desimpedida da compaixão não tem uma característica sempre dócil. De fato, pelo contrário, quando a compaixão desabrocha, cessam os limites entre eu e outro, e ao nos depararmos com um ser que se tornou um espelho perfeitamente límpido de todas as nossas falhas – que revela tudo aquilo que nos impede ser a totalidade do que podemos ser – a visão, de início, é profundamente perturbadora, até mesmo aterrorizante. Essa expressão da sabedoria-compaixão na forma de figuras aterrorizantes está claramente presente na tradição budista nas deidades de meditação (yidam) ditas “iradas”.

O treinamento com a compaixão, porém, muitas vezes não começa aí, com as deidades de meditação. Começa sim com práticas tais como “trocar a si próprio de lugar com os outros”, tonglen, e a reflexão profunda e direta sobre todas as formas de sofrimento concebíveis e possíveis. Essas práticas, de início, também podem nos parecer relativamente desagradáveis, no entanto o exercício da compaixão, que no budismo só ocorre em união com a sabedoria – que é a superação de visões errôneas, tais como o realismo – se revela aos poucos cada vez mais cheio de contentamento.

Todas as práticas budistas tem uma rampa, maior ou menor, em que há um desconforto de lidar contra certos hábitos arraigados. Depois de um tempo maior ou menor, de acordo com a prática e com as peculiaridades pessoais do praticante, inevitavelmente surge uma energia deliciosa no trabalho com a própria mente e no desabrochar do darma em nossa vida. No início o darma parece demandar muito esforço, mas em certo momento o impulso da sangha – comunidade de praticantes –, bem como das outras fontes de refúgio, naturalmente nos leva adiante, com facilidade inacreditável.

Esse contentamento, um júbilo estável cheio de energia que não depende de condições externas ou internas, não só nos deixa mais flexíveis e capazes de efetivamente ajudar os outros de forma prática e cotidiana, mas também abre nossa mente para ainda mais compaixão e sabedoria, que também são um benefício direto para nós mesmos.

Sem o aspecto de sabedoria, o reconhecimento de que o realismo separatista é furado, a compaixão se torna um fardo, e daí o burnout das pessoas que assumem uma posição compassiva de forma ad hoc, apenas porque querem ajudar ou parecer boazinhas, quando não têm entendimento, nem interesse em desenvolver entendimento ou trabalhar os próprios hábitos.

Quando não há sabedoria, ou pelo menos a garantia de uma rede de apoio que remeta a sabedoria – isto é, a sangha –, é que surgem versões patológicas de coisas que parecem semelhantes a terminologia budista. Por exemplo, compaixão que é um fardo, ou ausência de eu que é despersonalização ou auto-objetificação, meditação como produto, noções equivocadas de carma que levam a perda de autonomia ou individualismo exacerbado, pensamento mágico e superstições, e enfim antirrealismo e doenças de meditação que levam à autorreferência e solipsismo.

Muitas pessoas confundem essas coisas com o darma, mas o teste é relativamente simples: você olha os praticantes e professores e verifica se eles vivenciam a satisfação no Caminho do Buda e em ajudar os outros. Caso os ensinamentos estejam permitindo a eles levar vidas mais significativas, integradas e satisfatórias, o darma não se tornou apenas uma imitação de baixa qualidade, uma versão patológica, comercial ou a seita de um “professor” desgarrado, ou mesmo um culto.

Independentemente disto, o budismo vai mais longe do que nossa experiência cotidiana de postular coisas externas, e todo um mundo externo – e isso na verdade também tem uma implicação eminentemente prática, “realista”, no sentido não filosófico da palavra, pé-no-chão.

Em vez de dizer “bem, as coisas parecem funcionar assim” (separadas), refletimos sobre porque muitas vezes elas não funcionam bem. Isso tanto num sentido pessoal, global, prático, como também num sentido filosófico mesmo. O realismo, como doutrina a justificar, é cheio de furos. Como já dito acima, aparentemente o único bom argumento para o realismo é apenas que normalmente operamos como se o realismo fosse o caso.

Mas, na visão budista, “normalmente” não é suficiente. Se formos nos guiar pelo que é generalizadamente aceito, estamos perdidos. A maioria dos seres está perdido, vivendo e morrendo vidas sem sentido. Uma de nossas primeiras reflexões, juntamente com a da impermanência, é como os seres por todo lado levam vidas tão precárias, sem sentido e cheias de todo tipo de sofrimento. Mesmo os que “estão bem de vida”. Essa reflexão é essencial para vencermos a barreira da normalidade.

Mas quando é que rompemos um pouco essa normalidade?

Quando vemos um animal ser torturado, ou mesmo assistimos a uma vídeo-cacetada de mau gosto, algumas vezes somos capazes de sentir aquela dor de forma vicária. O realista sofre muito para explicar algo assim. Ele vai precisar postular uma coisa chamada “mente”, que estaria por trás dos órgãos dos sentidos, e que espelha aquele sofrimento. Existem, de fato, explicações científicas, funcionais, para tal fenômeno.

Quando usamos a expressão “explicação funcional” é que a casa cai completamente. Se estivemos postulando de forma puramente funcional a existência externa, e agora precisamos postular de forma puramente funcional uma existência interna para dar conta de certos fenômenos, estamos, no fundo, estabelecendo uma série de remendos para o que é uma não justificação ou justificação circular.

O fato é que às vezes somos mais empáticos, isso flutua. Há pessoas mais empáticas do que outras, isso também flutua. Essa raiz de sensibilidade parece depender de certa conexão entre os seres dotados de mente que é muito difícil de explicar quando as coisas são realmente separadas.

Toda vez que separamos as coisas, precisamos engendrar explicações para os relacionamentos entre elas. Todas as vezes que unimos as coisas, precisamos igualmente engendrar explicações para suas aparentes separações. Esse é um problema inerente da ontologia, claramente reconhecido por todos que brincam com o assunto por mesmo que um curto período – mas que não impede muitos de seguir tentando achar uma solução inusitada para o quebra-cabeça ontológico.

O budismo é muito mais prático do que isso, e também porque o Buda não era um filósofo. Seu objetivo não era entender as coisas e explicar para os outros, seu objetivo era libertar a si próprio do sofrimento e assim prover um exemplo para todos os seres.

Assim, o Buda não tinha problema nenhum com falar a linguagem das pessoas comuns, que é realista – expressando sempre o reconhecimento que está além do que essa linguagem necessariamente expressa, por ser inerentemente limitada. E aí o budismo passa a soar paradoxal e de intelectualidade duvidosa; claro, isso parece assim apenas para quem tem a “doença filosófica”. Porém o fato é simples: retirando todas as crenças arbitrárias, o que resta são hábitos. Então treinamos para eliminar os hábitos, e a partir disso o reconhecimento é direto.

Esse reconhecimento é um benefício para si próprio, já que sofremos cada vez menos e de fato vivenciamos bem-aventurança, e também um benefício para os outros, já que nos tornamos exemplos de tudo isso.

Até mesmo a filosofia reconhece duas categorias amplas de realismo, que poderíamos chamar de “ingênuo” e “propriamente filosófico”. O realismo ingênuo é a condição de todos nós, seres não iluminados. Já o realismo filosófico é quando hipostasiamos essa condição com argumentos. E aqui temos um problema grave, porque a ciência em sua maior parte se apropriou do realismo filosófico, e opera, com o sucesso que todos reconhecemos, em grande parte a partir dessa doutrina não justificada.

Os textos budistas muitas vezes falam nesses dois níveis de engano, que dizem respeito ao realismo, mas também a outras visões errôneas filosóficas. Ou seja, uma coisa é a crença usual, habitual, em um eu. Outra coisa é a noção de alma, atman, uma ideia religiosa e filosófica que se aplica sobre a ideia de eu, e torna esse engano mais sólido, mais aparentemente justificado.

Hoje, a ciência parece justificar o realismo.

O sucesso da ciência em termos de tecnologia e explicações parciais acaba se tornando um segundo justificador para o realismo – um argumento tão circular quanto qualquer outro, mas de segundo nível, introjetado numa base de realismo ingênuo que para a maioria de nós segue sendo autoevidente.

Isso é tão extremo que é possível afirmar que pessoas que em algum grau são capazes de desafiar ou desconfiar do realismo são, além de bastante raras, as que estão mais perto de possuir o mérito de se aproximar dos ensinamentos do Buda e porventura o praticar. Embora ideias que desafiem o realismo surjam por todos os lados, na filosofia clássica e na cultura popular, e sejam interessantes para muitos como “papo-cabeça” e conversa de bar, aqueles que levam isso a sério e são capazes de se engajar em práticas ligadas a esse entendimento são extremamente raros.

É aqui que precisamos cavoucar o arsenal budista e buscar antídotos efetivos quanto a essas visões errôneas – que, não iremos argumentar com qualquer extensão aqui, mas claramente levam aos maiores problemas que temos hoje, tais como crise ambiental, falta de sentido e epidemias de doença mental.

E é contra essa raiz do problema, amplificada por um segundo nível de ignorância argumentativa, que o budismo fica realmente ardiloso, no bom sentido.

Quando estamos falando apenas de hábitos, apenas do realismo ingênuo, e dos problemas comuns a todos os seres sencientes, nesse caso as práticas budistas de contemplação e treinamento da mente são suficientes. A pessoa só precisa gerar mérito e treinar a mente para ouvir ensinamentos e praticar, e tudo dá certo. Não há necessidade alguma de “filosofia budista”, esse aparente contrassenso.

No entanto, quando estamos falando desse segundo nível de engano, em que o realismo filosófico surge como inimigo (ou mesmo com inimigos similares mais comuns antigamente, tais como noções de alma, deus criador, etc.), neste caso surge a necessidade de filosofia budista.

A filosofia budista é inerentemente e reconhecidamente sofista. No caso, usamos uma visão errônea mais trabalhável para refutar uma visão errônea menos trabalhável. E assim sucessivamente até que as visões errôneas sejam abandonadas e fiquemos apenas com os tais hábitos para resolver.

O que o budista tem como verdade, num sentido metafísico, não é efetivamente formulável. E não é que seja um mistério ou algo místico, apenas que demanda uma flexibilidade cognitiva absoluta, uma “cognição pura”, não dual, e não maculada por nenhum filtro sensorial ou conceitual, em outras palavras, uma cognição não “tocável” por nenhuma causa ou condição. Essa cognição reconhece a si mesma na atemporalidade, e nesse reconhecimento, tudo aponta exatamente essa “verdade sem proposição”.

Por outro lado, em termos do que pode ser dito, sempre haverá problemas. Em outras palavras, filosoficamente, não há remédios sem efeitos colaterais e contraindicações. Jigme Lingpa já disse “basta abrir a boca para entrar em contradição”.

No caso do realismo, o remédio óbvio, a outra visão “relativamente errônea” que usamos para contrabalançá-lo, é o antirrealismo. Uma das formas de antirrealismo, o idealismo (em que as coisas todas são feitas de “tecido de mente” e toda separação apenas aparência) nunca foi refutado de forma cogente na filosofia ocidental, apenas saiu de moda. Além disso, Niels Bohr e seus comparsas estabeleceram interpretações da mecânica quântica que operam totalmente fora do escopo realista, e sem necessariamente assumir uma posição idealista. E ainda existe gente nesse mundo, em pleno 2018, fazendo ciência sem realismo!

Calculam tudo certinho, funciona tudo direitinho. Explicam as coisas tão bem, ou melhor, que seus colegas realistas. Pelo menos na mecânica quântica. Por outro lado, há multidões de físicos trabalhando com grande esforço para produzir uma teoria quântica cogente com o realismo, e há várias que funcionam relativamente bem. O realismo é muito mais popular, em todas as esferas.

O realismo, na ciência, está ligado às origens filosóficas e cristãs da atividade científica. Ele é mais tradicional, e parece que, se precisamos mudar alguma coisa em termos de ontologia para explicar bem as coisas, não estamos fazendo ciência direito. Essa é a aparência, porém, não parece ser tarefa dos cientistas justificar uma posição que é eminentemente não falsificável e eminente e puramente metafísica, não é mesmo?

Poderíamos, no esforço da refutação, entrar nas várias formas de idealismo budistas e ocidentais, e tratar de como fazer ciência “antirrealista”, mas o mero fato de que essas ideias se sustentam, operam, funcionam – não têm refutação! – é suficiente para tornar o realismo uma arbitrariedade, novamente, algo não falsificável, uma crença metafísica. Esse enfraquecimento do realismo enquanto proposição filosófica e científica é extremamente necessário hoje, e isso só tende a produzir uma ciência mais cognitivamente livre de metafísica, que possivelmente pode produzir resultados de forma ainda mais livre devido a isso.

No escopo budista, o idealismo numa modalidade ontológica é também refutado, mas o idealismo epistemológico, que também poderia ser chamado de fenomenologia, é considerado por algumas escolas tibetanas uma “falsidade superior”. Explico.

No esquema de classificação e hermenêutica dos ensinamentos, sabe-se que o Buda ensinou em dois níveis, temporário e definitivo. Isso surgiu para explicar aparentes contradições nos ensinamentos, desde os registros mais antigos. Todas as escolas budistas têm noções do Buda estar falando em dois níveis possíveis.

Temporário é algumas vezes descrito como instrumental, expediente ou interpretativo. O Buda fala assim para ser entendido pelos seres mais comuns, pelos seres mais ignorantes, como nós. Assim, o Buda em muitos sutras se porta como um realista, porque, como já dito, o realismo é o meio usual dos seres se portarem, e o Buda precisa se comunicar com a ignorância dos seres. Ele muitas vezes não pode falar diretamente a partir de sua perspectiva de sabedoria, ele precisa didaticamente estabelecer uma ponte com seres obscurecidos como nós, para então poder revelar a visão mais direta.

Quando o Buda fala de uma árvore, ele pode até apontar uma árvore, e todo mundo, num escopo realista, entende o que está sendo tratado. O realismo é a língua universal dos seres ignorantes, e assim o Buda “cruza os dedos” para falar coisas que soem relativamente normais para pessoas que precisam ouvir coisas relativamente normais.

Assim, o Buda fala de tempo, espaço, corpos, etc. E ele até mesmo fala coisas como “atingir a iluminação”, embora a iluminação não possa ser um objeto de causas e condições e existir num momento no tempo e não existir noutro, e assim por diante. Ele fala de um modo, e depois retira as palavras, e diz que não é bem assim. Em todas as suas comunicações ele está usando esse tipo de didática.

Definitivo, por outro lado, é algumas vezes chamado de absoluto, ou “sentido último”, e é quando o Buda fala como as coisas realmente são, e isso, devido aos limites da linguagem, muitas vezes soa paradoxal a nossa tentativa de fazer nossa mente ignorante abarcar a sabedoria. Feliz ou infelizmente, a sabedoria só é compreendida pela sabedoria – quando o Buda fala de forma definitiva, ele só é entendido por Budas. Felizmente, todos nós possuímos sabedoria inerente em nossa natureza de buda, então temos o potencial de entender.

O diabo, no entanto, mora nos detalhes, e cada uma das categorias espelha internamente a mesma subdivisão. Então temos 1) “interpretativo que tende ao ouvinte” e 2) “interpretativo que tende ao definitivo”, e igualmente temos 3) “definitivo que tende ao temporário” e 4) “propriamente definitivo”.

(Nota: estou simplificando bastante esse esquema, e ele normalmente não diz diretamente respeito à hermenêutica – isto é interpretativo/definitivo –, mas a elaborações posteriores destes elementos que os embutiram como características do discurso budista em termos de “três giros da roda do darma”. Essa é uma tentativa da apresentação do esquema de Mipam Rinpoche, que no século XIX foi o primeiro lama a tentar criar uma visão unificadora para uma polêmica de 600 anos em torno desses temas. O quão realmente unificadora se fez efetivamente essa apresentação é difícil dizer, em tão pouco tempo, mas ela se tornou a visão hegemônica dentro da nyingma, e é bem aceita por algumas outras tradições.)

Estritamente falando, do ponto de vista definitivo, as três primeiras categorias são “boas falsidades”. Há todo um debate sobre como o Buda, um ser perfeito, poderia mentir ou emitir falsidades ou meia-verdades – mas isso se deve essencialmente à compaixão do Buda ao lidar com seres em vários níveis de capacidade.

Bem, vamos as quatro formas do Buda explicar o darma. Repare que cada forma surge para solucionar um problema deixado pela forma anterior, refinando assim a visão de forma a permitir o ápice da flexibilidade epistemológico-cognitiva (vipassana), que em conjunto com o estado de shamata (realização estável em foco meditativo sem torpor ou excitação), produz o “ver as coisas como elas realmente são” que é o que quer dizer ser um “desperto”, isto é, um buda.

1. “Interpretativo que tende ao ouvinte” é quando o Buda fala em termos do realismo ingênuo. Todos os ensinamentos do Buda que explicam as categorias dos seres nos samsara e suas diversas formas de sofrimento, e assim por diante, operam numa forma de realismo ingênuo.

2. “Interpretativo que tende ao definitivo” é quando o Buda se expressa de forma que soa antirrealista – não exatamente idealista, mas com elementos idealistas, e particularmente, elementos que permitam noções de continuidade. Particularmente quando fala sobre carma (que não faz o menor sentido quando as coisas no mundo existem efetivamente separadas). Esse antirrealismo não tem necessariamente uma conotação metafísica, mas aconteceu dos ensinamentos do Buda serem interpretados dessa forma ao longo da história.

Essas noções de continuidade são importantes para duas outras coisas além de apenas “carma” de forma geral: a possibilidade de ensinar o darma e a transmissão de linhagem. Quanto à possibilidade de ensinar o darma, é preciso que a sabedoria seja autorreconhecedora, de forma que quando um argumento com base no que é definitivo seja feito, ele possa ser seguido pelo debatedor. Mas se “já está lá”, porque “aqui” precisaria levantar o dedo para perguntar? É uma espécie de teatro, e é por isso que essa visão também é chamada de falsa. Da mesma forma, quando o darma é “reconhecido” ele é dito “transmitido”. Isso só faz sentido porque entendemos que dentro e fora, aqui e ali, são extremos. E as próprias ideias de união e separação implicam uma à outra – então se diz “além de união e separação”.

É difícil entender porque essas coisas seriam problemas no budismo, mas é que com a refutação do eu e de essências, nas ideias de ausência de eu e ausência de existência independente, isto é, vacuidade do eu e dos fenômenos, quando isso é entendido como dissociado de interdependência profunda, parece algumas vezes surgir uma negação ou má vontade quanto à noção de continuidade.

A continuidade, claro, é importante em termos éticos e de preservação dos ensinamentos budistas. Assim surgem ensinamentos específicos que frisam o aspecto autorreconhecedor da sabedoria como uma interdependência auspiciosa. Na verdade, entender de outra forma é postular exatamente o tipo de independência que é refutado de início. Mas a noção de continuidade, em si, também é controversa caso não haja uma confluência total entre os aspectos relativo e absoluto.

Os ensinamentos que focam esse nível são antídotos particularmente para o realismo filosófico, e começa o ataque ao realismo ingênuo.

3. “Definitivo que tende ao temporário” aqui os ensinamentos são propriamente fenomenologia, isto é, idealismo sem compromisso ontológico. Estes ensinamentos dizem respeito a ocorrências mentais de praticantes de meditação – é uma “língua” que pessoas que meditam acabam engendrando para descrever suas experiências umas para as outras. É aqui que encontramos o terceiro giro do darma e, dentro deste, o tantra.

Isto é claro, não se refere apenas à prática de deidade, particularmente o estágio do desenvolvimento, porém esse tipo de prática é justamente um exemplo consumado de como eliminar completamente os hábitos nefastos mais sutis do realismo ingênuo.

Um dos motivos pelos quais visualizamos a mandala, a forma pura da deidade, e recitamos mantras e efetuamos mudras é realizar a percepção de todas as aparências (externas e internas), emoções e pensamentos como a deidade. Isso destrói nossa reificação quanto às aparências ordinárias, pelas quais normalmente temos apego, indiferença e aversão.

4. Com relação ao definitivo propriamente dito, é a formulação sem extremos da madhyamaka – caminho do meio –, que está além de ser exprimível ou não exprimível, de ser uma formulação ou não se formular. É a própria realização do Buda, que não está nas palavras do Buda, mas não se ausenta nenhum pouco das palavras do Buda e de seus registros.

Num sentido prático, as visões superiores são usadas para curar os efeitos colaterais e contraindicações das visões inferiores – e todas elas, sem exceção, foram expressas pelo Buda como uma farmacopeia perfeita e infalível. Nesse sentido eminentemente pragmático, elas são todas “verdadeiras”.

Pode não ser possível refutar o realismo, porque, afinal de contas, ele é um ponto de vista e crença metafísica.

Em outro sentido, por isso mesmo, ele é autorrefutado desde o início. É uma doença específica da linguagem que produz uma discussão em torno do que é “chifres num coelho”, inerentemente impossível, ainda que aparentemente parte de nossa experiência cotidiana.

Muitas vezes as pessoas não entendem o que a palavra “metafísica” implica. O realismo, e seu filho ainda mais tinhoso, o fisicalismo, muitas vezes são até mesmo bradados como formas de antimetafísica. No entanto, eles próprios são nada mais do que visões metafísicas. A única forma de pensamento verdadeiramente antimetafísica no mundo é o budismo – é apenas ele que nega qualquer tipo de reificação ontológica e de discussão sobre substância ou substratos e subjacências.

Pelo contrário, toda discussão no budismo é para refutar doenças filosóficas, para apontar que o que importa é a realização, e a prática que nos leva a essa realização, nos libertando de inflexibilidade epistêmico-cognitiva.

É claro, o budismo tem vários elementos que, superficialmente, parecem superstições ou religiosidade primitiva. No olhar sofisticado, de fato, isso torna a coisa toda ainda mais bonita – uma vez que há uma preservação perfeita de vivências populares em meio às mais elevadas refutações filosóficas. E essas vivências são plenamente usadas pelo praticante como exatamente o usufruto dessa liberdade epistêmico-cognitiva.

Porém, se o realismo por acaso não é refutável, é claramente possível perceber que o idealismo e outras formas de antirrealismo também nunca foram adequadamente refutadas. E talvez, como também visões metafísicas, igualmente não sejam refutáveis.

Com base nesse entendimento, a pessoa interessada no darma e que talvez queira superar a crença injustificada no fisicalismo e outros cientismos que impedem nossa boa vida e felicidade, pode assumir temporariamente estas visões filosóficas antagônicas uma após a outra até que elas se desgastem mutua e completamente.

Então, quando ela cansar de jogos filosóficos, ela pode passar ao treinamento da mente. E se este treinamento, após alguns anos de engajamento, se mostrar de acordo com os mais elevados critérios de boa vida com sentido e satisfação, ele não deve ser abandonado. Esse é um simples critério prático.

Antes disso, como já recomendado, podemos examinar as qualidades das pessoas a nosso redor, e se as de praticantes budistas se mostrarem mais interessantes, talvez seja o caso de pensar em tomar refúgio e seguir a tradição.

De outra forma, o darma pode ser estudado como um objeto intelectual. Ele, nesse sentido, também é infinito, mas não provê qualquer satisfação duradoura.


Que abandonemos toda e qualquer arbitrariedade em nome de uma vida boa, estável e profunda, uma vida que nos permita revelar a natureza da realidade para nós mesmos e para todos os seres. Que tudo seja auspicioso.


esfera/sphere


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