Sobre o Madhyantavibhanga de Maitreya
O madhyantavibhaga, registrada por Asanga, foi comentada por Vasubandhu e Sthiramati, e originalmente traduzida para o russo pelo grande erudito ocidental Theodor Stcherbatsky. Nosso foco foi o texto raiz, composto por 112 versos, intitulado “Discriminação entre o Meio e os Extremos” (ou “Discurso sobre a Diferenciação entre o Meio e os Extremos”).
Asanga e as vertentes da yogachara
Asanga é reconhecido como o principal expoente da escola yogachara. Dentro dessa tradição, há duas correntes principais:
1. Yogacharins ontológicos/realistas — defendem uma interpretação mais ontológica ou realista do idealismo.
2. Yogacharins psicológicos/fenomenológicos — enfatizam realidade relativa da mente e dos fenômenos, sem compromisso ontológico.
A vertente mais “dura” (a ontológica) é alvo de refutações pelos madhyamikas — seguidores da vacuidade como caminho do meio —, que a classificam como Cittamatra (“apenas mente”).
Yogachara, Madhyamaka e o Debate sobre a Mente
A escola Yogachara ainda não existia no tempo de Nagarjuna (fundador da Madhyamaka). Os madhyamikas — e todas as tradições tibetanas concordam com isso — criticam os cittamatrins por reificarem a mente (citta).
Porém, quando um yogachara da vertente mais “suave” emprega o termo “apenas mente”, é preciso entender que:
◦ Não se trata de negar a realidade externa em si mesma.
◦ Nem de transformar a mente em uma substância absoluta.
O sentido correto é que toda experiência depende da mediação da consciência. Ou seja: tanto a mente quanto os fenômenos têm natureza relativa — não há porque reificar nenhum dos dois lados.
A importância da mente na prática
Contudo, o fenômeno “mente” tem papel central para os semtchen (seres sencientes, literalmente “os que possuem mente”). Essa relevância se amplifica ainda mais para praticantes de meditação, para quem a compreensão da natureza da consciência e seu funcionamento é ferramenta essencial na meditação.
Classificações e realizações espirituais
A distinção entre os dois tipos de yogachara pode, por vezes, levar a uma interpretação equivocada — a de que as diferenças entre os autores refletiriam não apenas compreensões distintas, mas também realizações espirituais desiguais. Essa tendência classificatória chega a ser aplicada até aos ensinamentos do Buda, sugerindo que certos sutras seriam intrinsecamente inferiores, e não apenas adaptados a diferentes contextos didáticos.
Na verdade, o samsara-darma por trás dessa categorização dos ensinamentos diz respeito primordialmente a modos distintos de pensamento, não a hierarquias de realização espiritual. Em minha compreensão, o valor do estudo dessas classificações reside menos em julgar mestres ou textos, e mais em nos alertar para as tendências interpretativas equivocadas que naturalmente surgem quando nos debruçamos sobre esses ensinamentos profundos. Serve como um antídoto contra a tentação de estabelecer hierarquias rígidas entre diferentes abordagens, autores ou linhagens.
Nyingma vs. gelug: afirmação e negação
Na tradição Nyingma, realiza-se uma síntese harmoniosa entre a abordagem psicológica do yogachara e a perspectiva madhyamaka, criando uma visão unificada que supera as aparentes contradições entre essas escolas.
Essa discussão é crucial para entender as diferenças entre as linhagens tibetanas, como nyingma e gelug. Sua Santidade o Dalai Lama, mestre das cinco linhagens, explica:
◦ Gelug segue uma “negação não afirmativa”, a vacuidade é apresentada frisando o aspecto vazio na não separação entre vacuidade e luminosidade.
◦ Nyingma adota uma “negação afirmativa”, enfatizando o aspecto luminoso (’od gsal), enquanto também não separa vacuidade e luminosidade.
A “afirmação da luminosidade” não difere em essência da negação fundamental da existência independente (que, por sua vez, chamamos de “vacuidade” também num sentido afirmativo). No entanto, muitas vezes quando os gelugs interpretam os textos nyingma, frequentemente os acusam de cair em um eternalismo semelhante ao da cittamatra, a yogachara “dura”. Porém, gelugs como Sua Santidade, mais dotados de um princípio de caridade amplo, e interpretação bondosa de textos, costumam dizer que o nyingma possui o madhyamaka como núcleo essencial, mas preserva uma “estética cittamatra” em sua expressão.
A distinção entre as abordagens é magistralmente explicada por Sua Santidade o Dalai Lama: os textos nyingma emergem do ponto de vista de um Buda, enquanto os gelug partem da perspectiva de um ser comum. Essa diferença fundamental explica o caráter afirmativo de um e o não afirmativo do outro. A tradição gelug adota uma postura mais cautelosa, apresentando o darma de forma gradual e menos “arriscada”. Já a nyingma se compromete totalmente desde o início, oferecendo ensinamentos que, fora do contexto adequado da linhagem e da prática, podem tornarem-se problemas para o praticante. Assim, quando a abordagem é mais pública, externa ou iniciante, os ensinamentos gelug são mais seguros, enquanto que para praticantes engajados, com grande devoção pela linhagem, e com alguma experiência de meditação, os ensinamentos nyingma podem ser extremamente úteis.
Neste âmbito, examinamos o Kundjed Gyalpo (O Soberano que é a Fonte de Tudo), texto seminal da Grande Perfeição — o ensinamento mais elevado da tradição Nyingma. Embora apresente paralelos com o Madhyantavibhanga, o tantra interno revela uma abordagem radicalmente mais ousada: nele, a inseparável luminosidade-vacuidade assume voz própria, falando em primeira pessoa. Para quem desconhece o darma, essa personificação pode sugerir um viés teísta — como bem ilustra o dito budista: “os loucos adoram se identificar com a primeira pessoa”. E realmente, o texto atrai precisamente aqueles que, não contentes em se imaginarem Napoleão, pretendem ser o próprio Soberano de Tudo. Porém, sua sabedoria reside justamente em desconstruir esse mesmo Soberano (que é, simultaneamente, luminoso e vazio), dissolvendo no final qualquer noção de identidade fixa — não sobrando sequer qualquer “louco” para sustentar tal pretensão.
No âmbito do mahayana — contexto em que se insere o Madhyantavibhanga —, a abordagem é marcadamente mais analítica, menos intensa e direta do que no Vajrayana. Essa via é mais lenta, mas oferece um caminho mais seguro e gradual, onde podemos discutir os ensinamentos sem riscos de interpretações equivocadas que possam “envenenar” o entendimento do leitor.
Quanto à polêmica entre as escolas, embora os cittamatras sejam frequentemente criticados pelos madhyamikas por não negarem radicalmente a autoexistência, é preciso lembrar que todos somos simples seres humanos em busca de compreensão — não devemos nos apegar a rótulos escolásticos. No final, o que importa é fazer “cair a ficha” da verdadeira natureza da realidade. E fazer isso com bondade, pois, como observou um praticante presente: “a bondade é mais importante do que a verdade”. (Claro que a dialética budista logo argumentaria que, em última instância, bondade e verdade são inseparáveis...) Mas deixemos essas discussões para depois — eis, afinal, as notas que compilei.
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Assim se revela a essência de todas as coisas: liberdade pura. “Liberdade” aqui significa não haver impedimento ou embaraço, por que tudo se revela translúcido e não sólido. Objetos materiais, mas também as causas e condições de nascimento, doença, velhice e morte.
No próprio cerne do engano, habita aquilo que transcende a ilusão — aquele princípio que, precisamente por poder cair no erro, já está fundamentalmente livre dele. Presente. Vivo. Refúgio último tanto dos iludidos quanto dos despertos.
A própria existência do engano pressupõe algo capaz de se enganar. E é nesta capacidade que encontramos nosso verdadeiro refúgio, o sol de sabedoria que pode ser reconhecido ou obscurecido, mas está sempre presente.
Quando compreendemos que o próprio tempo é uma construção ilusória, faz todo sentido falarmos em um “corpo de juventude incessante” — existência além da tirania cronológica.
As incontáveis aparências surgem como as luzes dançantes na superfície do oceano: cintilantes, plurais, evanescentes. Desse jogo de reflexos emergem a causalidade e suas intrincadas justificativas, enquanto a liberdade primordial repousa inabalável, como o céu impassível com o movimento das nuvens.
Esse criador paradoxal da confusão e da lucidez, que pode se enganar ou não, desconhece qualquer fissura entre objeto e observador. Sua natureza é a identidade não dual com o que é desimpedido, desembaraçado e presente sem esforço. Assim, mesmo quando parece cair em erro, jamais deixa de ser a expressão imaculada da realidade última — como ondas que, em seu movimento aparente, nunca deixam de ser o próprio oceano.
Em termos vajrayana, podemos dizer que a essência vajra do corpo, a essência vajra da energia, e a essência vajra da mente, os três kayas, OM AH HUNG, são inseparáveis.
Quando as aparências se dissolvem, dissolve-se igualmente a mente que os percebe. Porém, este não é o chamado estado de Brahmam. A tradição descreve quatro níveis desse estado de deus da não aparência. São verdadeiros comas meditativos onde, na ausência de objetos aparentes, o observador permanece mergulhado em sono profundo. As aparências não cessam; apenas aguardam, latentes, o despertar da consciência que as projetará novamente.
Daí o uso da poderosa metáfora da dança — imagem perfeita para descrever aquele que, livre de aceitação ou rejeição, manifesta-se graciosamente no palco das aparências. Aqui, transcendemos os extremos: nem fixação em perspectivas, nem sua negação absoluta.
Pois a mente primordial e a mente que experiencia são, em última instância, da mesma natureza — como o oceano e suas ondas.
É neste contexto que se revelam os doze elos da originação dependente, mostrando como:
1. A cegueira inicial (avidyā, não ver)
A mente se obscurece no próprio ato de perceber — como quem, ao fixar-se num aspecto, perde de vista o todo. Analogia perfeita encontramos no cubo de Necker: quando um vértice salta “à frente”, outro inevitavelmente recua “para trás”. Ver é, paradoxalmente, deixar de ver completamente. Aqui o engano é inocente e apenas não se autorreconhece.
2. A cristalização dos padrões (saṃskāra, fabricar)
Repetidas sob esse véu, as operações mentais criam sulcos profundos. Como um pintor que, diante da tela, mistura novas cores sempre em relação às já aplicadas, a mente condicionada reproduz infinitamente seus próprios moldes. Aqui o engano prolifera composições que se agregam e desagregam.
3. A autorreferência do hábito (vijñāna, discernir)
Nesse estágio, a predisposição adquire autoconsciência. Os objetos agora exercem atração gravitacional — “Eu sou meu impulso” torna-se a uma retroalimentação, a cada movimento, o movimento se reconhece como movimento, e se move a partir do movimento. A identificação com o engano está completa.
4. A fome por estabilidade (nāmarūpa, nomear)
A consciência determinada busca ansiosamente pontos de apoio. Cada impulso clama por fundamentos que justifiquem sua existência, por estruturas onde possa repousar. Os impulsos de movimento autorreferentes formam bases, e o engano se prende a esses elementos rotulados.
5. A Consumação do Processo
A mente determinada atinge sua plena configuração. Como embrião que completa seu desenvolvimento, estabelece bases sólidas para a continuidade do ciclo. Aqui, os alicerces kármicos consolidam-se em estruturas mentais definitivas.
Quinto, a mente consciente determinada se completa. Ela consegue certas bases, o embrião amadurece.
Sexto, a mente se torna triplamente definida. Surgem claramente objeto, observador e consciência. Os dezoito dhatus (as três esferas dos seis órgãos dos sentidos [cérebro e os outro cinco], seis objetos [pensamento e os outro cinco] e seis mentes [autoconsciência e os outro cinco]). O bebê está no colo da mãe.
Sétimo, experiências agradáveis e desagradáveis.
Oitavo, a mente fixa-se em algo. “Eu quero isto”, “Não quero aquilo”. Isto vai desde o apego sexual até o apego a ideias filosóficas.
6. A Tríplice Diferenciação
A experiência cristaliza-se em três dimensões nítidas:
◦ O objeto percebido
◦ O sujeito que percebe
◦ O ato da consciência que os une
Surge assim o complexo dos dezoito dhatus:
◦ Seis órgãos sensoriais (incluindo o cérebro como sexto sentido)
◦ Seis objetos correspondentes (formas, sons... e pensamentos)
◦ Seis modalidades de consciência
Momento crucial: como recém-nascido no colo materno, a consciência experimenta seu primeiro contato integral com o mundo fenomênico.
7. A Bifurcação Hedônica
A experiência agora divide-se inexoravelmente em:
◦ Agradável (atração)
◦ Desagradável (aversão)
◦ Neutra (indiferença que logo será categorizada)
8. O Apego como Lei
A mente cristaliza seus padrões de fixação:
“Isto sim, aquilo não”
“Quero isso, rejeito aquilo”
Espectro completo do apego:
◦ Do mais básico impulso sexual
◦ Às mais sofisticadas fixações intelectuais
◦ Passando por todas as formas de desejo e aversão intermediárias
Nono, a mente é privada. Ao conseguir o que quer, ela perde todo o resto. Surge uma busca incessante por objetos.
Décimo, a mente surge como alguém no mundo. Um novo nascimento, com base nos nascimentos anteriores.
Décimo-primeiro e décimo-segundo, sofrimento. Desde que ela sai daquele local apertado até todas as coisas que ocorrem na existência, inclusive velhice, doença e morte, tudo é sofrimento.
Versão Aprimorada:
9. A Prisão do Sucesso
Ao conquistar seu objeto de desejo, a mente experimenta a mais cruel ironia: na posse, descobre-se privada de tudo mais. Cada satisfação gera nova carência, alimentando a roda sem fim da busca obsessiva. O ganho revela-se perda mascarada.
10. O Nascimento do Ego no Mundo
Das cinzas dos desejos anteriores, surge renovada a ilusão de um “eu” separado. Novo nascimento, velha história: a mente agora se experimenta como entidade autônoma, herdeira de todas as tendências passadas, prisioneira de sua própria genealogia kármica.
11–12. A Anatomia do Sofrimento
Desde o primeiro instante — o trauma do nascimento que expulsa do útero acolhedor — até o derradeiro suspiro, toda existência se desdobra como variações sobre o tema do sofrimento:
◦ O sofrimento do desconforto físico
◦ O sofrimento da mudança (prazeres que se esvaem)
◦ O sofrimento onipenetrante (a inquietude subjacente a tudo)
Velhice, doença e morte não são eventos isolados, mas estações obrigatórias nessa via-sacra existencial. Até mesmo os momentos ditos felizes carregam em si as sementes da própria dissolução — eis a verdade mais difícil de encarar.
A partir deste processo o construtor oprime os seres. A Fonte de Tudo transforma-se em Maharaja.
A irrealidade de ambos (sujeito e observador) e a realidade subjacente a esta irrealidade, esta é a essência do absoluto. Não é uma afirmação, nem uma negação, portanto não é uma mera verdade filosófica. Nem é diferente disto. (Este é o ponto onde madhyamaka e cittamatra confluem).
Os nomes do construtor são:
• realidade indiferenciada
• objeto puro derradeiro
• base dos poderes do Buda (por compreender isto, o Buda manifesta seus poderes)
Portanto:
◦ Não-dual (sem distinção entre eu/outro);
◦ Honestidade inabalável (além de todo autoengano e ilusão);
◦ Simplicidade primordial (não-composta, o cerne da realização de todos os budas);
Eis os propósitos sagrados da prática:
◦ Realizar o Caminho do Meio — esse duplo eixo que transcende todos os extremos;
◦ Beneficiar de modo definitivo e temporário todos os seres sencientes;
◦ Permanecer no mundo sem ser por ele aprisionado;
◦ Alcançar aquela felicidade incondicionada que nenhuma circunstância pode corromper;
◦ Honrar a linhagem e purificar nossa conexão ela;
◦ Manter imaculada a manifestação dos poderes de Buda neste mundo;
◦ Compreender que tudo que é relativo (a aparente realidade dos fenômenos) encontra seu fundamento no definitivo;
Portanto, nossa prática se estabelece além de qualquer dualidade: não se trata de estar obscurecido ou iluminado, de fazer perfeito ou imperfeito, de realizar ou não realizar, nem de se mover entre esperança e medo. Ela simplesmente é — desimpedida, incondicionada, livre de qualquer referência. É assim que praticamos.
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Eis as anotações que fiz ontem. Nos limitamos aos versos originais do texto, atribuídos a Maitreya e registrados por Asanga — as fontes deste texto. Não chegamos a abordar os comentários posteriores. Padma Dorje, 2003, com algumas correções importantes em 2025.
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