Sobre o Madhyantavibhanga de Maitreya
Ontem pela manhã acordei mais cedo e peguei dois ônibus até uma longínqua área rural para ouvir explicações sobre o texto do Senhor Maitreya, escrito por Asanga, comentado por Vasubandu e Stiramati, e traduzido originalmente para o russo por um grande erudito ocidental chamado Stcherbatsky. Nos centramos no texto raiz, em 21 versos, cujo título se pode traduzir como "Discriminação entre o Meio e os Extremos", ou "Discurso sobre a Diferenciação entre o Meio e os Extremos".
Asanga é classificado como sendo, e considerado como maior proponente, da escola Cittamatra, algumas vezes confundida com yogachara, mas não se trata exatamente da mesma coisa.
Os madhyamikas (cujo maior proponente é Nagarjuna), acreditam que os cittamatrins tenham sim uma tendência a reificar a mente (citta), mas não confundiam isto com o que seria fácil deduzir através de "mente apenas", alguma espécie de idealismo como o concebemos no ocidente.
Estas "escolas" são classificações posteriores, e que algumas vezes passam a ideia de que os autores tinham realizações espirituais diferentes. Não é assim. O samsara-darma de classificar os ensinamentos diz respeito essencialmente ao pensamento. Na minha acepção, o estudo das classificações do pensamento budista serve antes para sabermos as tendências errôneas comuns que teríamos ao analisar um texto do que classificar a realização de um mestre ou grupo de pessoas.
Madhyamaka considera-se a mais sofisticada, mas apenas porque considera que cittamatra reifique a mente. Talvez a leitura de que cittamatra reifique a mente seja uma leitura madhyamaka, e não exatamente o que os cittamatras tinham em mente — desculpem-me o trocadilho.
Isto é bastante relevante quando falamos da diferença entre nyingma e gelugpa, as linhagens tibetanas, por exemplo. Sua Santidade o Dalai Lama, mestre das cinco linhagens, diz que "gelugpa é uma negativa não afirmativa, e nyingma é uma negativa afirmativa". O que quer dizer que a vacuidade é apresentada em ambas, sendo que a luminosidade para Gelugpa não é nem afirmada (e nem negada — exatamente por não se diferenciar nem um pouco da vacuidade), enquanto que nyingma afirma a luminosidade, od'sal e também lhungrub, a "presença espontânea". Este "afirmar a luminosidade" não é essencialmente diferente da negação básica quanto a uma coisa autoexistente (o que chamamos também "afirmativamente" de "vacuidade"), mas na leitura gelugpa de textos nyingma surgem muitas acusações de eternalismo, exatamente pela característica afirmativa destes textos. Daí os gelugpas mais generosos dizerem que nyingma é madhyamaka em cerne mas mantém uma "estética cittamatra".
Sua Santidade o Dalai Lama soluciona isto ao dizer que os textos nyingma são sempre escritos do ponto de vista de um Buda, enquanto os textos gelugpa são escritos do ponto de vista de um ser senciente comum. Daí a diferença entre o afirmativo e o não afirmativo. A gelugpa se compromete menos, e expressa um darma menos "perigoso", mais gradual. Nyingma é completamente comprometida desde o princípio, e o ensinamento é basicamente apenas veneno caso tomado fora do contexto da linhagem.
Assim, falamos sobre o texto "A Fonte Suprema", um dos tantras básicos da Grande Perfeição (o "Kundjed Gyalpo", "O Soberano que é a Fonte de Tudo") como semelhante ao Madhyantavibhanga, apenas que a concepção vajrayana é muito mais audaciosa, ao personificar completamente a luminosidade-vacuidade, que neste livro fala na primeira pessoa. Parece um enfoque até teísta, se não entendemos corretamente o darma, além de que, o lama brinca, "os loucos adoram se identificar com a primeira pessoa". Ou seja, isto atrai os loucos, os que acham que além de Napoleão, são a própria Fonte Suprema - só que o texto trata de desconstruir a Fonte Suprema (ela é luminosa E vazia, lembrem), e portanto, não sobra louco para ser alguma coisa. Este é o método vajrayana.
No mahayana, que é o escopo do Madhyantavibhanga, a coisa é muito mais analítica, menos intensa e hiperbólica que no vajrayana. Por isto "leva mais tempo", mas ao mesmo tempo é mais sensato, podemos falar sobre isto sem correr o risco de estar envenenando quem lê.
Então, embora os cittamatras sejam acusados pelos madhyamikas de não serem suficientemente duros quanto a não autoexistência, somos todos seres humanos, não pertencemos a escolas, e nossa motivação é deixar "cair a ficha". E fazê-lo por bondade. Porque, segundo um ocidental lá, "a bondade é mais importante do que a verdade". (A dialética budista ia tentar, é claro, provar que bondade e verdade são a mesma coisa...) Bom, seguem-se as notas em si.
Dessa forma, todas as coisas revelam liberdade.
Em meio ao próprio engano, existe aquele que pode enganar-se ou não, e que portanto está basicamente livre do engano.
Está presente, é vivo, e torna-se refúgio para nós, enganados ou não.
Se há um engano, é porque há algo e alguém que se engana, portanto, este algo que pode enganar-se é a fonte de refúgio.
Como o tempo é considerado um dos enganos, usa-se a expressão "corpo de juventude incessante".
As muitas e diversas aparências surgem como os reflexos dos raios do sol na superfície do oceano. Surge a aparência da causalidade e as muitas justificativas, mas a liberdade não causal jamais se ausenta.
Este que pode se enganar, o criador, não está dividido em objeto e observador. Aquilo que pode se enganar tem uma identidade perfeita com a natureza ilimitada.
Quando cessa o engano, não podemos falar sobre objetos ou observador. Mas resta um princípio ativo que está além do transitório (e sobre o qual os madhyamikas recusam-se a afirmar, negar, ambas e nenhuma — qualquer coisa — basicamente talvez apenas porque identificam-se com o engano que tentam evitar).
Em termos vajrayana, podemos dizer que OM AH HUNG são inseparáveis.
Quando todos os objetos somem, some aquele que observa os objetos. Mas, isto não é um estado de Brahmam. No budismo são identificados quatro estados de Brahmam, uma espécie de coma cósmico, onde não há objetos aparentes, e o observador dorme um sono profundo. Mas todas as aparências estão dormentes esperando o observador acordar.
Portanto, usa-se a expressão "dança" para referir-se ao ser que não nega nem aceita as aparências mas manifesta-se em meio a elas. Não caímos nos extremos de manter uma perspectiva ou não manter uma perspectiva.
A mente fundamental e a mente da experiência sensorial são a mesma coisa.
Então surgem o ensinamento dos doze elos da originação interdependente:
Primeiro, a mente é encoberta. Porque vemos, perdemos a visão. Como o cubo de Wittgenstein, onde o vértice que está "na frente" coloca o outro vértice "para trás".
Segundo, a mente encoberta se predispõe. Após várias operações encoberta, ela tende a seguir os mesmos padrões. Quando pintamos um quadro, tendemos a colocar as cores de acordo com as cores que já estão lá.
Terceiro, a predisposição fica ciente de si mesma. O objeto nos empurra na direção dele. "Eu sou meu impulso".
Quarto, a consciência fica determinada. Aspiro elementos de estabilidade. A consciência anseia por bases de satisfação para seus impulsos.
Quinto, a mente consciente determinada se completa. Ela consegue certas bases, o embrião amadurece.
Sexto, a mente se torna triplamente definida. Surgem claramente objeto, observador e consciência. Os dezoito dhatus (as três esferas dos seis órgãos dos sentidos [cérebro e os outro cinco], seis objetos [pensamento e os outro cinco] e seis mentes [autoconsciência e os outro cinco]). O bebê está no colo da mãe.
Sétimo, experiências agradáveis e desagradáveis.
Oitavo, a mente fixa-se em algo. "Eu quero isto", "Não quero aquilo". Isto vai desde o apego sexual até o apego a ideias filosóficas.
Nono, a mente é privada. Ao conseguir o que quer, ela perde todo o resto. Surge uma busca incessante por objetos.
Décimo, a mente surge como alguém no mundo. Um novo nascimento, com base nos nascimentos anteriores.
Décimo-primeiro e décimo-segundo, sofrimento. Desde que ela sai daquele local apertado até todas as coisas que ocorrem na existência, inclusive velhice, doença e morte, tudo é sofrimento.
A partir deste processo o construtor oprime os seres. A Fonte de Tudo transforma-se em Maharaja.
A irrealidade de ambos (sujeito e observador) e a realidade subjacente a esta irrealidade, esta é a essência do absoluto. Não é uma afirmação, nem uma negação, portanto não é uma mera verdade filosófica. Nem é diferente disto. (Este é o ponto onde madhyamaka e cittamatra confluem).
Os nomes do construtor são:
• realidade indiferenciada
• objeto puro derradeiro
• base dos poderes do Buda (por compreender isto, o Buda manifesta seus poderes)
Portanto:
• nunca diferente (dos outros, por exemplo)
• nunca enganoso
• ponto focal intuído pelo Buda
E novamente:
• Para atingir o duplo eixo (Caminho do Meio, além dos extremos), para ajudar de modo duradouro as criaturas vivas, para não se deixar envolver pelas coisas, e para atingir um êxtase incessante, para isto pratica-se.
• Para purificar a linhagem, pratica-se.
• Para manter a pureza absoluta dos poderes do Buda, pratica-se.
• Esta relatividade é dupla, do indivíduo e de suas particularidades. Relatividade significa irrealidade, mas para esta irrealidade há uma absoluta que é sua contrapartida.
Portanto, nem obscurecido, nem desobscurecido, nem puro, nem impuro.
Estas foram as notas que tomei ontem em Viamão. Não entramos nos comentários, ficamos apenas com os vinte e um versos do texto raiz, de autoria de Maitreya, anotado por Asanga, aquele mesmo dos doze anos de retiro seguidos do lamber a cadela brava cheia de vermes.
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