Praya Dubia, Epitáfio
[ 11/08/2002 ] Cresceu achando que era gênio, e, talvez desafortunadamente, ninguém jamais conseguiu discordar disso com a veemência necessária. Na escola o tinham por esquisito. "Professora, aquele garoto ali não acredita em Deus". Era um agnóstico niilista, algo influenciado pelo idealismo de Green. Mas isto só até a segunda série, mais ou menos.
Pensava tornar-se físico nuclear, depois começou a achar os físicos boçais. Manteve por anos a fio a mesma opinião, ou pior, a respeito de arquitetos, pilotos de avião, e, principalmente, publicitários. Na verdade, poucas eram as ocupações humanas que não desprezava.
Pensava nada estar aquém de suas capacidades e que inevitavelmente atingiria a excelência através de qualquer de seus inúmeros talentos, mas decidiu-se pela música. Primeiro considerou a erudita, depois optou pelo jazz, e enfim pela popular. Desistiu ao ouvir Hendrix — nada poderia ir além. Por um tempo até brincou com um contrabaixo elétrico, mas não queria ser mais um maldito bass player. Seria o fim.
Dominava computadores e psicologia junguiana, recitava Blake de cor e arranhava um aramaico. Teve grande dificuldade para terminar o primeiro grau. Sabem aqueles malditos polinômios? Seu primeiro emprego foi como lacaio de um radialista influente, a quem sabotava secretamente por inveja e princípios filosóficos discordantes.
Decidiu tornar-se um artista de vanguarda. Para isto precisava ser perturbado, e para ser perturbado precisava de drogas. Decidiu tornar-se um ocultista. Para isto precisava ser um canalha, e para ser um canalha precisava ser megalômano. Isto já era. Então decidiu ser famoso, foi ainda mais fácil.
No seu epitáfio estava escrito "acho que perdi tempo", evidentemente por vontade sua. Deixou um bilhete descrevendo inclusive em detalhes a lápide e o tipo dos caracteres a serem utilizados, e os incluiu como parte de certo trabalho conceptual. O discernimento instantâneo de tomar estas precauções surgiu exatamente três segundos após completar o download da obra completa dos Neville Brothers em mp3, e mesmo isto estava ali descrito. Considerou inclusive a fantástica self-fulfilling profecy de que alguém fizesse um comentário como este com que nos deparamos.
Os escritos, que preenchiam duas dúzias de cd-roms, foram publicados integralmente por um entusiasta excêntrico, duzentos anos depois. Foram traduzidos e amplamente alterados, tanto por ignorância inocente, quanto pelas inclinações políticas em voga. O papel, porém, era da melhor qualidade, e a encadernação peculiar e magnífica. Várias cópias atravessaram os séculos, ainda que bastante ignoradas, exceto por certos colecionadores de livros raros que, ao bem da verdade, não tinham o menor interesse pelo conteúdo.
Seu fluxo de consciência surgiu em mundos oníricos como sapo, gandarva, naraka, bicho-preguiça, gafanhoto e traça, e então reencontrou um útero humano. Como obstáculo cármico residual apresentou uma escavação na retina do olho direito, que o impedia de ver certas áreas caso mantivesse o outro olho fechado. Não era muito inteligente e não gostava de ler. Jamais entrou em contato com as raras remanescentes obras textuais, musicais e plásticas de seu fluxo passado, embora certo dia tenha tido uma espécie de déjà vu de tudo isto, enquanto atendia os entregadores de gás ao interfone. Morreu de forma estúpida, por engasgamento, aos cinquenta e dois anos, numa feira de produtos orgânicos. Eu estava lá, nada pude fazer. Após alguns sonhos bons e ruins, presenciou o fim do sol na forma de um animal abissal, absurdamente lindo em sua feiura fluorescente.
being-cat-ser-gata
Livro de fotos e poesias da Gata Milady. “Milady é uma perfeita representane da essência do gato. É uma querida, afetuosa ainda que exigente. Algumas vezes ela se pergunta sobre a impostura de todas as coisas.”
Atrás do Front
Trinta e poucos episódios de um podcast que os Eduardos Fernandes e Pinheiro fizeram um tempo atrás
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