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Por que a experiência é superior à inferência?



Ilustração retirada do artigo da wikipédia em inglês sobre pramana. Ele representa a visão da Universidade de Nalanda, promovida por Dignaga e Dharmakirti ao simplificar redundâncias no pramana da escola nyaya. Esta é a teoria de conhecimento dominante no budismo madhyamaka e indo-tibetano, bem como está de acordo com os abhidharmas do hinayana, inclusive as injunções de Buda no Sutra dos Kalamas, bem como com a maior parte do mahayana.

Sua Santidade o Dalai Lama frequentemente repete que, das duas fontes válidas de pramana (epistemologia e lógica) na visão budista, conhecimento sobre as coisas mundanas e espirituais, a experiência é superior à inferência. Isto apenas quer dizer que, havendo contradição entre experiência e inferência, a experiência tem primazia, não quer dizer que não haja valor na inferência como corroboradora da experiência — muito menos deve ser lido como algo que diminua o valor da lógica e do estudo no budismo.

Embora outras escolas budistas possam ter desenvolvido (raramente) outras teorias de pramana, a que Sua Santidade subscreve é resultado do trabalho da Universidade de Nalanda, no corpus que hoje chamamos de Caminho do Meio (madhyamaka). De modo geral, os abhidharmas hinayana também subscrevem a exata mesma estrutura para pramana, e a maior parte do mahayana, inclusive a escola yogachara (que sem dúvida tem uma epistemologia totalmente peculiar em comparação a todo o resto do budismo), também segue essa estrutura de experiência ter mais valor que inferência.

No Brasil, no entanto, onde a desqualificação sobre assuntos budistas impera, começam a surgir discussões mal emendadas sobre pramana, as vinculando com aspectos do budismo modernista — que, em suas muitas variedades, pode ser efetivamente criticado por várias razões, mas não por seguir justamente um modelo de pramana muito mais comum (e fortemente justificado) no mundo budista do que qualquer outra apresentação fringe, encontrada apenas em interpretações duvidosas de textos específicos, por autores menores, ou algumas vezes, apenas pelo interlocutor e sua meia dúzia de amigos.

A própria linguagem dessas discussões é duvidosa. O uso do termo “a priori” no contexto de uma discussão budista não faz o menor sentido. Porém, entre ignorância e ausência de ignorância, a segunda, mesmo não sendo “a priori” (porque isso se trata necessariamente de uma basófia sem fim, em termos budistas, relacionados a qualquer escola, e a qualquer doutrina budista), tem precedência. Se não há precedência da sabedoria perante a ignorância, a iluminação simplesmente não é possível. (Argumentos sobre isso são encontráveis em todo corpus madhyamaka, mas não são exclusivos a ele, evidentemente.)

A sabedoria de fato é definida negativamente como a ausência inerente da ignorância. Assim como as coisas não possuem essência, e são, portanto vazias, assim como as pessoas não possuem um eu, e são, portanto, livres — da mesma forma a cognição não possui nenhuma ignorância inerente. Por que então os seres sofrem, e aparentemente surge o samsara, e aparentemente precisamos de um caminho? Porque existe ignorância adventícia, é apenas por isso que falamos de “ignorância” no budismo.

A palavra “ignorância”, do ponto de vista da realidade, é uma “história da carochinha”. Parece-nos muito real nesse momento, e daí a necessidade do caminho. Mas não o é de fato.

E, é claro, se a ignorância não é para ser substancializada ou postulada de qualquer forma definitiva, muito menos a sabedoria. A ignorância é um “cisco no olho” — a faculdade desimpedida da visão está presente, e adventiciamente algo surge que pode incapacitar parcialmente essa faculdade. A faculdade da visão não precisa ser hipostasiada, na medida em que temos a visão distorcida e intermitente por um cisco, sabemos que temos uma visão na qual o cisco não está presente. A própria ignorância aponta indiretamente seu estado negativo, a liberdade de ignorância, que por falta de melhores palavras, chamamos de “sabedoria”.

(A definição de sabedoria por uma negação é característica central da modalidade svatantrika do caminho do meio, na qual ainda existe uma pequena crença em algum grau de “substancialidade” da inferência, isto é, acreditam um pouco mais no poder da lógica do que outros madhyamikas — não mais do que na experiência, é claro, mas têm certa hesitação de afirmar a sabedoria como uma presença, por força da substancialização que efetuam sobre a natureza da lógica. Dizer algo assim, embora essa seja a experiência dos seres realizados, seria “se tornar alvo de refutações possíveis” — então eles preferem o que algumas vezes é chamado de “negação afirmativa”.)

Da mesma forma, a cognição pura, naturalmente desvinculada de filtros ou fatores compostos que a obscurecem, precisa estar presente para que de fato se torne ofuscada por fatores compostos e filtros. Se começamos com algo inerentemente sujo, a sujeira existiria inerentemente, e então não haveria porque sequer haver ensinamento budista para expressar ou reconhecer o Buda — ele simplesmente seria impossível, ou, se fosse um mero fruto de causas e condições, então não poderia usufruir de um nirvana além dos extremos. Um Buda iluminado que é formado por causas e condições é como os chifres de um coelho; mais que isso, como um círculo quadrado.

De um ponto de vista mais mundano, corrente, mas também ligado a pramana, na nossa vida cotidiana também naturalmente damos mais valor à experiência do que a inferência. Por exemplo, se contratamos um serviço para nossa casa, e o pedreiro ou encanador tem uma boa lábia, ele pode terminar o que fez e tentar nos convencer de que está bom como o serviço foi feito. Normalmente, em todo caso, examinamos por nós mesmos se está de acordo com o que pedimos. Se a privada não está funcionando, não há afirmação possível de nenhuma pessoa, nem mesmo do Deus Abraâmico, ou qualquer consequência lógica privada a que queiramos nos convencer: a privada funciona ou não funciona independente de qualquer raciocínio possível em qualquer mundo possível. Descobrimos isso, em primeiro lugar1E é apenas por isso que o conhecimento empírico pode algumas vezes ser chamado “a priori” – não precisamos de nenhuma metafísica aqui, ou fazer um uso kantiano do termo. Pelo menos não precisa quem fez “Introdução à Filosofia” no primeiro semestre., usando a privada, não por ilação, afirmações ou consequência lógica. Se ela faz o que se espera que ela faça, não precisamos de linguagem nenhuma, até um gato pode ser treinado para usar e puxar a descarga.

Outro exemplo é um exame de paternidade. Podemos estar convencidos por inferência que praticamos o coito interrompido, podemos ter toda certeza racional do mundo de que o que fizemos foi suficiente. Mas a prova empírica do teste de DNA é maior do que qualquer justificação racional possível. Contra fatos, não há argumentos. Particularmente não contra fatos justificados empiricamente por processos repetíveis. O máximo que podemos fazer é um segundo exame de DNA para duvidar do primeiro. Não interessa se alienígenas roubaram seu esperma e inseminaram a futura mãe, ou se foi uma pomba num sonho ou algo assim: se o DNA fecha, o filho é seu.

Num mundo em que vemos um ator de reality show na posição mais alta de poder do país mais poderoso, é aliás temerário dar tanto valor à linguagem. A pós-modernidade (o ápice do discurso como superior à experiência) pode ter sido inventada com certa visão política em vista, mas o outro lado se apropriou dela, e hoje temos o que é chamado de “pós-verdade”. A inferência opera com toda a fragilidade de suas fontes empíricas (não é porque o experiência é superior à inferência que a experiência é infalível) e mais as fragilidades próprias da linguagem. É por isso que, em qualquer tribunal do mundo considerado justo, fatos são considerados superiores a ilações. É apenas isso que se implica com a primazia da experiência perante a inferência, na pramana (epistemologia) budista massivamente aceita pelos budistas, histórica e presentemente.

Aliás, no ocidente, apenas filósofos, e uns poucos entre estes, chegariam a também pensar o oposto. Essa ideia não é fringe apenas no budismo: ela é fringe na cultura mundial em geral, na experiência prática das pessoas, e até mesmo na filosofia grega, alemã e britânica. Apenas haver essa maioria, é obvio, não é justificação. A justificação, porém, não é muito complexa ou controversa.

A discussão paralela sobre níveis de ignorância, ou o quanto ela pode se tornar composta e sistêmica, atingindo a percepção e linguagem e tudo mais, é totalmente desnecessária e inútil nesse ponto. Ora, basta entender que a ignorância é o objeto que a prática budista enfrenta — e se ela é enfrentável, é justamente porque surge adventiciamente e não é substancial, nada “inerente”.

O budismo apenas extende o domínio empírico à primeira pessoa, isto é, ao domínio da meditação. Essa é a única diferença. Da mesma forma, não é possível “pensar até a iluminação” — é preciso vivenciar a experiência, não apenas chegar a uma conclusão sobre as coisas. É preciso eliminar a ignorância, e não apenas gerar conceitos ignorantes sobre ela.

A questão é: nossa situação não iluminada é “a priori” (nesse sentido kantiano alienígena ao budismo, de ser imediata e sem necessidade de justificação ulterior)? Evidentemente que não, caso contrário a prática que o Buda ensinou e seu resultado precisariam necessariamente se tornar um remendo ou alteração sobre nossa natureza “inerentemente ignorante”.

Quando usamos uma expressão tal como “inerentemente ignorante”, já passamos para a composição da ignorância que leva a doutrinas embasadas em visões errôneas.

A discussão é tão mal colocada, e tão misturada, que não cabe apontar aqui os charlatões (supostamente gente com estudo) que levantam esses pontos.

Basta entender:

1. A precedência de experiência quanto à inferência é aceita por todas as formas de Caminho do Meio, por todas as formas de abhidharma hinayana, e, se não é universal no mahayana, não falta muito para ser.

2. Essa precedência, portanto, não é uma característica do budismo modernista, ou inventada e elevada pelo budismo modernista, mas sim uma característica bastante comum do budismo como praticado na maior parte da Ásia nos últimos 2000 anos. Atacar o budismo modernista por aí é comprar briga com toda a Universidade de Nalanda.2Mas, parece, “tudo bem”, um dos “brilhantes luminares” desse “budismo acadêmico brasileiro”, esse mesmo com gosto por usar terminologias tais como “a priori” em textos sobre o budismo, já chamou Nagarjuna de idiota, em público. (E eu tenho a captura de tela desse momento do budismo brasileiro.)

3. A discussão paralela sobre a precedência da ignorância perante os outros kleshas (sem levar em conta que o termo ignorância não tem sido apenas usado para traduzir avidya3Que já etimologicamente não pode ser inerente — a-, negação, vidya, visão. Isto é, ausência de visão, cegueira. A negação de algo que está presente, a visão., mas também, ao menos informalmente, para traduzir kleshas mais compostos, tais como moha), e sobre os dois níveis de ignorância (combatidos respectivamente, é óbvio, pela sabedoria reconhecida de forma empírica e por inferência) é toda irrelevante para a crítica aos elementos do budismo modernista, que eu chamaria de budismo modernista totalmente estapafúrdio e contraproducente (o de Stephen Batchelor) e budismo modernista parcialmente problemático — esse segundo, enquanto adversário de Batchelor, uma mera tentativa, entre tantas outras que existem hoje, de adaptar os ensinamentos ao mundo contemporâneo — seguindo os ensinamentos tradicionais e a plena justificação textual e acadêmica (talvez não do Japão, onde me parece quase apenas haver estudos budistas de orientação puramente colonialista e subserviente ao modelo europeu há talvez mais de um século — isto é, outra vertente de budismo modernista, bastante impopular nos dias de hoje e pelo jeito desesperadamente tentando achar seu espaço).

É uma grande pena que acadêmicos, e em alguns casos, desavisados de fora da academia, sejam expostos a visões tão parciais dos ensinamentos —, na verdade, quase teorias conspiratórias embasadas em textualidades e interpretações extremamente específicas, sem nenhum respaldo fora do estudo colonialista do budismo, e mesmo aí, sem grande respaldo.

Os desavisados, fascinados por acreditações duvidosas, e algumas vezes por mantos e carecas naturais que assumem advirem de ordenação, bem como uma rede de respeito mútuo entre boçais, entram assim numa teia de discussões e ideias absolutamente minoritárias, e que pouco tem a ver com a prática do budismo em geral, e certamente nada tem a ver muitas vezes com suas próprias práticas, embasadas em outras tradições budistas, bem mais estabelecidas e embasadas (no mundo moderno, e mesmo também historicamente na Ásia).

No espírito de tolerância não sectária, acaba-se vendo pódios sendo colocados para professores irrelevantes, que escrevem empoladamente sobre ideias que não têm espaço algum na comunidade budista — apenas em muito específicas academias devassadas pelo colonialismo e que hoje operam exatamente como zumbis dessa subserviência ao modelo europeu, e em seus próprios gabinetes empoeirados, desvinculados de uma comunidade de praticantes.

Algumas vezes o mal estar causado por essas discussões já tem se tornado evidente, mas sempre é varrido para baixo do tapete, e novos asseclas desse modelo se estabelecem.

Felizmente há praticantes budistas no Brasil, e não apenas a academia. Felizmente os estudos budistas acadêmicos vigentes no Brasil são tão embrionários e teratogênicos que ainda podem sofrer aborto natural e ser completamente reestruturados. Basta ter a coragem de não assumir como luminares gente que se mostra efetivamente ignorante quanto ao assunto.

Mas, primeiro, para tirar esse pessoal do pódio, vai ser preciso um pouco mais de gente que entenda do assunto. Neste momento, está difícil.


Bibliografia

Śāntarakṣita (autor); Mipham (comentador); Padmākara Translation Group (tradutores)(2005). The Adornment of the Middle Way: Shantarakshita's Madhyamakalankara with commentary by Jamgön Mipham. Boston, Massachusetts, USA: Shambhala Publications, Inc. ISBN 1-59030-241-9

Rogers, Katherine Manchester. Tibetan Logic. Snow Lion Publications, 2009.

Van Der Kuijp, Leonard W. J. (1987). 'An early Tibetan view of the soteriology of Buddhist epistemology: The case of 'Bri-gung 'jig-rten mgon-po'. Journal of Indian Philosophy. Volume 15, Number 1, March, 1987. ISSN 0022-1791(Print) ISSN 1573-0395

Matilal, Bimal Krishna & Evans, Robert D. (eds.) (1986). Buddhist Logic and Epistemology. Studies in the Buddhist Analysis of Inference and Language, Dordrecht: Reidel.

Wayman, Alex (1999). A Millennium of Buddhist Logic, Delhi: Matilal Barnassidas.

Dreyfus, Georges B. J. 'Recognizing Reality: Dharmakirti's Philosophy and Its Tibetan Interpretations.' SUNY Press, 1997.


1. ^ E é apenas por isso que o conhecimento empírico pode algumas vezes ser chamado “a priori” – não precisamos de nenhuma metafísica aqui, ou fazer um uso kantiano do termo. Pelo menos não precisa quem fez “Introdução à Filosofia” no primeiro semestre.

2. ^ Mas, parece, “tudo bem”, um dos “brilhantes luminares” desse “budismo acadêmico brasileiro”, esse mesmo com gosto por usar terminologias tais como “a priori” em textos sobre o budismo, já chamou Nagarjuna de idiota, em público. (E eu tenho a captura de tela desse momento do budismo brasileiro.)

3. ^ Que já etimologicamente não pode ser inerente — a-, negação, vidya, visão. Isto é, ausência de visão, cegueira. A negação de algo que está presente, a visão.

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