O Zen Canalha de Steve Jobs
Essa história não começa no Vale do Silício, mas na tentativa dos japoneses, 150 anos atrás, de reagir e lidar com o imperialismo ocidental, cada vez mais inevitável, e especialmente assustador para uma cultura de tradição tão xenófoba. No fim do séc. XIX, o que é conhecido no Japão como período Meiji, a academia japonesa, por questão de sobrevivência, resolve voltar os olhos para a filosofia ocidental, em particular a alemã, com óbvias consequências desastrosas para o mundo.
Quando conheci uma mestra zen alemã, muitas vezes na comunidade surgiam piadas quanto aos estereótipos raciais que se encontravam combinados nela. Ora, tanto os japoneses quanto os alemães são muitas vezes caracterizados como precisos, determinados e sérios. Embora a imagem do Zen no ocidente seja também de algo pacífico e espontâneo, os valores de limpeza, ordem, despojamento, bem como determinação e precisão estão muitas vezes na raiz do que alguém que procura o Zen como prática – ainda que eles espelhem, como estereótipos, apenas certos aspectos do zen e da cultura japonesa.
Como eu mesmo tenho aparência alemã e alguma genética germânica, e vivo no sul do Brasil, muitas vezes me vi na triste situação de sentar numa mesa com um bando de germânicos tupiniquins glorificando a capacidade teutônica, a qualidade da indústria alemã, e assim por diante. Muitas vezes essa conversa é entremeada com claros tons racistas, e numa ou outra ocasião, com até nostalgia pelo Terceiro Reich. Nunca tão confessa e aberta, mas o suficiente para sondar se eu também participaria de algum tipo de uber alles.
Até aí, mais ou menos tudo bem – tudo bem no sentido de que ninguém está isento de sua quota mesmo que inadvertida de racismo, pertença-se a que etnia se pertencer, e por todo lado há gente jeca e pouco esclarecida, para não dizer jumentos – não só entre os alemães.
O problema é o danado do Hegel.
Mesmo que você considere a avaliação popperiana de Hegel como Nazista injusta ou defeituosa, é certo que o filósofo representa o ápice de certa cultura alemã – que, não muitas décadas depois, por motivos que ninguém que participou daquela cultura pode se isentar totalmente, ia redundar no que redundou. A questão aqui nem é tanto apontar dedos, mas delimitar precisamente o que no pensamento alemão deu tão errado. O problema dos autores obscurantistas – que escrevem complicado – é que eles de fato podem justamente ser acusados até do que não sabemos bem ao certo que afirmaram. Acusados num sentido de genealogia das ideias, é claro.
Evidentemente que, num aspecto psicossociológico, o Deus tribal dos judeus é uma expressão de unidade étnica, e talvez mais do que isso em termos sociais. Quando esse mesmo Deus é ofertado aos gentios por Paulo, isso de início gera alguns problemas – tensões na estrutura tradicional vinculada a esse deus, a saber o Templo de Salomão. E se quanto ao judeu temos dificuldade de separar etnia de cultura, o mesmo ocorre hoje, cada vez mais, novamente com os muçulmanos – que a princípio deveriam ser, como os cristãos, encarados como multiétnicos, mas muitas vezes não são. O espírito “alemão” do fim do séc. XIX não só não era alemão como efetivamente contaminou os japoneses – e não que eles não tivessem suas propensões próprias.
Etnia e cultura estão mesmo um tanto indissociadas, mas aí vem Hegel reificar esse tal “espírito da história” – e o nacionalismo, que ele talvez nem tenha glorificado tanto (explicitamente não, implicitamente sem dúvida), resultou no que resultou.
E não imaginemos que esse seja um passo inconsequente. Há uma tendência no pensamento ocidental de neutralizar os pensadores das consequências do que pensaram, e portanto, se Hitler adorava Nietzsche, foi certamente algum mal-entendido, ou a edição racista da irmã, e assim por diante. O Nazismo é visto (e assim se projetava) como orgânico, não intelectual: nunca como um subproduto de distorções da educação alemã, e jamais vinculado ao pensamento de tantos pensadores alemães que ninguém se envergonha de ter na estante.
E não é como se que os opositores de Hegel não tenham sua parcela de responsabilidade no que se deu logo em seguida: foi, é claro, uma combinação de fatores multicausais. Ninguém se isenta.
Ainda assim, é preciso frisar: aqueles ideólogos e propagandistas “de raiz” da superioridade ariana não saíram do nada. Não são o “mal banalizado” que adventiciamente se apresenta no mundo. Foram também óbvios produtos de sua cultura.
Tanto é assim que o Japão passou pelo mesmo processo, pelo meio de, mais ou menos, os mesmos pensadores!
A partir disso podemos nos perguntar se algo da cultura japonesa também não penetrou a Europa no início do séc. XX, e misturando-se com o espírito do tempo, não intensificou profundamente o veneno do nacionalismo, a da reificação do espírito étnico, e a capacidade de impassível e indiferentemente infligir um oceano de dor sob inimigos objetificados, com alta eficiência.
Romantismo à japonesa
“Zen” é uma corruptela do termo chinês “C’han”, que por sua vez é uma corruptela do termo sânscrito “dhyana” (e que tem um homólogo numa língua antiga que é relativamente próxima do que o Buda histórico falava, o páli, “jana”). Dhyana significa absorção meditativa, ou concentração.
Quando o budismo seguiu da Índia para a China, a ênfase nessa prática e nesses ensinamentos nomeou o grupo principal de tradições que predominou por certo tempo ali, e que, juntamente com outras escolas, acabou penetrando o Japão perto do ano 1000. No Japão, o Zen passou por sucessivos períodos e reformas, estabelecendo dezenas de mosteiros com estilos próprios. O desenvolvimento mais relevante do Zen no Japão ocorreu quando o mestre japonês Dogen Zenji retornou da China no ano 1227 e estabeleceu uma forma de prática ainda mais radicalmente centrada na meditação de “apenas sentar” do que o que era comum, ao menos publicamente, na China e no Japão até então.
Dogen estabeleceu uma forma extremamente bem-sucedida de budismo que sobreviveu a sucessivos ataques de outras tradições budistas estabelecidas no Japão, e acabou moldando em muito a estética clássica japonesa, centrada no despojamento, e na natureza fresca e direta da experiência. A poesia espontânea, e os temas despretensiosos na arte – o wabi-sabi, a beleza da pátina e das coisas imperfeitas e com aparência de uso, são elementos que delicadamente expressam dhyana no cotidiano.
O ápice da estética do zen é a cerimônia do chá, uma elaborada forma ritual de convívio e conversa frugal em meio à arte (cerâmica, arranjo de flores, costura, arquitetura) e uma forma de “poesia viva”, em que tradição e vida comum se encontram. Na mesma medida que a formalidade e as “regras” de um encontro entre aluno e mestre, entre alunos ou entre mestres, são tradicionalmente extremas e detalhadas, a capacidade de expressar a realização espiritual em meio à atividade trivial é um ornamento próprio do zen.
Todo o preparo e pompa – que chegou a incluir construir um lugar específico para a cerimônia, decorá-lo, comprar ou fazer cerâmica, roupas, arranjos florais, etc. – precisavam ficar absolutamente implícitos. A estética do zen despreza a ostentação. Ao mesmo tempo em que não foge do refino e da sofisticação, toda a graça da coisa está em revelar o profundo no menos saliente – no até frívolo ou irrelevante. Em meio a toda a preparação, a todo o aprendizado ritual, é preciso acolher o convidado sem nenhum esforço aparente, e sem qualquer noção de que aquilo envolva qualquer tipo de conquista pessoal, seja na forma dos objetos (eles encantam pela simplicidade), seja na maestria da meditação e delicadeza da apresentação do chá.
Isso realmente é um tipo de expressão espiritual e artística até então completamente alienígena na Europa, em que os costumes sociais estavam profundamente dissociados da visão espiritual, que pertencia ao momento de prece, ou à Igreja.
Enquanto os japoneses se focavam na beleza de não ostentar, a renascença dava origem ao barroco na Europa – o exato oposto. O barroco era um “cada vez mais” de detalhes para esfregar na cara dos convidados o quanto de dinheiro e tempo de trabalho havia sido empregado. Quando o barroco cansou, surgiu o clássico, agora com uma elaboração mais contida, mas não menos ostensiva – e enfim veio o romântico.
Durante todo esse tempo, a Ásia já era uma realidade cultural para o Europeu. O barroco importava porcelana chinesa, e quando saiu de moda, o clássico deliberadamente ignorou (de deixou fora de moda) a Ásia e se voltou ao próprio passado greco-romano do ocidental. A Ásia volta com força no período romântico, que efetivamente encontra o zen, e, pasmem, é justamente essa combinação aparentemente esdrúxula de jovens idealistas e energéticos e a experiência superficial-feita-profunda da cerimônia do chá que vai explodir nas Grandes Guerras do séc. XX, particularmente a segunda.
A arte da guerra
Os fãs de artes marciais vão lhe dizer que elas surgiram num movimento de autodefesa pessoal de certos monges na China. Nem a Índia nem o Tibete – outros países em que o budismo foi central por um longo tempo – chegaram a desenvolver artes marciais: esse foi um fenômeno particularmente chinês, como qualquer filme do Kung-fu Panda pode lhe esclarecer.
Quando o C’han tentou entrar no Tibete, houve um debate público, e o mestre chinês parece ter defendido (foi o que os tibetanos entenderam) um caminho espiritual além da ética – já que ao meditar não há pensamentos bons a buscar e ruins a evitar. O debate foi perdido – ou, cinicamente falando, o governo tibetano obviamente achou aquela doutrina perigosa –, e não admitiu a entrada do C’han no Tibete.
Mas, de fato, todas as formas de budismo vão esclarecer que a realização está além da moralidade fabricada – e algumas chegarão a dizer que a realidade é ética, e que, portanto, um Buda é ético sem fazer esforço algum, apenas por reconhecer e estar de acordo com a realidade. É óbvio que um Buda não segue regras, ele é uma expressão completa da liberdade – e ainda assim ele nunca prejudica nenhum ser, e ele sempre pratica virtude.
Porém, é fácil confundir essa liberdade “não conceitual” com um passe livre, especialmente se uma série de autoenganos se sobrepõe e você passa a acreditar que é grande coisa, um ser realizado, e que tudo que faz está naturalmente certo pela mera justificação circular de que foi feito por você.
Para que precisamos de moralidade? Ora, mafiosos seguem um código de honra. Apenas seguir um conjunto de regras ou outro não é por si só nenhuma garantia de se estar realizando benefício. E embora o budismo valorize a defesa da vida como primeira e mais importante prescrição ética, o mahayana (a que o zen e muitas outras escolas subscrevem) dá “licença para matar” em casos raros. Quando aquela morte vai evitar em particular maior matança, aí começa a lógica do budismo bélico.
Até aí, mais ou menos tudo bem. Por uma questão de defesa maior da vida é adequado matar um que outro, nada sobre collateral damage, ou defesa de territórios. Porém quando certo entendimento equivocado do zen encontra essa doutrina, ocorre uma espécie de bomba atômica espiritual.
Considerando bem as coisas, essa doutrina, historicamente falando, nem foi tão abusada assim – ainda mais que é fácil de considerar o uso do Zen pelo Japão na Segunda Guerra também um abuso sobre o Zen, não uma mera participação do Zen tradicional, e do budismo, como conivente com tudo aquilo. Particularmente se reconhecemos que o nacionalismo japonês ganhou outro caráter e outra intensidade com os incipientes estudos de filosofia europeia, particularmente alemã.
Além disso, Zen não é bem assim uma prática óbvia, comum, para iniciantes.
O Zen é muitas vezes visto como uma prática de elite. Embora ele possa beneficiar a todos que o praticam, apenas um percentual muito pequeno daqueles que se engajam vai chegar a uma experiência maior do que o satori, um lampejo breve de iluminação. E, caso não haja o apoio de um mestre qualificado, que sempre foi algo bastante raro, é possível que o praticante acabe sofrendo por muitos anos (ou até a morte ou por vidas consecutivas, na perspectiva budista) do que é chamado de “doença zen”.
Por isso também a entrada na prática do zen, tradicionalmente, é dureza. Havia um processo de triagem muito forte operando.
Há muitos tipos de doença zen, experiências difíceis e loucuras particulares que surgem da meditação equivocada ou mal feita, mas o tipo que nos concerne aqui é uma doença zen que foi assumida pela academia japonesa, após influência romântica alemã, como o “verdadeiro zen”. Basicamente, trata-se de uma prática de meditação que cultiva profunda indiferença, usando a desculpa de uma não conceptualidade que é um mero desligamento ou estado coma espiritual – algo mais para o irracionalismo romântico do que para a “realidade como ética” do budismo.
Em certo sentido, esse faux Zen sempre existiu, ou sempre foi cooptado pelos poderosos em vias militaristas: era o Zen que transformou trechos de sutras em código samurai, promovendo uma versão extremamente errônea da noção de vacuidade. Já que tudo é vazio, você não treme ao cortar a cabeça do oponente. O Sutra do Coração entendido de forma errônea e niilista e usado como os dois zeros de 007. Todo o ideal de compaixão, indissociável de vacuidade – e vacuidade como indissociável de forma, ética, materialidade, praticidade – deliberadamente ocultada para gerar guerreiros extremamente frios e eficazes, na defesa de senhores feudais.
Por um lado, guerreiros precisam mesmo de sangue de barata – e senhores feudais precisam de segurança. Por outro lado, esses aspectos absolutamente mundanos começaram a ser confundidos com a essência do zen. E particularmente confundidos após certos japoneses se abrirem a ideias europeias.
E então temos a ideia romântica do resgate do passado glorioso misturada com o romantismo irracional – que projeta no zen não conceitual sua verve extrema – e enfim o cultivo de uma determinação “de aço”, e indiferente ao máximo. Carma? O futuro é só um conceito, baby, o lance é limpar o sangue da espada e seguir em frente.
Velho-oeste do cão.
Adicione a isso um bocado de anfetamina (literalmente), e se tem como resultado a blitzkrieg e os kamikazes. O mestre e inspiração dessa prática de fúria gélida, ao estilo samurai, é o Imperador/Führer, que representa o espírito da raça, e a guerra passa a ser uma coisa na qual você age sem sentimentos, sem julgamentos, impassível como se em meditação zen. É o encontro do Volksgeister (espírito da tribo) com a doença zen.
Nações inteiras sofreram dessa doença Zen, e não foi mole.
O valor absoluto aqui acabou sendo o nacionalismo: enquanto pessoas, nossos sentimentos e empatia são irrelevantes para fins bélicos. A tradição do Buda, esqueça – o eixo é o imperador. Se não é justo culpar a filosofia alemã ou o zen pelas atrocidades, é absolutamente crucial reconhecer a influência dos dois elementos, distorcidos e misturados em proporções diversas, tanto no Japão quanto na Alemanha da Segunda Guerra.
(E, não se preocupe, chegaremos ao Steve Jobs.)
Três Sabores de Doença Zen
O budismo em geral usa uma classificação de emoções aflitivas básicas compostas por três elementos básicos: aversão, cobiça e indiferença. A guerra usou essencialmente dois tipos de doença zen, as ligadas à aversão e à indiferença. Claro que já havia cobiça na conquista de novos territórios, mas a doença zen mais ligada à cobiça vai proliferar forte apenas no contato com a cultura dos Estados Unidos pós-hippie, 20 ou 30 anos depois.
O zen chega aos EUA e se populariza no mundo na sua versão romântica, misturada com filosofia alemã, principalmente nas mãos de D. T. Suzuki, mas também nas de seu discípulo Alan Watts. O que era sóbrio, absolutamente discreto e restrito – quem queria vivenciar o zen no mosteiro muitas vezes precisava ficar três dias passando fome e sede na porta até ser aceito – passou a ser exposto em palestras públicas cheias de hype, em universidades cheias de jovens maconheiros descolados.
Embora D. T. Suzuki seja acusado de nacionalista, e, portanto, como estando de acordo com a opção militarista que o Zen tomou e promoveu na Segunda Guerra Mundial, a acusação mais óbvia em retrospecto é a de que ele não era budista, nunca praticou seriamente o Zen, e nem entendia muito do assunto. O que ele propagou foi uma versão diluída e popularesca do Zen estabelecida na academia japonesa (que pouco tinha a ver com a tradição viva do zen preservado em seus mosteiros, e mais a ver com contos folclóricos sobre samurais).
A chamada “Escola de Kyoto”, a mesma que influenciou o militarismo e o zen a se encontrarem na Segunda Grande Guerra, e que tinha relações mútuas nem sempre tão abertamente assumidas com Martin Heidegger – alguém que hoje cada vez mais se reconhece, era bem nazistinha.
Se o Zen da escola de Kyoto no Japão era confessamente uma mera influência – algo de que filósofos se apropriam de acordo com seus critérios, mas que não subscrevem –, nos EUA e no resto do mundo, a partir dos anos 1950, D. T. Suzuki subverte a lógica da influência e basicamente cria um Zen reescrito pela filosofia acadêmica, com influência europeia. Zen, como uma reportagem da Newsweek da época bem colocava, para fascinar o homem de negócios do pós-guerra.
Aqui o Zen é pronta e orgulhosamente dissociado do budismo, sendo então ligado mais fortemente, ora vejam, justo ao volksgeist Japonês. Mas essa independência do espírito japonês perante o budismo é oferecida aos “gentios”, agora vencedores da guerra, como mera estética despojada, nada realmente nipônico. Qualquer um que viva o zen como uma experiência usufruirá a “não mente”: um objeto irracionalista, contra o discurso – embora seja expresso em miríades de livros e palestras bastante populares.
O mundo está complicado demais, mecanizado demais, e a opção não é descomplicar o mundo ou humanizá-lo, a opção é encontrar uma posição interna de indiferença que nos permita operar em qualquer condição – e tirar o melhor proveito. O indivíduo “puro” do faux Zen romântico é aquele que aniquila sua subjetividade em pura experiência, sem consideração para com nada ou ninguém – já que esses detalhes todos são apenas máculas conceituais.
O proveito do praticante de tal haraquiri mental nem é algo no futuro, mas a experiência direta, não enganada por conceitos tais como externalidades, ou os sentimentos dos outros.
E é nesse momento que Don Draper – cujo chefe na agência de publicidade já misturava Ayn Rand com estética zen – senta para meditar e vislumbra a propaganda hippie da Coca-Cola. O mesmo momento em que o jovem – finalmente – Steve Jobs bate na porta de um mestre Zen vivendo na Califórnia para dizer que acha que é um ser iluminado.
Hype: clean, funcional, brilhante
O recente documentário sobre Steve Jobs O Homem na Máquina enfatiza um bocado a espiritualidade de Jobs, e sua conexão com o Zen. O título é uma ironia com a ideia do “fantasma na máquina”, isto é, uma crítica da noção dualista em filosofia da mente – em que um espírito autodeterminado animaria um corpo determinista.
O nome dos produtos da Apple, com seus “i” minúsculos no início, representam o oposto: um produto com o qual o usuário se identifica no nível mais basal, em outras palavras, o que se consome é a si mesmo, não apenas uma extensão de si mesmo ou uma ideia de si mesmo na forma de uma marca.
E ponha despersonalização nisso em ter que dar dinheiro para uma empresa em troca de uma identidade! Outros produtos nos degradam oferecendo felicidade, a Apple foi um passo além – reconhecendo nossa despersonalização, vende não só uma ideia de nós mesmos, mas tudo que consideramos ser, aquele objetinho espelhado pelo qual filtramos nossos relacionamentos com os outros, até precisar recarga.
Uma das doenças zen possíveis é confundir as noções budistas de vacuidade e ausência de identidade com uma mera ausência, da qual o ego se apropria. Nagarjuna no seu Dissipador de Disputas disse “aqueles que transformam a vacuidade em uma visão [uma tese ou objeto de conhecimento ou realização espiritual] são incorrigíveis”. Em outras palavras, o que deveria ser um forte reconhecimento de interdependência e compaixão se torna uma forma de isolamento profundo.
Isso se espelha na ausência de identidade de um fanboy que busca sua personalidade em um dispositivo de massa, e que ignora ativamente todo o processo de exploração de trabalho e impacto ambiental de seu ato – que é uma combinação sinergística de consumo e propaganda simultâneos. Isso sem que entremos nas críticas neoluditas da sociedade de informação, e em sobre como ela nos isola – de que a doença zen de Steve Jobs teria apenas culpa parcial.
Porém, efetivamente, consumir Apple não é apenas comprar um produto, é entrar num processo de “assinatura” da cultura de obsolescência programada, bem como penetrar um “ecossistema”, em que se passa a depender cada vez mais da empresa. Milhares em fila em busca de participar do sonho, e comprar um objetinho que reifique a si próprios – não só como o cool – e cada vez menos como o cool – mas como finalmente alguém.
E, nesse caso, o volksgeist vira o espírito da empresa, o que copia a tão elogiada estratégia, ora, japonesa! de transformar a empresa em alguma espécie de santuário.
A ironia segue no fato tantas vezes apontado de que os revolucionários acabam se apropriando dos métodos do regime totalitário que venceram. A campanha publicitária do lançamento do Mac em 1984 foi seminal em um tanto de formas – eu, como menino em Porto Alegre fui afetado – talvez tenha lido 1984 pela primeira vez por causa da Apple. A primeira piada é que o inimigo verdadeiro, naquela altura, já era a Microsoft – a IBM estava em vias de se tornar relativamente irrelevante. E trinta anos mais tarde, a Apple estaria na exata mesma posição que IBM e Microsoft ocuparam: líder de mercado, ditadora de tendência, com uma postura corporativa desprezível.
E claro, o Big Brother era ninguém mais do que um sujeito que usava as vagas de deficiente, num veículo sem placa – ora, que adoráveis essas idiossincrasias do guru! Vestido de jeans e camiseta pretinha básica, em busca do minimalismo, expressando o minimalismo – o período Edo plastificado de modernidade – e rodeado de asseclas por todo lado louvando seus poderes de “campo de distorção de realidade”. Agora que o hype passou um pouco, começam a vir os depoimentos que revelam que Steve Jobs nunca superou a canalhice de embolsar uns poucos dólares do amigo, e único verdadeiro gênio da história da Apple, Steve Wozniak.
E as conquistas de Jobs? Jobs foi um grande marqueteiro e animador de torcida, e, na área de liderança sádica (mas efetiva), realmente revolucionou. Puro romantismo alemão – que na raiz era contra a tecnologia – se apropriando da tecnologia como valor, ora, espiritual. Jobs queria transformar o mundo, mas não só isso: supostamente ideologicamente neutro, limpo de teorias como o minimalismo zen que esposava, ele fundou a primeira empresa que funciona como um culto.
É preciso ir além da publicidade altamente interdependente da Apple: eles estão vendendo um produto a que você se reduz – que você reconhece como sua expressão –, diretamente vindo de um Yoda lendário que prega a liberdade do espírito humano. E não é necessário, é claro, pensar que ele era na verdade um Darth Vader – precisamos é acordar desse campo de distorção da realidade que é mera propaganda. Se achamos canalhas as Igrejas que transformam a fé num produto, precisamos também reconhecer como canalhas as empresas que transformam um produto em fé.
“Sucesso” é um termo elusivo de definir. Edison também foi um canalha, e algumas de suas canalhices nos seguem até hoje em especificações canhestras de distribuição de energia elétrica. Da mesma forma que o nerd esperto saca que o herói era Tesla, não Edison, quem curte Jobs está por fora de Woz ou Dennis Richie. Porém, se “sucesso” é medido como “ter grande influência sobre o mundo”, é óbvio que Steve Jobs foi bem-sucedido – ninguém negaria isso. A questão aqui é o quanto de propaganda há nessa lenda, e o fato simples de que não podemos visitar a realidade paralela em que não houve um Steve Jobs para saber o que teria acontecido – e se medir o beneficio em termos de grandes mudanças sociais é temerário com séculos de afastamento, imagine em meio a eles.
Porém o certo é que todas as maravilhas dessa era são ambíguas: cada uma delas trouxe – de acordo com a doutrina budista de dukkha, insatisfatoriedade – problemas correspondentes.
E, enquanto isso, a doença zen segue na cultura, agora na forma da meditação como um produto. O movimento mindfulness se apropria de uma técnica de “não julgamento”, que em muitos sentidos carrega os mesmos problemas de indiferença quanto a suicídios em fábricas chinesas que afetava Jobs. Tanto é assim que ela é aplicável para atiradores se concentrarem melhor – exatamente como na época dos samurais. Sem falar do próprio ambiente corporativo, e em particular do Silicon Valley.
Produzir mais, subir na vida, conseguir ficar feliz com o mundo pegando fogo ao redor. E meditar não para reconhecer a natureza da realidade, que é de profunda interdependência, mas apenas para não tomar remedinho e seguir destruindo o mundo com completa indiferença.
Novamente o argumento é “vamos descartar essas ideias religiosas de budismo e vender o cerne da coisa”, que passa a ser essa doença meditativa de cultivo de impassibilidade. Ora, é claro que, se um incêndio está ocorrendo, e você precisa salvar um gatinho preso no prédio, ser impassível vai ser uma qualidade boa – com o adendo de que estamos falando de impassibilidade quanto às chamas, não quanto ao gatinho. Porém essa desconexão desapaixonada com o mundo tem um contexto, e esse contexto é o contexto da profunda interconexão. Só que parece papo de religião, daí a propaganda do produto mindfulness não aceita tão bem.
O próprio Jobs poderia ter se deparado com um mestre autêntico: havia Zen não corrompido por D. T. Suzuki e romantismo alemão na Califórnia já naquela época – e o movimento mindfulness estava só começando. Porém faz parte da lenda aumentar uma conexão ao estilo Karatê Kid com ensinamentos asiáticos, e é claro que Jobs, como todo mundo na Califórnia no seu tempo, leu Alan Watts e D. T. Suzuki, e brincava mentalmente com ideias asiáticas de iluminação. A estética do despojamento e da ocultação da complexidade foram sem dúvida grandes influências em seu trabalho. O quanto efetivamente se relacionou com a tradição e meditou, aí é mais difícil estabelecer. Pelo resultado, podemos inferir que, na medida em que houve contato com o zen, foi com essa forma bastarda, romantizada e desprovida de contexto.
Heidegger e a Escola de Kyoto, como os catadores de lixo em Goiânia que em 1987 acharam uma máquina de radioterapia cheia de Césio 137, violaram o Zen e ficaram fascinados pela substância fluorescente e colorida que encontraram. Uma substância extremamente benévola se propriamente aplicada, e no contexto certo, mas terrivelmente perigosa se mal empregada. Os catadores de Kyoto e da Alemanha infelizmente não sabiam do que se tratava – apenas acharam bonito. E assim contaminaram toda a cultura com indiferença radioativa.
Textos e vídeos sobre assuntos relacionados:
◦ Slavoj Žižek: Velhacaria Hipster (a versão em inglês é maior)
◦ MacMindfulness, meditação com marca registrada, texto de Padma Dorje em tzal.org
◦ O budismo do fascista diferentão, vídeo no Canal Tendrel
◦ Zen e fascismo, vídeo no Canal Tendrel
◦ Qual o problema com Alan Watts?, texto de Padma Dorje em tzal.org
Filmes e documentários relacionados:
◦ Steve Jobs: The Man in the Machine
◦ Rikyu
Livros relacionados:
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◦ McMahan, David. The Making of Buddhist Modernism, livro em amazon.com.br
◦ Page, Daizen Victoria. Zen at War, livro em amazon.com.br
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