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O sentido do termo “reificar”


Primeiro, a etimologia. Estritamente falando, este termo vem do marxismo. Verdinglichung, que literalmente quer dizer “fazer ser uma coisa”, sendo que o termo coisa aqui é o importante, Ding, alemão assemelhado ao inglês thing, que se torna o latim res, de termos como réu, real e república.

Ainda que o termo tenha origem no marxismo, sua etimologia e sentido se mostraram valiosos nos mais variados campos, sem conexão explícita, ou mesmo implícita, com a teoria marxista.

Mesmo assim, é bom explicar, na teoria marxista, reificar se referia a transformar relações sociais, especialmente às ligadas ao trabalho, num objeto – ou, no caso específico das relações do trabalho, mais que um objeto, uma commodity: em um bem, um objeto de valor. Assim, um exemplo bastante evidente da reificação marxista é o termo “recursos humanos”, se referindo aos trabalhadores de uma empresa como uma forma de patrimônio, e não como pessoas.

Isso, segundo a teoria marxista, é um dos processos da alienação entre o que é produzido e quem produz.

Em teoria feminista, o termo objetificação é preferido, embora o sentido seja basicamente o mesmo. É ver uma mulher ou um foco de desejo como um objeto a ser possuído ou utilizado para satisfação própria, e não como um ser humano com uma subjetividade sua. É de fato, transformar um sujeito em objeto.1Isso ironicamente inverte a lógica da filosofia cristã medieval, em que o sujeito era Deus, e os objetos todos nós, tornados sujeitos também pela força de Deus. Essa visão das coisas na filosofia cristã, acabava definindo os animais, por exemplo, como não sujeitos. E também por isso, a mulher, ou outros povos que eventualmente eram considerados “mais animais”, na dependência de motivações humanas, econômicas e políticas, podiam ser tratados como objetos na medida em que eram secundários ao homem cristão.

Em psicologia, por extensão, a reificação pode ser uma forma de justificar a falta de empatia. Por exemplo, um soldado, ao atirar no inimigo, pode mentalmente transformá-lo em um animal, um inseto, ou um objeto inanimado, um jogo de cores que aparece a sua frente. Dessa forma, desumanizando o oponente, a tarefa de atirar fica mais fácil. Caso ele pare para olhar o rosto, a expressão de sofrimento, e reconheça o oponente como um ser humano, dotado de um histórico humano, uma família, idiossincrasias e sonhos e tudo mais que implica uma subjetividade, atirar fica mais difícil.

Assim, reificar tem o sentido de “tornar simples matéria”. Reduzir à mera coisa – com valor, sem valor, não importa. O termo também funciona na direção oposta, em reificar algo que é inanimado, como a noção de “mercado”, como se fosse uma entidade sensível — algo que se mostrou dramático quando a noção de “corporação” ganhou direitos civis concedidos pela suprema corte estadunidense, nos anos 00.

Com base nesses entendimentos podemos identificar vários níveis de reificação. Um atirador pode reificar um oponente como caça. Um caçador pode reificar a caça, geralmente um animal, como um objeto inanimado. O vendedor pode reificar o objeto inanimado com um valor. E o comprador reifica o objeto inanimado com um sabor e o estômago cheio. O final do processo é “mera matéria”. Podemos falar na alienação inerente à carne embalada no supermercado, onde não se vê a vida do animal, muito menos sua morte. Apenas o produto, a coisa que demanda um valor para ser consumido.

Este é o processo também pelo qual etnias e povos são muitas vezes explorados e em alguns casos pode justificar ou incitar o genocídio. A propaganda nazista sobre os judeus os transformava em insetos nojentos a serem eliminados, e, de fato, o processo de extermínio acontecia como se usa inseticida para combater uma praga. O imigrante é transformado numa coisa de menor valor, numa coisa amedrontadora, numa coisa repelente, e assim por diante. Enquanto isso, o sofrimento ou a subjetividade própria dessas pessoas e povos são ignorados.

O termo reificação também foi apropriado, com sentido mais neutro, nas áreas de psicologia Gestalt, ciência da computação e da representação do conhecimento, linguística e estatística e nas traduções do budismo. Em psicologia Gestalt, é simplesmente a percepção de um objeto parecer ter mais espaço do que efetivamente ocupa. Na ciência da computação e representação do conhecimento, é como um modelo de dados ou de fatos e afirmações se configura, em detrimento de outros modelos possíveis. Em linguística é utilizado no processamento da linguagem natural, quando se faz a redução de uma sentença a variáveis quantificadas que representam suas ações ou eventos (quando a sentença é reduzida a um modelo particular de representação da sentença). E em estatística é o uso de um modelo idealizado para fazer inferências com base em modelos que surgem de observações experimentais.

Reificação tem como sinônimos parciais, além de objetificação, realização (no sentido de tornar real um potencial), hipostasiação e coisificação.

Hipostasiar é considerar uma abstração, uma ficção ou um conceito como se fossem coisas reais (concretamente existentes), ou transformar a lógica em uma espécie de substância. Também atribuir realidade absoluta a uma coisa relativa. Portanto, bastante semelhante a reificar, em quaisquer sentidos, apenas que hipostasiar é meramente perceber ou considerar como se fosse material, e reificar é ativamente materializar. Então alguém pode hipostasiar e logo em seguida passar a fortalecer essa consideração do abstrato como real, e assim, vai “fazendo a coisa ser real” – é não só a percepção, mas a intenção associada a essa percepção, e a força de hábito ligada a essa intenção, consciente ou inconsciente.

O budismo adaptou reificação como fez com outros termos da filosofia (tais como fenômeno e iluminação), e é claro, há um sentido específico do termo que surge no contexto da filosofia do caminho do meio, ou madhyamaka – bem como em treinamentos meditativos específicos que surgem no contexto da madhyamaka.

Em tibetano há alguns termos que são traduzidos como reificação, os principais são: ‘dzin pa (dzinpa), dngos por zhen pa (ngopor zhenpa, ou simplesmente ngozhen) e sgro btags (drotag).

Dzinpa (aharanha ou udgrahanha) é “apreensão”, o que em inglês se traduz comumente clinging ou fixation, e que em português algumas vezes se traduz como fixação, ou agarramento (embora len pa, upadana, o nono elo da originação dependente também seja comumente traduzido como clinging). Ela tem uma implicação de autocentramento, de “guardar para si”, então tem um sentido mais neutro quando se fala em termos de memória ou cognição simples. É algo que é apreendido, ou até mesmo, quando algo é entendido. “Captei”.

O sentido menos neutro diz respeito ao fato de que, quando temos uma percepção, perdemos todas as outras. A liberdade natural da mente se perde. Agarramo-nos aos conceitos e às percepções, e as transformamos num refúgio, ou, porque agora “são nossos”, são mais importantes – algo que se vê facilmente em qualquer caixa de comentário na internet.

Muitas vezes, pouco importa se um argumento melhor ou mesmo um fato contradiz o que dizemos, o fato é que nos identificamos como a pessoa que disse aquilo, e é isso que somos. Aquele que disse aquilo. Entregamos a nossa ação anterior e a nossa recente interlocução, todo o poder sobre nossa subjetividade (e isso é o que se define por total ausência de liberdade!). Tornamo-nos “aquele que disse x”. Estar errado parece até mesmo doer. E então, muitas vezes, mesmo já sabendo que estamos errados, usamos a estratégia do marido que trai, e negamos até o fim.

Isso quando não nos autoenganamos, ou uma mistura ainda mais dolorosa e confusa das duas coisas.

Porém, dzinpa é a mera apreensão, a mera reificação básica de algo como retido e “processado” pela cognição. Quando isso ocorre, há uma cadeia causal embasada em hábito que leva a essas fixações subjacentes, e enfim ao autocentramento e a noção de identidade como a de “alguém que detém aquilo”.

Claro, aqui o exemplo de um conceito ou uma conclusão a que chegamos ou expomos é só um aspecto de dzinpa. Dzinpa também diz respeito a preferências, e enfim qualquer coisa que justifique nossa identidade autocentrada começa com dzinpa, ainda que nem toda dzinpa vá necessariamente levar aos passos subsequentes até o fortalecimento do autocentramento.

E já que falamos em objetificar e em feminismo, o feminicídio é cometido por muitos homens por que toda sua identidade está embasada naquela relação. Ele é aquele que está com a sicrana. A sicrana por qualquer motivo decide seguir independentemente sua vidinha, porque ela tem outras coisas para fazer, mas o homem unilateralmente embasa todo seu sentido de identidade naquela relação.
Se formos perguntar para ele se ele objetificava a mulher, ele vai dizer que não. Porém, ele a reificava como uma posse, e objetificava a si próprio como dependente, e atribuía ao objeto todo seu sentido e motivo para existir.

Assim, quando o “objeto” se mostra algo que sempre foi, mas que não era percebido, independente, o homem se sente violado ao ponto de ir lá e matar a mulher. Esse é um exemplo um tanto extremo das consequências de algo que começa com mera dzinpa, e é a reificação da própria identidade ou do próprio sentido de existir com base em um relacionamento.

Uma pessoa com menos reificação sobre a relação como “razão de tudo” (e veja, ela nunca foi a razão de tudo, mas a mente foi se treinando para ver assim, momento a momento naquela relação), diz simplesmente “a fila anda”. Ela tem menos fixação, ela é menos apegada. Como ela é menos apegada? Ela reificou menos, ela investiu menos fabricação arbitrária sobre aquela relação.

O termo “reificação” também parece ter um sentido progressivo de solidificação, de fortalecimento de tendências e hábitos com o passar do tempo. Dzinpa surge aparentemente inócuo, então pode parecer algo que fortalece a relação, “matei por amor”: não – matou por uma confusão que solidificou a relação como algo integral a seu senso de identidade, e que você também confundiu e solidificou, vez após vez, como “amor”, sem realmente olhar para as necessidades do outro.

Drotag é mais filosófico e mais parecido com hipostasiar. É colocar algo a mais em uma conclusão ou conceito, algo que não está lá. Como um pré-conceito, a sobreposição de pressuposições. É a “tigela cheia”, já que está formulado de um jeito, não vai ver a formulação como ela é mesmo. Tem uma agregação de sentidos arbitrários sobre um entendimento. Então vira algo que não é, mas mais do que um mero erro, é uma adição, é dizer algo que não está propriamente ali.

Digamos que alguém lê nas entrelinhas algo que não foi dito nas entrelinhas. “Quando o Pinheiro disse x, ele estava se referindo à situação y, que aconteceu com z.” Mas o pinheiro só disse x, ele, nesse caso, nem pensou em z. Mas o leitor, sabendo que o Pinheiro gosta de falar nas entrelinhas (o que é culpa do Pinheiro), hipostasia y e z num caso específico em que o Pinheiro não está agindo como o usual.

Houve uma época que eu respondia e-mails com uma frase ou dístico no final, que o computador escolhia aleatoriamente entre cerca de 500 num arquivo de texto. Porém, quem recebia a mensagem não sabia que era o computador que designava, aleatoriamente, o que ia ali no fim. Claro que pensavam que era uma mensagem minha, provavelmente fazendo uma admoestação qualquer quanto ao comportamento daquela pessoa. Como as frases eram efetivamente aleatórias, e eram escolhidas por se aplicar a todas as pessoas, elas sempre encaixavam, mas havia essa hipostasiação de que eu as teria escolhido naquela circunstância para aquela pessoa. Isso nunca foi o caso, mas dezenas de pessoas assumiram que eu fizesse isso, escolhesse a dedo uma citação para lhes dar alguma lição moral.

Mas o termo mais apropriado como cognato etimológico de reificação é ngozhen. Existe até uma noção meio mágica que é uma extensão do termo que seria uma “forma-pensamento”, que é fazer o estágio de desenvolvimento (que usa a mente para visualizar a deidade) ao ponto em que a deidade se manifesta. Isto é, visualizar até manifestar. Mas esse é um “sentido por extensão”. O sentido próprio de ngozhen é justamente se fixar em algo como se fosse real, fazer de algo uma coisa real. Como esse sentido existe, a materialização de uma visualização também é chamada pelo mesmo nome, um exemplo dramático.

Na “não ontologia” da madhyamaka, só há aparências. Quando o budista se refere à realidade, tatata, ele está se referindo a uma aparição fantasmagórica sem base. Uma rede interdependente de causas e condições sem nenhuma causa arbitrariamente exposta como mais importante. Sem nenhuma metafísica, no sentido de não haver nenhum substrato ou substância subjacente, ou mesmo teoria ou formulação sobre o que existiria “por trás das aparências”. Meras aparências.

O filósofo logo afirmaria que, se só há aparências, então essa é a realidade como ela é, então não faz sentido falar em aparências. Falar em aparências só faz sentido se há algo além das aparências que é efetivamente real. Se “só há aparências”, não há nada real. Não há uma coisa, seja objeto, seja sujeito. Mas o budista não nega que “algo esteja aí”, e aí o filósofo e o budista concordam, isso que está aí é a “realidade”.

No entanto o budista fala em aparências porque, na visão ignorante, na visão deludida usual dos seres, no “engano em massa” em que o budista acredita que os seres normais operam, nós reificamos. Isto é, transformamos as aparências em algo mais do que elas são. Efetivamente nossa mente é habituada a trabalhar em termos de substratos internos e externos, e tudo, a língua, a cultura, os órgãos dos sentidos e tudo mais, operam sob esse engano. Por isso existe o Buda, que reconhece a irrealidade inerente de tudo independente destes filtros.

Porém, como isso pode soar niilista, já que botamos tanta fé nessa coisa que chamamos de “real”, e que outros até chamam de “deserto do real”, que quando não reificamos, parece que perdemos algo. Porém, o Buda é simplesmente livre de todas essas preconcepções, e assim ele pode ajudar os seres e manifestar qualidades extremas, tais como a compaixão imparcial. Não reificar, como nos exemplos acima, é ver tudo com potencial pleno, e ver tudo com compaixão absoluta. Vacuidade e compaixão são exatamente a mesma coisa.

Absolutamente nada é objetificado, nada é coisificado. Tudo é uma expressão de sabedoria, exatamente por não repousar em nenhum lastro. É uma forma de “marxismo ontológico” (ou mais precisamente “não ontológico”), onde os fenômenos não pertencem a nenhum ser ou substância.

Isso até é claramente explicitado na forma de uma riqueza que é inerente a cada um de nós, uma capacidade inerente para a não-exploração, e uma capacidade inerente de generosidade absoluta.

Na prática, em meditação atingimos uma satisfação que não se embasa em causas e condições. Que não é esgotável, ou objeto de competição. A meditação é a mais barata forma de existir no mundo; a forma mais livre de impacto e exploração dos outros, ou de recursos. E ainda assim, ela nos retorna com dividendos gordos a mais-valia infinita dos verdadeiros feitores que têm nos escravizado por vidas incontáveis: nossos hábitos mentais, nossas tendências à reificação.


1. ^ Isso ironicamente inverte a lógica da filosofia cristã medieval, em que o sujeito era Deus, e os objetos todos nós, tornados sujeitos também pela força de Deus. Essa visão das coisas na filosofia cristã, acabava definindo os animais, por exemplo, como não sujeitos. E também por isso, a mulher, ou outros povos que eventualmente eram considerados “mais animais”, na dependência de motivações humanas, econômicas e políticas, podiam ser tratados como objetos na medida em que eram secundários ao homem cristão.

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