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O espaço e o tempo da prática



Afrescos to “templo secreto” do 5o Dalai Lama, o Lukang

Apesar da tentativa de Pierre Hadot de falar da filosofia em termos de “exercícios espirituais” – a noção do cultivo deliberado de qualidades, religiosas ou não –, quando chegou a existir no ocidente, e enquanto não foi esquecida ou subestimada, jamais se comparou aos extremos de engajamento e detalhe das formas asiáticas. Em certo sentido, o estereótipo ligado a artes marciais e autodesenvolvimento vem exatamente dessa mesma verve que, em suas viagens de conquista, Alexandre “o Grande”, encontrou, achou inusitada, e chamou de gimnosofismo. Isto é, possivelmente algo similar ao que hoje uma pessoa educada entende por ioga, uma mistura bem literal de cultivo intelectual e moral com atividade física. Uma ideia de não separação de corpo, fala e mente em termos do que podemos chamar de certas “mudanças deliberadas de hábito”, que os gregos acharam muito chique e logo resolveram copiar, com poucos resultados.

Falamos, é claro, em um “católico praticante”, mas o que entendemos por isso? É alguém que vai além do mero discurso e se dispõe a botar em prática as próprias crenças – walk the talk – isto é, não só ficar falando sobre bondade ou fé na trindade, mas aplicar efetivamente o que acredita nas ações no mundo. No budismo, embora ser honesto e ter o discurso de acordo com as ações é claro seja também muito importante, não é exatamente isso que se quer dizer por prática.

O termo bhavana, que muitas vezes é traduzido como “cultivo”, significa literalmente quase como criar, ou tornar manifesto. Enquanto isso, o termo ioga significa “união” – o que tem vários sentidos, mas neste contexto, podemos frisar a união de corpo, fala e mente. Isto é, não só precisamos falar sobre compaixão, e agir de acordo com o que falamos, mas percebermos que meramente querer ser mais compassivos não é suficiente. Essa distância entre discurso e ação não é uma mera questão moral, uma mera falta de vontade – o budismo reconhece que as forças de hábito são muito arraigadas, e que manter certos conceitos em mente por alguns instantes, por melhores que sejam as intenções, não faz nem cócegas nesses hábitos.

Dhyana, absorção ou meditação, é um treinamento em estabilidade que usa a estabilidade do corpo como base para a estabilidade da mente. Se a ideia é estabilizar compaixão, precisamos de uma mente estável, o que se obtém com um corpo estável. Assim, prática, cultivo, meditação, ioga são todas palavras que se referem ao mesmo tipo de esforço sistemático que nos fazer ir além do “querer querer”1 “Eu queria ter compaixão, e, às vezes, pior que isso, eu queria querer ter compaixão., ao integrar, unir (ioga), estabilizar e fixar o darma enquanto hábito com nossa experiência pessoal.2Além de bhavana, ioga e dhyana (tib. samten, jap. zen), há termos que algumas vezes associamos à prática, como “treinamento da mente”, “contemplação” ou “práticas contemplativas”, e outros. Num sentido amplo, prática e treinamento da mente são sinônimos, no entanto, da mesma forma que o termo “zen”, uma prática genérica comum a todo o budismo (dhyana), se tornou o nome de uma tradição ou escola, quando se usa a expressão “treinamento da mente”, no mais das vezes estamos nos referindo a certas práticas específicas propostas por Atisha, como a aplicação em mudança de hábitos que refere, por exemplo, a fazer o exercício de trocar de posição com outras pessoas, e ver pela perspectiva de como sua autoimportância se aplica agora a outro ser. Por outro lado, as práticas de contemplação e reflexões, embora possam ocorrer no mesmo espaço formal, com o uso de certas posturas, e com marcação de tempo — e também certamente se aplicam ao âmbito informal — e embora muitas vezes se subsumam ao que aqui estamos chamando de prática, muitas vezes igualmente pertencem ao que se chama de estabelecimento da visão, estritamente uma preliminar para a prática.


Tudo já está presente, só falta evidenciar

Na visão budista, particularmente nas visões do caminho do meio (madhyamaka) e da escola da prática (yogachara) (união das quais representa o todo da base mahayana do budismo tibetano), essa manifestação de qualidades bhavana, estabilidade nelas dhyana, e integração completa ioga, não ocorre porque nos falte qualquer coisa. Todas as qualidades já estão totalmente presentes na natureza de buda, que é comum a todos os seres sencientes. Só nos falta fazer evidenciar isto. Não há realmente criação alguma acontecendo, mesmo porque tudo que é criado possui o defeito das três marcas (insatisfatoriedade, ausência de essência e impermanência), e qualidades tais como a compaixão, como expressões da natureza de buda, estão além do “ciclo de existência” – onde as coisas surgem e desaparecem –, o tal samsara.

Ainda assim, essa expressão completa das qualidades de um buda não parece ocorrer naturalmente, espontaneamente ou sem qualquer esforço. De fato, para a maioria de nós, mesmo um ínfimo ato singelo de generosidade parece vir cheio de hesitações, dúvidas e tensões – como se fossemos um mecanismo enferrujado rangendo para reconhecer que aquela nota de dez reais não é realmente parte crucial de nossa identidade ou fonte verdadeira de segurança. Quando um relacionamento se desfaz, quando algo útil quebra, quando ficamos doentes, mesmo sabendo sobre impermanência ou a natureza cheia de sofrimento das coisas compostas, dizemos “que droga, porque isso precisa acontecer comigo justo agora?” Então, além do sofrimento ordinário, mesmo estando supostamente saturados de darma até o topo da cabeça, não resistimos adicionar um sofrimento extra e chafurdar no coitadismo. De onde vem esta incapacidade de repousar na verdade, mesmo com a cabeça cheia de ideias muitas vezes até boas?

Na visão de todas as formas de budismo, a separação entre o evidenciar espontâneo de qualidades e nossas tentativas desajeitadas presentes vem do que chamamos de impedimentos e obscurecimentos. Ao longo de vidas incontáveis temos desenvolvido hábitos ruins e treinado na direção oposta. Devido à crença insidiosa na existência de um eu, passo a passo nos cercamos de defesas e enrijecimentos, e é por isso que agora não nos reconhecemos como um buda. E não só não nos reconhecemos, mas, é dolorosamente claro, os outros também não nos reconhecem. Tudo isto porque nos expressamos de forma ostensivamente confusa, mesquinha e irritante – ainda que todo o tempo tenhamos a nosso dispor o tesouro completo das qualidades de buda completamente presentes em nós.

A solução para isto é a ioga, ou bhavana. Tendo clara confiança na noção de que tais qualidades não podem ser efetivamente criadas, mas são uma herança natural do arranjo das coisas como elas são, nos unimos ao reconhecimento sem obstruções de nossa verdadeira natureza. Isso permite a prática, que é a aceitação honesta da presença e operação dos impedimentos e obscurecimentos, que não só nos fazem oscilar em termos de humor, mas nos fazem esquecer certos pontos essenciais – o que não só prejudica a nós mesmos, mas principalmente impede que trabalhemos efetivamente para que os outros reconheçam e expressem as mesmas qualidades.

Este salto não é óbvio. Um dos obscurecimentos intelectuais que temos, algo que bloqueia profundamente nossa prática, é achar que apenas porque detemos uma ideia na cabeça por um instante, isto resolve qualquer coisa. Algumas vezes, no melhor dos mundos, com muito mérito e várias condições auspiciosas presentes, será o início de mais um pequeno ciclo de cultivo, cheio de altos e baixos, e bastante temporário. No mais das vezes, no entanto, mesmo as ideias do darma, ao se verem misturadas com o lixão incomensurável de nosso background cultural e tendências habituais, acabam apenas por se tornar impedimentos maiores, através do autoengano. Quem não já usou de desculpas para não fazer um esforço em benefício dos outros, ou para não se aplicar no darma com esforço – e só porque ouviu algumas palavras sobre budas ou a verdadeira natureza das coisas –, decidiu que o mais correto talvez fosse deixar as coisas como estão e tomar uma cerveja, jogar videogame ou assistir mais um episódio? Sinto muito, mas você não é nada original, há milênios está cheio de gente tentando unir o darma com a cultura do bro.


A analogia da cartolina

Sua Eminência Chagdud Tulku Rinpoche costumava usar a analogia da cartolina. Quando compramos uma cartolina, ela vem enrolada. Para podermos usá-la precisamos que ela esteja relativamente aberta, e suficiente plana. Uma das ações que fazemos, a princípio, é a enrolar no sentido oposto. Ela então fica meio torta, ainda não bem usável. Então, numa segunda etapa, a deixamos por um tempo numa superfície plana, e ela naturalmente vêm a descansar no seu estado natural, sem muitas ondulações, rente a essa superfície. E enfim, após algum tempo, será perfeitamente adequada para ser transformada em um cartaz para algum trabalho escolar, seu uso e propósito de existência.

Essa analogia é muito boa por mais de um motivo. Em primeiro lugar, quando começamos a fazer prática, os impedimentos e obscurecimentos são muito intensos. São hábitos muito arraigados. Chegamos muitas vezes com uma fitinha atada nos prendendo à pior posição possível para o bom uso: beneficiar a nós mesmos e aos outros. Nossa mente neste estado está simplesmente tão enviesada que ela não trabalha bem nem mesmo em nossa vantagem, que dizer de forma altruísta.

Algumas pessoas cometem o erro de só desatar a fitinha (decidir que são budistas) e achar que já estão prontas. Já outras, partem de imediato para práticas avançadas como dzogchen e mahamudra, onde efetivamente deixamos as coisas repousarem no estado natural. Porém, com a cartolina basicamente ainda toda tesa e enrolada para um lado, estes ensinamentos e práticas maravilhosos acabam não fazendo nenhum efeito bom. Algumas vezes as coisas ficam até piores, quando em meio a essas tentativas acabamos amassando a cartolina ainda mais com uma mistura aleatória de métodos, até bons no seu contexto ideal, mas puro veneno se aplicados com desvario e descuidado.

É importante entender que a prática, particularmente no início, é relativamente desagradável (porque vai contra nosso estado atual). Ela no mais das vezes, exceto com prodígios raros como as estrelas durante o dia, é bastante difícil e nada natural. Lemos coisas lindas sobre natureza de buda, desobstrução, liberdade, e aí nos pegamos marcando horários, sentando em posturas específicas e sendo obrigados a refletir sobre certos temas vez após vez. Enquanto isto, os perrengues usuais da vida seguem, a prática não parece fazer nada com relação a eles, e na verdade, parece apenas se tornar mais um item duvidoso a adicionar a uma agenda e rotina incessantes.

Minha própria experiência sempre foi a de achar muito linda a ideia da prática budista, muito bom ser um praticante, mas só até o momento de realmente me engajar e passar desconforto e tédio, e mesmo vir a sentir raiva de toda a parafernália budista. “Já não basta o sofrimento de ficar doente e morrer, agora ainda se precisa tocar esse sino e acender incenso!”

Encontrar o valor da prática, em si, é algo que para a maioria de nós, demanda esforço, demanda prática. Sem refletir repetidas vezes sobre as dificuldades em encontrar as condições ideais, e ainda assim corajosamente aproveitar bem qualquer migalha de mérito e tempo livre que tenhamos na direção do darma, o darma muito facilmente se torna exatamente como mais um dos tantos hobbies que abandonamos em nossa frivolidade adolescente. O que é uma verdadeira tragédia.

Precisamos sistematicamente ignorar as tendências habituais, algumas vezes até crenças sobre algum autoritarismo inerente na disciplina ou na sistematização, se por acaso temos uma mentalidade um tanto punk ou libertária. Mas não só estas, ao começarmos a praticar – se aceitamos antropomorfizar a situação –, todos os sem número de maras (obscurecimentos e impedimentos) levantam as orelhinhas e focam os olhinhos em nós. Praticar é exatamente desafiar os maras em combate, isto é, desafiar boa parte dos aspectos intelectuais e habituais que acreditamos formar este “eu” inexistente. Pessoal a que, de forma geral, temos sem grande exame confiado nossa vida – e que possivelmente nos provém um falso sentido de segurança, e as vezes até sentido.

O mais irônico é que, quando a pessoa deixa de fazer a prática diária, muitas vezes ela pensa “Hoje não! Tenho plena autonomia para decidir por mim mesmo que não vale a pena praticar”. Ao sucumbir para o exército inimigo, a pessoa tem a primeira impressão de ser senhora de si mesma, locupleta de alguma pretensa liberdade acidental reivindicada ad hoc, enquanto que, o desconforto daquele espaço e tempo dedicado ao darma – o próprio desconforto, não vamos nos iludir que estamos produzindo samadhi ou gerando compaixão incomensurável – é em si a tal da prática! É o encarar dos maras que tem nos feito de servos por vidas incontáveis, nossos obscurecimentos intelectuais e hábitos emocionais daninhos, que muitas vezes ignoramos, adoramos ou que, até já sabemos, nos têm feito de bobos vez após vez!

E, se o espírito rebelde e indisciplinado nos afasta do darma, que dizer então do bom-mocismo, moralismo, e a obsessão perfeccionista? Imediatamente nos consideramos inválidos e incapazes de praticar qualquer coisa, uma vez que não entendemos tudo nem somos capazes de praticar perfeitamente desde o início. Encarar as próprias dificuldades é a própria prática. Sem essa honestidade e disposição, dificilmente seguiremos para a sessão seguinte, que dizer nos estabelecermos na prática consistente – não importa se nosso problema é preguiça, ambição demasiada ou desinteresse, se não trabalhamos com nossos hábitos exatamente como eles se manifestam, não haverá prática.

Numa perspectiva vajrayana, todo o tédio, neurose e desconforto produzidos em nosso esforço sincero em aplicar darma são exatamente eles mesmos as oferendas internas3Amrita, rakta e torma. que fazemos às três raízes (e isso não é uma desculpa para deixar de oferecer as substâncias no altar, pelo contrário).


Meditação e pós-meditação

Nossa insegurança básica, remendada por alguma noção desajeitada de autoestima, nos faz muitas vezes, no que diz respeito ao darma, supor que podemos assumir práticas bastante avançadas desde o início. Algumas vezes até confundimos o que é uma prática avançada com uma ideia para iniciantes, ou vice-e-versa.

Por exemplo, no que concerne a prática, assumimos que, uma vez que o melhor é não fazer diferença entre prática formal e prática no cotidiano, e sim praticar o tempo todo, que o ideal mesmo é desde já unir-se tão perfeitamente a prática que já nem mais exista uma noção de estar praticando alguma coisa. Assim, pensamos, “não vou me prender a essas práticas em grupo e sessões de 30 minutos, vou praticar aqui mesmo, em frente a essa tela de celular, sozinho no meu quarto”. Ah, a liberdade da cartolina permanecer enrolada, que aconchegante!

“Já que a confusão é a sabedoria encoberta, vou continuar confuso, com a sabedoria como ela já está, encoberta. O ponto é deixar as coisas como já são, não é mesmo? O que quer que eu faça, é o darma! O que quer que seja o darma, é o que eu faço! Decretei isso de acordo com a sabedoria da confusão, ou vice-versa, já nem sei, e pouco importa!” Tudo é tudo, e nada é nada, porque simplesmente falta honestidade, e damos um jeitinho brasileiro. É um pouco parecido com a pessoa que não toma o remédio porque “Deus sempre ajuda”, mas, como somos supostamente seguidores do Buda, sucumbir assim aos extremos do eternalismo e niilismo é ainda mais vergonhoso.

Da mesma forma, ouvimos ideias sobre como realmente somos nosso verdadeiro professor, e descartamos as mais valiosas oportunidades de chegar a conhecer um catalisador supremo da revelação de nossas qualidades na forma de um professor externo. Mesmo que ele venha até próximo de nossa cidade, o esforço de separar algumas horas ou viajar parece incomensurável, e, além do que, sempre existe a ideia de que somos nossos verdadeiros mestres. O Buda disse isto, não é mesmo? Embora ele tenha dito muitas outras coisas, por algum motivo preferimos prestar atenção ao que nos justifica, e ignorar o que nos desafia. E, da mesma forma, muitas vezes preferimos charlatões acessíveis, que acalentam nossos piores instintos com uma bondade mamífera, e que nos afagam em zonas de conforto ideológicas e em nossas expectativas bunda-mole, do que professores realmente difíceis ou desafiadores, ou talvez até não tão glamorosos ou vistosos, mas que podem efetivamente prover um campo de prática e de geração de mérito.

Quando nos deparamos com práticas elaboradas, trabalhosas – coisas que nos parecem rituais cheios de infinitos detalhes – o que nos parece é que preferiríamos uma prática mais despojada, mais simples. Porém, quanto mais simples a prática, melhor precisa ser o praticante que vai efetivamente conseguir praticá-la. As práticas elaboradas, os cercadinhos espaço-temporais, as estruturas detalhadas – todas essas coisas são regiões de amparo a cartolinas profundamente enroladas tentando desenrolar. E sim, o próprio fato de uma prática ser trabalhosa é algo que implica o aspecto iniciante – mas devido a essa noção desajeitada de autoestima – escolhemos a prática pelo que gostamos ou achamos fácil, enquanto que provavelmente o melhor, de início, fosse uma prática talvez até suficientemente agradável de fazer, mas com fronteiras estruturais claras, uma curva de aprendizado longa e suave, e algum aspecto de esforço repetitivo. Talvez o melhor seja passar algum trabalho sendo desafiado por uma prática do que escolher o menor denominador comum do sentar em autoengano.

Em resumo: algumas vezes achamos certas práticas muito complicadas e difíceis para um iniciante – embora elas sejam complicadas e difíceis exatamente para prover algo onde o iniciante pode ficar roendo seus obscurecimentos e impedimentos. Enquanto que, quando a prática parece tão despojada e superior, tão simples e acessível, muitas vezes isso – para alguém que efetivamente acha que está praticando, mas está só no autoengano – é só uma desculpa para ocupar o “trono” do apego ao eu e do materialismo espiritual.

E sim, a prática formal envolve sentar com uma boa postura todos os dias. Mais do que isso, dispor oferendas no altar, algumas prostrações, recitar alguns textos e – eu já disse isso? –, sentar em boa postura. Tudo isso, todos os dias, por algum tempo. Mas e como se começa? Primeiro encontre um grupo e um professor e faça o que o grupo e o professor fazem. É assim que se começa.


A prática fora do tempo e do espaço

Qualquer pessoa que frequentou um mínimo de tempo um centro de darma está abarrotada de incontáveis métodos e práticas que ela pode escolher aplicar no seu momento de formalidade. É a maior ironia quando pessoas pedem por uma prática, digamos, para alguém como eu. Isso só revela que a pessoa nunca viajou para fazer um retiro de dois dias.

Qualquer iniciante no darma está tão cheio de recomendações por professores qualificados que jamais perguntaria algo assim para alguém como eu. É um despropósito completo, que só pode ocorrer porque as pessoas ficam na internet e geram alguma aspiração de praticar o darma, mas não o suficiente para reordenar as prioridades de suas vidas e ir efetivamente atrás de um professor. É por isto que escrevem para mim, uma pessoa que produz artificialmente certa visibilidade, sem qualificação nenhuma. É extremamente irônico, e marca esse fenômeno desafortunado que eu passei a chamar de “budista de internet”.

Este texto, com toda esta introdução barroca, veio de uma pessoa que perguntou sobre fazer mantras, ou uma prática que no vajrayana faz parte do que em sânscrito é chamado de sampannakrama4Tib. kyerim, estágio do desenvolvimento/geração/criação. A parte da sadhana ou roteiro de prática vajrayana que envolve a prática principal (a formação em detalhes da visualização da mandala de deidades), e certas práticas acessórias, com vários tipos de visualizações, mantras e mudras, bem como a repetição principal de mantra e a realização de certas oferendas e louvores. Esta etapa é complementada por preces preparatórias e finais, e principalmente pelas meditações e atividades do estágio da consumação/completude/perfeição, utpannakrama, tib. dzogrim. durante o cotidiano – isto é, em meio as atividades normais do dia, fora do escopo do elemento separador em espaço e tempo da prática formal. Parece uma pergunta inocente, mas é cheia de conotações capciosas, que muito dependem do contexto de onde vem formulada a pergunta.

A resposta de alguém menos preocupado seria talvez “claro, vai fundo, recite seus OM MANI PADME HUNGs o quanto quiser”. E sem dúvida há mérito em meramente recitar o mantra, sem os outros elementos do vajrayana, tais como o compromisso com as três raízes5Lama, yidam e dakini., a sadhana com suas etapas, a visualização e outras meditações espeficicadas na sadhana, a autorização e empoderamento através da cerimônia de abisheka (algumas vezes traduzida como iniciação).

Depois surgem outras dúvidas sobre esse contexto. Mesmo ignorando o vajrayana, e focando apenas numa recitação de mantra de acordo com um entendimento mahayana, essa pessoa sabe da importância de aplicar as três excelências (fixar a motivação, fazer a prática principal e dedicar o mérito)? Ela entende que não é bem algo parecido com essa recitação informal que, de forma geral, se quer dizer por “prática no cotidiano”? Ela realmente espera que eu escolha o mantra ou oração para ela – me fazendo de traficante na busca o remédio, e evitando buscar o médico acreditado –, me colocando numa posição de mestre vajra, que receita a prática, que implica compromissos, e que implica que ela deve se ver – e a todos os seres – o mais possível como o Bodisatva Avalokiteshvara e fazer autovisualização, ou pelo menos uma visualização à frente? A displicência dela em pedir a alguém como eu já implica a displicência e falta de prioridade com que ela vê o darma!

Se, por outro lado, ela já tem uma iniciação vajrayana, ela sabe que deixar de se autovisualizar e abandonar a recitação do mantra durante o dia (dentro da razoabilidade de manter a prática em segredo, não perturbar os outros, e usar a fala de forma natural para as atividades do cotidiano) é uma quebra de voto? Isto é, ela sabe que ao se fazer uma prática do vajrayana, nos comprometemos a seguir 24h por dia com essa prática, e usamos a prática formal focalizada em alguns poucos minutos como justamente o ponto de referência para a eventual possibilidade de sustentação dessa prática ininterrupta?

É evidente que, se a pessoa faz shamata (meditação em silêncio) como sua prática principal, se ela durante o dia for pega pelos colegas de trabalho e familiares com aquele olhar transfixado, brincando de estátua, ela estará fazendo um desfavor ao darma, e assim um desfavor a todos os seres sencientes. Por outro lado, se ela recitar alguns mantras ocasional e discretamente, talvez isso não seja um problema tão grande.

Por outro lado, a prática no cotidiano envolve todas as interações que fazemos. Se nossa prática principal é a shamata, é claro que levamos a agitação do dia para a prática formal, e o tranquilo permanecer da prática formal para o dia cotidiano! E se nossa prática principal é o vajrayana, isso envolve visualizar as pessoas, animais, insetos, e você mesmo, como o guru e/ou a deidade – um não existe sem o outro, e sem os dois, não tem mantra também! E os âmbitos formais e informais de prática sempre mantém interdependência com o outro, o tempo todo. Praticar é integrar o darma em todas as atividades, a prática formal – num período específico e num espaço próprio – é um meio hábil justamente para catalisar essa integração.
É bem verdade que, na prática como ela realmente ocorre, como iniciante, você apenas ocasionalmente lembra que tem o compromisso de manter essa visão pura, que é treinada no momento da sadhana, o tempo todo, e por essa quebra infalível de voto você já é levado a vários outros meios hábeis como confissões e purificações frequentes. E, além dos métodos vajrayana como tsog, retomar iniciações, ou prática de vajrasattva, você também inclui toda a pletora de práticas do mahayana como um ferramentário a sua disposição, de forma que se você não consegue a prática superior, você cai imediatamente na prática que consegue fazer. Como alguém que treina andar de bicicleta com rodinhas.

Aqui incluímos outras práticas semi-formais, como o tonglen, em que inspiramos o sofrimento dos outros e expiramos felicidade, visualizando respectivamente uma densa fumaça preta entrando em nós, e um ar expansivo e brilhantemente luminoso saindo de nós e chegando até aqueles que estão doentes, ou o irritam, ou cometem não virtude, ou todos equanimemente. Você pode perguntar para o seu professor como talvez seja possível combinar essas práticas, shamata, tonglen e a visualização e recitação de mantra do sampannakrama – e é muito possível que você encontre a essência de todas elas no reconhecimento das coisas como elas são e da natureza da mente. Mas antes disso, como eu disse, tudo ainda é “semi-formal”. O que se quer dizer por prática no cotidiano é um pouco mais a ideia de ser um bom budista com os outros, sem é claro, cair na armadilha de esfregar o budismo na cara deles. Isto é, praticar as quatro qualidades incomensuráveis, tais como amor, compaixão, alegria e equanimidade, e as seis perfeições, generosidade, ética, paciência, entusiasmo, meditação e sabedoria – tudo em low profile e de preferência sem que ninguém precise ficar sabendo que você é budista, muito menos alguém interessado no vajrayana, muito menos o tipo de cretino imbecil que usa aberta e indiscriminadamente expressões tais como “natureza da mente” e “as coisas como elas realmente são”.


O bardo da prática

Quando as pessoas ouvem falar em bardo, elas sempre lembram o bardo mais famoso, aquele pelo qual passamos logo depois de morrer, e logo antes de nascer. No entanto, um bardo igualmente importante ao estado de vigília ou o momento do sono, ou o do momento da morte é o bardo da meditação – isto é, o bardo da prática formal.

A prática formal, aquele momento preferencialmente diário, duas ou quatro vezes ao dia, mas com certeza com pelo menos alguma regularidade semanal ou mensal, em que você se separa das atividades do cotidiano e dedica a recitar sua sadhana vajrayana, enquanto tenta aplicar as etapas na ordem certa, e tenta executar as meditações correspondentes, é imprescindível para iniciantes. Até se pode dizer que é imprescindível para todos, exceto pessoas muito próximas da iluminação completa. Na verdade está especificado que a realização de um bodisatva de último nível, o 10º é justamente praticar sem produzir qualquer diferença entre meditação e pós-meditação. Até o 9º estágio de bodisatva, todos eles são também objetos de compaixão (como a que temos em relação a qualquer outro ser senciente), embora entre os mais elevados, só o seu estado de pós-meditação seja alvo de compaixão.

Digamos que o interesse não seja o vajrayana e suas sadhanas, mas o mahayana – seja o zen ou a terra pura... qualquer forma de mahayana, exceto as mais extremas formas duais (e possivelmente espúrias) de “budismo meramente devocional” vai estabelecer a importância de alguma prática formal. É uma curiosidade ou nota de rodapé do darma a existência de formas budistas que acreditam tão fortemente na ausência de eu que para elas qualquer forma de esforço com o mínimo de aparência unilateral (“nosso próprio esforço”) é considerada uma falta de confiança na compaixão e poderes do Buda. Evidentemente, a sabedoria do mahayana não causal e do vajrayana não projeta budas externos ou internos unilaterais, e assim a prática formal é um adorno da compaixão e dos poderes do Buda, que “não vem, e nem vai”, e está totalmente livre de extremos. É evidente que só temos vontade, interesse e capacidade de praticar devido ao Buda, que nunca está em algum lugar lá fora, e muito menos dentro, ou no meio. Como não há eu, e a natureza de buda não é um tipo de essência caracterizadora, o Buda é sempre a própria possibilidade de entendimento, prática e resultado.

Quando começamos a praticar, é difícil identificar o bardo da meditação. Podemos estar fazendo zazen ou elaboradas formas de vajrayana, não importa, somos invadidos por pensamentos do passado e do futuro, muitos deles invocando lugares e momentos extremamente dissonantes com a situação em mãos. E se pensamos no presente, encaramos mensagens de incômodo do corpo, em alguns casos raros, prazeres ou confortos do corpo, ou a sensação de não saber o que se está fazendo, e também não ter certeza de estar fazendo bem o que supostamente se deveria estar fazendo, e ocasionalmente fixações e outras doenças e autoenganos com relação a efetivamente achar que sabe alguma coisa. Acontece de tudo.

Porém, como já dito, essa situação formalmente distanciada da atividade corriqueira, por si só, em meio a sua energia de oscilação entre a distração e a recolocação, entre o tédio, expectativas e desconforto – ela, desse jeito mesmo, com aplicação com um mínimo de honestidade, vai se configurar como a prática. Ademais, prática formal é algo com que se compromete e que se faz “não importa o que ocorra”, na medida da razoabilidade – pode-se fazer exceção para desastres naturais ou emergências reais, mas nada que diga respeito a cansaço, humor, intromissões esperadas e inesperadas, necessidades previsíveis e todo tipo de desculpa que se vai certamente inventar. Se não deu para fazer no horário, se faz mais tarde. Se não deu para fazer hoje, o triplo do tempo amanhã. Se ficamos duas semanas sem fazer, não é desculpa para não seguir fazendo hoje. E assim por diante. O ponto é reorientar sua vida para priorizar a prática formal, como forma de possibilitar a prática no cotidiano, e a integração completa com o darma. De forma que tudo que se faz brote como uma oferenda.

Sem essa coisa do “não importa o que ocorra”, a prática formal não é reconhecida como o bardo da meditação. E o único objetivo de falar dos bardos é os reconhecer como tal, de forma que nos bardos mais turbulentos, como o do sonho ou o do momento da morte, seja mais fácil praticar a partir desse reconhecimento, e assim integrar o darma “não importa o que ocorra”, seja lá qual for a situação que se apresente. Isso vai permitir que se morra sem arrependimentos, e que se integre ao darma até coisas bastante difíceis de integrar durante o sonho, a vida em vigília ou várias atividades específicas. Por outro lado, se apenas seguimos acreditando nos pensamentos transitórios que nos iludem com ideias desonestas de acreditar falsamente estar fazendo essa oferenda de integração, aí nos tornamos um impedimento e obscurecimento para nós mesmos e para os outros.

E porque fazemos prática, e buscamos essa integração, e esse reconhecimento todo? Ora, nossas mães, todos os seres sencientes que ao longo de vidas incontáveis cuidaram tão bem de nós vida após vida, oferecendo a própria carne do corpo para nos alimentar, e nos dando carinho e atenção, estão com os cabelos em chamas vagando por aí totalmente sem reconhecimento de nada realmente importante. Eles sofrem muito, e se nós mesmos não aceitarmos a responsabilidade de prover um exemplo, bem como a possibilidade de ajuda direta através da nossa efetiva integração com as três joias e suas capacidades e qualidades, eles efetivamente não têm chance alguma.

E aqui cabe lembrar que nada disso se aprende lendo textos e vendo ou ouvindo conteúdos pela internet. Só se aprende a praticar o darma em meio a outras pessoas tentando praticar, e com professores que já obtiveram certos resultados.


Prática formal e informal, vídeo no canal Tendrel.

Recomendações de livros sobre budismo, artigo em tzal.org.

Centros de darma que recomendo, artigo em tzal.org.

Recomendações para quem quer iniciar no budismo, artigo em tzal.org.

Recomendações para a prática budista, artigo em tzal.org.

O que é prática budista?, vídeo no canal Tendrel sobre as três excelências.

A prática do altar, texto de Padma Dorje em tzal.org.

Como fazer a prática do altar, vídeo no canal Tendrel.

Prostrações: refúgio em corpo, fala e mente, vídeo no canal Tendrel.

O que é um retiro?, vídeo no canal Tendrel.

Sobre minha prática, vídeo no canal Tendrel.

Práticas preliminares (ngondro), vídeo no canal Tendrel.


1. ^ “Eu queria ter compaixão, e, às vezes, pior que isso, eu queria querer ter compaixão.

2. ^ Além de bhavana, ioga e dhyana (tib. samten, jap. zen), há termos que algumas vezes associamos à prática, como “treinamento da mente”, “contemplação” ou “práticas contemplativas”, e outros. Num sentido amplo, prática e treinamento da mente são sinônimos, no entanto, da mesma forma que o termo “zen”, uma prática genérica comum a todo o budismo (dhyana), se tornou o nome de uma tradição ou escola, quando se usa a expressão “treinamento da mente”, no mais das vezes estamos nos referindo a certas práticas específicas propostas por Atisha, como a aplicação em mudança de hábitos que refere, por exemplo, a fazer o exercício de trocar de posição com outras pessoas, e ver pela perspectiva de como sua autoimportância se aplica agora a outro ser. Por outro lado, as práticas de contemplação e reflexões, embora possam ocorrer no mesmo espaço formal, com o uso de certas posturas, e com marcação de tempo — e também certamente se aplicam ao âmbito informal — e embora muitas vezes se subsumam ao que aqui estamos chamando de prática, muitas vezes igualmente pertencem ao que se chama de estabelecimento da visão, estritamente uma preliminar para a prática.

3. ^ Amrita, rakta e torma.

4. ^ Tib. kyerim, estágio do desenvolvimento/geração/criação. A parte da sadhana ou roteiro de prática vajrayana que envolve a prática principal (a formação em detalhes da visualização da mandala de deidades), e certas práticas acessórias, com vários tipos de visualizações, mantras e mudras, bem como a repetição principal de mantra e a realização de certas oferendas e louvores. Esta etapa é complementada por preces preparatórias e finais, e principalmente pelas meditações e atividades do estágio da consumação/completude/perfeição, utpannakrama, tib. dzogrim.

5. ^ Lama, yidam e dakini.

Essa resposta tem três partes. A primeira coisa a esclarecer é a tradição budista, mas particularmente tibetana, de autorrebaixamento. Então é preciso dizer um pouco sobre proporções e magnitude, e o fato de se estar satisfeito com a própria prática ser visto como um obstáculo. Enfim, é preciso explicitar a diferença, que existe apenas para iniciantes como eu, entre prática formal e prática informal, e talvez tentar dizer o que é efetivamente prática para um iniciante.Buda Virtual

O que é ser um bom praticante

Essa resposta tem três partes. A primeira coisa a esclarecer é a tradição budista, mas particularmente tibetana, de autorrebaixamento. Então é preciso dizer um pouco sobre proporções e magnitude, e o fato de se estar satisfeito com a própria prática ser visto como um obstáculo. Enfim, é preciso explicitar a diferença, que existe apenas para iniciantes como eu, entre prática formal e prática informal, e talvez tentar dizer o que é efetivamente prática para um iniciante.
Ao praticar o darma com esforço, geramos hábitos. No entanto, é bem verdade que todos os hábitos são construções que potencialmente aprisionam. Como isso funciona na prática? E por que é necessário praticar com esforço e gerar hábitos positivos?tzal.org

Usando hábitos contra hábitos

Ao praticar o darma com esforço, geramos hábitos. No entanto, é bem verdade que todos os hábitos são construções que potencialmente aprisionam. Como isso funciona na prática? E por que é necessário praticar com esforço e gerar hábitos positivos?
Todas as formas de budismo tibetano concordam que a meditação analítica culmina numa prática não conceitual, ou pelo menos “sem elaborações”. No entanto, algumas dessas tradições discordam da noção de não elaboração das outras. Como é isso?tzal.org

Meditação não analítica

Todas as formas de budismo tibetano concordam que a meditação analítica culmina numa prática não conceitual, ou pelo menos “sem elaborações”. No entanto, algumas dessas tradições discordam da noção de não elaboração das outras. Como é isso?



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