McMindfulness: meditação com marca registrada
O que está por trás do uso insistente do termo “mindfulness” em termos de meditação, particularmente em modalidades seculares, e como ela se tornou um produto do supermercado espiritual.
“[A meditação budista] não é a que se ensina em hotéis 5 estrelas, aquela ioga ou meditação ‘mindfulness’ de fim de semana para executivos se sentirem bem, ficarem relaxados, só para então na segunda-feira continuarem tão truculentos como sempre foram, ainda mais gananciosos, e seguirem destruindo o mundo com ainda mais eficácia.” Dzongsar Jamyang Khyentse Rinpoche,~1h09:20 ensinamento sobre OM MANI PADME HUNG na Austrália
A palavra mindfulness aplicada à meditação é um termo bastante ambíguo e confuso. A tradução fora do contexto de meditação para o português deste termo significa uma substantivação de “tomar cuidado”, algo como a expressão composta “o-fazer-cuidadosamente” – com atenção aos detalhes, sem cometer erros. A confusão quanto ao que seria a prática de meditação se amplifica nas traduções ao português (que vão cada vez mais ser raras, na medida que o termo estrangeiro é usado e penetra o léxico), a mais comum sendo “atenção plena”, que dá um sentido vago de uma atenção mística, que ao meditador iniciante, parece inatingível.
Há, no entanto, um sentido técnico no budismo que vem da tradução da palavra “sati” (em páli) (“smriti”, em sânscrito, “drenpa” em tibetano) – que é por sua vez uma tradução bastante contestada. Sati é um “fator mental” que precisa estar presente para a meditação acontecer. Isso significa basicamente lembrar o que se está fazendo, no caso, por exemplo, da mindfulness da respiração, ora, lembrar de prestar atenção à respiração. A prática concede que vamos esquecer, vamos nos distrair, e recolocar a mente no objeto, estar atento para quando se perde o foco, é a essência de sati.
No Abhidharma (uma vasta compilação de sistematizações dos ensinamentos do Buda nos Sutras, diálogos com alunos) são descritos 51 fatores mentais, alguns positivos, alguns negativos, outros neutros. Mindfulness é considerada um fator positivo, há outros 50 a estudar no contexto da prática budista de meditação.
Na tradição budista em língua inglesa o termo não é universalmente traduzido como “mindfulness”, há variações como “lembrar cuidadoso” (“recollecting mindfulness”), “lembrar” (“recollection”), “inspeção”, “presença”, “presença mental”, consciência secundária”, “consciência” (“awareness”), “atenção”, “atenção concentrada”, “autorrelembrar” e “retenção”. As opções com “atenção” não parecem boas traduções, porque a atenção é outro fator mental, o que gera ambiguidade. As opções com variações de “lembrar” e “presença” são boas, a etimologia da palavra em páli tem a ver com memória nesse sentido não episódico, de memória de curtíssima duração, de “não perder o fio da meada”. “Consciência secundária” é uma tradução estranha, mas ajuda a entender que a mindfulness é uma espécie de qualidade “meta” da atenção, uma meta-atenção, atenção sobre o próprio prestar/manter atenção. As melhores traduções parecem ser “inspeção contínua” ou “presença mental”. Em termos bastante laicos, é lembrar que você está se engajando numa atividade (no caso, em geral, uma prática de meditação, mas você pode ter essa qualidade em ações como escovar os dentes, e assim por diante, é claro), e não “sair da casinha”, não divagar. É estar atento ao processo de cair em distração, e recolocar a mente de forma dócil na posição intencionada. Tecnicamente, isto é não cair nos dois fatores mentais que concorrem com sati, no caso, torpor e agitação. Estes possuem duas variedades cada, uma grosseira e uma sutil. Enquanto o torpor grosseiro é sonolência, a agitação grosseira é ruminação, uma conversa interna ou imaginação produzindo incessantemente um fluxo semialeatório de conteúdos. As formas sutis são um “distanciamento” ou pequena perda de foco do objeto em atenção, ou, pelo contrário, uma intensidade ou fixação exagerada no foco.
De todo modo, o que ocorreu é que a palavra mindfulness penetrou alguma tradição budista que por acaso foi influente entre certos psicólogos. O caminho que presumo foi o seguinte: a tradição, como tantas outras, focava como sua prática central anapanasati, “mindfulness da respiração”, talvez a prática de meditação mais universal e comum no budismo; eles então, na entrada dessa tradição no uso do inglês, passaram a se referir a anapanasati (que de fato é um tipo de sati, ou mindfulness) como mindfulness, simplesmente; a partir disso, dada a centralidade dessa prática, muitos outros elementos da tradição budista começaram a ser tratados no contexto dessa prática, com esse nome levemente transformado; a partir disso os cientistas começaram a estabelecer teorias, sem nenhuma preocupação com a) etimologia; b) a diversidade das tradições budistas, e outras formas de chamar as coisas.
Claro que o objetivo dos cientistas não era replicar a prática budista, mas sim desenvolver os próprios métodos. No entanto isso não precisava ocorrer com tão evidente e demonstrado desconhecimento da tradição em estudo, bem como com a produção ou proliferação desnecessária de confusão terminológica.
O fato é que hoje mindfulness acabou querendo dizer, basicamente, qualquer coisa. As palavras cruciais e mais gerais para meditação na tradição budista de forma geral são dhyana (absorção, meditação), samadhi (absorção, concentração unifocada), shamata (estabilidade contínua) e vipassana (meditação analítica). Todas elas possuem, como elemento presente entre tantos outros, sati (no caso smriti, já que as outras palavras eu forneci em sânscrito e não páli). Há na verdade uma equivocidade no próprio budismo em que a mesma palavra é usada para uma prática, e, no caso de sati, um fator mental (o mesmo ocorre com shamata, no casoprincipalmente um resultado da meditação, mas a prática que leva ao resultado também é chamada por esse nome). A prática de mindfulness, em contraposição ao fator mental, é se assegurar através do hábito de que o fator mental esteja presente, o que é comum aos seis ou sete primeiros estágios de shamata (são dez).
Mas hoje, no mundo moderno, mindfulness acabou querendo dizer seis coisas: 1) prestar atenção, deliberadamente, em contraposição a simplesmente se distrair; 2) fazer as coisas devagar; 3) saborear bem as experiências sensoriais, tais como sons, gostos, etc.; 4) estar ciente das próprias emoções, mas se manter calmo, frio, desligado, desapegado; 5) como uma prática de cultivo da atenção tendo como objetivo jhanas, isto é absorções/estabilidades, isto é, shamata; 6) como uma consciência livre de preconceitos, vieses, julgamentos perante a experiência direta ou análise dos sentidos, isto é, vipassana.
A definição para mindfulness de um artigo de 2009 assinado por seis psicólogos é “o foco intencional, dócil e livre de julgamentos da atenção de alguém sobre as emoções, pensamentos e sensações ocorrendo no presente momento.” (Zgierska A, Rabago D, Chawla N, Kushner K, Koehler R, Marlatt A, “Mindfulness meditation for substance use disorders: a systematic review”.) A prática psicológica é universalmente apresentada como “derivada de práticas budistas”, embora seja difícil estabelecer o quanto de budismo existe nela, com a total desconsideração pela erudição quanto à tradição (mesmo ocidental e às vezes ocorrendo nas mesmas universidades). Normalmente estes psicólogos tem contato com alguns livros, fazem alguns workshops budistas de uma ou duas tradições, e informam seus artigos com base em evidente desconhecimento mais amplo ou geral da tradição, coisa que talvez poderia ser obtida com uma conversa com alguém do departamento de estudos asiáticos, ou mesmo línguas asiáticas.
Essa mcmindfulness da psicologia, o “mc”referenciando a cadeia de fast food e sua padronização científica da experiência do consumidor, não é sati, da mesma forma que se diz para criança que “hambúrguer não alimenta”, embora encha a barriga. Alguns aspectos se confundem, o que pode ser mesmo um problema. Essa prática descrita com o nome de mindfulness não parece exatamente incompatível com o budismo, como um Big Mac não é incompatível com nosso estômago, mas parece haver algum motivo para ficar desconfiado da publicidade toda.
Obviamente há uma indústria em torno disso, e a relação com o budismo parece ainda, na mente pública em termos do marketing, ser bastante positiva. Mindfulness é um termo mais chamativo do que traduções de shamata: “meditação do tranquilo permanecer”, ou algo assim. Ajuda também que estas práticas são apresentadas num contexto secular: é terapia, você não precisa se filiar num clube religioso e usar roupas esquisitas. Você tem, aparentemente, a credibilidade dos dois mundos.
A incipiente relação do budismo com a ciência também confunde o público. Em alguns momentos o budismo é apresentado, ele mesmo, como uma ciência – na forma de um elogio. Por outro lado lemos quase todo dia sobre confirmações neurofisiológicas da meditação – como se uma tradição de 2600 anos precisasse que alguns raios-x superdesenvolvidos confirmassem as qualidades dos meditadores, evidentes para essas comunidades desde antes do próprio Buda. E, por outro lado, o efetivo ceticismo budista, que alguns afirmam ser bem maior do que o da própria ciência. Ora, ninguém nega que o diálogo é importante, e que a ciência tem muito a aprender com o budismo (o oposto podemos verificar), mas a questão é que a confluência da mentalidade cientificista do público com sua ânsia espiritual velada, mas muito presente, produz um belo produto no supermercado espiritual: a, bastante bastarda (pelos motivos apresentados acima), prática de mindfulness.
Em certo sentido, esse ainda é o imperialismo cultural semelhante ao que vemos em outras práticas tradicionais, como a acupuntura – que já se visou regulamentar dentro das expectativas da medicina tradicional, usurpando um corpo de conhecimento dos verdadeiros dele para um grupo de técnicos ocidentais com favorecimento burocrático. Não creio que o mesmo venha a se dar com a mcmindfulness, já que a meditação ainda é um elemento muito mais fortemente cultural do que terapêutico, e a psicologia não tem tanta força política quanto a medicina na conjuntura atual. Porém, não custa examinar a aparentemente bem intencionada incursão de psicólogos pelas práticas budistas com certo ceticismo e cuidado, especialmente no que se refere ao que pode distorcer a terminologia budista, ou a visão da opinião pública quanto ao budismo.
Mas quais seriam, falando diretamente, as recomendações e objeções com relação a essa prática de mcmindfulness? Qual é o problema de haver uma prática de meditação secular, focada na saúde? Ou mesmo focada, digamos, no sucesso na carreira? (E aqui não diferencio a qualidade das diversas tentativas da psicologia: tudo que não é “comida feita pela vovó”, isto é, budismo tradicional, e usa o termo “mindfulness”, é, por definição, mcmindfulness.)
Sem dúvida, é preciso dizer, qualquer meditação (isto é, ficar sentado imóvel, com a coluna ereta, regularmente, por 5-15 min por dia), vai muito possivelmente melhorar sua saúde, sua qualidade de atenção, e assim tornar tudo que você faz mais fácil, mais efetivo e mais produtivo. Ora, qualquer atividade humana coerente requer atenção contínua, e se você treina em atenção contínua (nem que seja meramente quase que brincando de estátua, ficando imóvel), você refina a atenção e assim tudo melhora. Promulgar práticas assim, seja de que modo for, é meritório.
De fato, o tempo de meditação normalmente utilizado pelas práticas de mcmindfulness está no limiar de uma “dose homeopática”. E o efeito placebo de algo assim não pode jamais ser desprezado, uma vez que apenas imitar a pose do Buda carrega bênçãos incomensuráveis, e essa sem dúvida é a visão budista. Você gera interdependência direta com o Buda e sua sanidade extraordinária. Mas se você quer ser bem cético nessa análise, é só reconhecer isso como um placebo particularmente dotado de um elemento cultural extremamente potente, respeitado, e raramente tratado com cinismo (como muitas vezes são tratadas as outras práticas religiosas de outras religiões, e também as budistas).
Se o modismo da mindfulness fosse um pouco mais isento, mais preciso quanto a terminologia, ou menos vinculado ao budismo na publicidade, o problema sem dúvida seria menor.
Porém, para meditar, em todo caso, precisamos de um instrutor, particularmente se queremos praticar por mais tempo, ou se estamos com alguma ânsia de obter os resultados prometidos. Aprender meditação sozinho é muito raro: é preciso contato pessoal até na correção da postura. Há muitas armadilhas e formas de autoengano com relação à prática.
Nesse caso é duvidoso que pessoas que não fizeram vários milhares de horas de prática sejam capazes de instruir bem alguém na prática de meditação. Prática essa que não é livre de riscos: algumas condições podem piorar com a prática. Sem falar que há todo tipo de “experiências temporárias” e “doenças de meditador” que a tradição budista tão detalhadamente descreve, e que só alguém que conhece pessoalmente os problemas, ou conviveu com grupos grandes de meditadores, onde todo tipo de coisa se passa, pode ter desenvolvido a capacidade de curar. Estamos falando de 2600 anos de tradição com milhares de pessoas que fizeram 20 ou até 50 anos de retiro, meditando pelo menos de 10 a 14 horas por dia todo esse tempo. E se você quer um professor de meditação, você deve procurar o que tem as melhores qualificações, e isso geralmente inclui, tradicionalmente (no budismo tibetano, pelo menos, outras formas de budismo são igualmente ou mais exigentes) no mínimo, um retiro de 3 anos.
Claro, se a sua intenção é alguma higiene mental, fazer 5 ou 10 minutos por dia muito provavelmente não trarão problema algum. Mas mesmo nesse caso, embora você possa receber, sem maiores problemas ou tendências a surtos psicóticos, instruções de alguém que fez algumas workshops e tem alguns diplomas, em todo caso seria melhor procurar alguém que domina realmente o assunto. As credenciais em todo caso podem ser enganosas, e até anos de retiro não garantem necessariamente nada, mas a qualidade de meditação de um mestre é bastante evidente – até pela postura. Uma vez que se aprende certas coisas errado, ou se cria um hábito equivocado dentro da prática de meditação, isso torna a prática no seu sentido mais amplo bem mais difícil do que “chegar do zero”. E esse é um risco bem grande.
E é muito equivocada a ideia de que os centros budistas, na sua maioria, tenham uma mentalidade proselitista, e que exijam de você algum tipo de conversão. A maior parte deles lida com “interessados” o tempo todo, e trata muito bem a mentalidade secular. Lembre-se, você pode não acreditar em renascimento, mas os budistas tem paciência, se você não tomar refúgio nessa vida, fica um hábito mental e eventualmente você pratica (o caminho todo). Em termos de não julgar, quem fez mais meditação geralmente é melhor. Pessoalmente não conheço nenhum psicólogo que ensine mindfulness, no mundo inteiro, que tenha mais que uma qualificação superficial em meditação. Se algum fez um retiro de três anos, por favor, me indique o nome. Sem dúvida nenhum fez 20 anos, e aqui na provincial Porto Alegre mesmo, por quase toda a década de 90, havia um professor de Zen, japonês, que tinha essa qualificação. E você podia meditar de graça com ele várias vezes por semana, era só aparecer. (As contribuições para prática de meditação são livres, normalmente a participação em eventos no budismo, no ocidente, é cobrada, mas não as práticas diárias).
Além disso, no budismo sempre se soube que para certas condições de “perturbações dos ventos internos”, isto é, coisas como mania ou depressão, a meditação é contraproducente, isto é, pode aumentar o problema. Recentemente o The Guardian publicou notícia relatando que a mindfulness da psicologia começa só agora a reconhecer isso. A meditação não é uma prática feita por todos os budistas. Algumas vezes o foco em outras práticas é mais indicado. Particularmente, o treinamento em moralidade, onde se faz votos de, por exemplo, não falar rudemente ou inutilmente por algumas horas ou dias, parece benévolo para a saúde mental. A prática essencial de saúde no budismo é sila, isto é, disciplina ética, moralidade. A ação desvirtuosa (mentir para se autoengrandecer, por exemplo) é não só sintoma, mas também parte da causa dos problemas. Se a pessoa, mesmo artificialmente, cria um hábito de evitar certos impactos no mundo, sua saúde naturalmente melhora. Evidentemente, a meditação ajuda nisso (e isso ajuda na meditação) – mas a meditação não é necessariamente o foco ou o único remédio budista.
Mas todas essas recomendações são para você que mantém certo obstáculo secularista e que não quer tomar refúgio, se “tornar budista”. É óbvio que a meditação e outras práticas budistas não estão aí para produzir saúde, bem-estar ou sucesso – embora essas coisas sejam quase como “efeitos colaterais” inevitáveis.
Não, para aqueles que entendem algo dos ensinamentos budistas, a liberação completa do insatisfação básica de todos os seres através do reconhecimento da natureza da mente é o objetivo. Isto é, não é viver bem, ou melhor – mas obter as mesmas qualidades de um Buda, que é alguém que vê a realidade como ela é.
Na medida em que essas práticas seculares visam objetivos mais pontuais, elas se tornam produtos mais viáveis “no mundo capitalista”, e assim começa a existir uma corrosão da própria terminologia que o Buda usou, e que está funcionando tão direitinho há tanto tempo, com tanto mérito. Isso é um tanto infeliz.
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