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Iluminação? Depois do Futebol

O lado politicamente incorreto do budismo

Dzongsar Khyentse Rinpoche dançando ao estilo indiano.


Agora todos resolveram falar sobre o Budismo, sua expansão no Brasil e seus efeitos terapêuticos. Em vez de recorrer a dicionários, pedimos a dois praticantes da religião que falassem sobre ela. E qual foi o resultado? A história de um líder espiritual cineasta, provocador e fanático por futebol.

Por Bruno Galera e Eduardo Pinheiro

Sua Eminência Chagdud Tulku Rinpoche, mestre de meditação e um dos últimos lamas a receberem educação completa no Tibete antes da invasão chinesa em 1950, um ano antes de falecer apresentou Dzongsar Khyentse, 42, assim: “Há dois tipos de tulkus: os que precisam praticar e os que não precisam mais. Dzongsar é do segundo tipo, e seu reconhecimento como renascimento de Jamyang Khyentse Choki Wangpo está além de qualquer dúvida”.

Entre os tibetanos e aqueles que admiram a cultura budista, se alguém é reconhecido como tulku isto já o torna um incontestável objeto de reverência. Agora, se é um mestre consumado ao ponto de não precisar sequer praticar formalmente (coisa considerada indispensável tanto para mestres quanto para alunos), é o mesmo que chamá-lo de Buda. Além disso, Jamyang Khyentse Choki Wangpo foi simplesmente um dos mais importantes sujeitos que o Tibete viu nascer neste século. Com seus ensinamentos, conseguiu confluir diversas linhagens do budismo que até então poderiam parecer conflitantes.

Dzongsar Khyentse Rinpoche, Orgyen Tobgyal Rinpoche e um poster do Che Guevara.

Guerrilha de consagração.

Fora dos padrões

Dzongsar Khyentse não preenche expectativas convencionais. Certamente não esperamos um Buda que dirija filmes, ou que fale sobre a felicidade de finalmente ser capaz de defecar após uma constipação. Muito menos que brinque dizendo que ensinar budismo é apenas seu ganha pão, e que na verdade veio ao Brasil conhecer a tradição dos travestis e ir a praia ver garotas de biquíni. Sem falar que chamou de “sarcófago” o requintado e cuidadosamente decorado templo construído por Chadgud Rinpoche no Rio Grande do Sul.

“Vocês ainda podem se sentir atraídos por templos, mas eu, que vivi no meio disso desde criança, já não acho tão especial.” Foi o que disse em sua primeira visita ao Brasil, em 2001, para alunos de toda a América Latina que se deslocaram para a serra gáucha. Porém, isto não é tão incomum quanto pode parecer.

Estranhos mestres

Como se pode definir “mestre” na tradição budista? Uma das maneiras possíveis é: “alguém hábil em romper expectativas”. No budismo, ou pelo menos no tibetano e na sua forma indiana chamada “vajrayana” ou tantra budista, os mestres muitas vezes não seguem protocolos. São capazes de praticamente qualquer coisa para catalisar o estado desperto. Grandes santos desta religião geralmente são sujeitos que de certa forma subvertem, e bastante, as regras formais de comportamento e ação.

Exemplos? Em 2002 o “sarcófago” recebeu uma televisão. E, em meio às imagens de deidades e todo o material de prática formal (escrituras, imagens, sinos e outros instrumentos), Dzongsar assistiu a partida Santos X Boca Juniors, pela Libertadores da América, com os alunos. Alguns, ainda incrédulos diante da situação, permaneceram respeitosamente calados durante o jogo. Outros, em êxtase, torciam como se estivessem realmente num estádio de futebol. Dzongsar, impassível, apenas sorria com o desenrolar do jogo.

Se há uma coisa que o budismo tem de diferente com relação a outras doutrinas e filosofias é que há um reconhecimento muito preciso de que, em seu limite, os próprios ensinamentos podem se tornar obstáculos a seu objetivo. O objetivo de revelar a verdadeira natureza de cada ser, descrita em termos de liberdade e luminosidade, a natureza que é compaixão e sabedoria culmina com o reconhecimento da natureza vazia dos próprios métodos que levaram até ela. Em outras palavras, o budismo tem um dispositivo de segurança que assegura que ele mesmo não se torne um obstáculo a seu objetivo. Rinpoche é um especialista nessa área.

Capa da Shambhala Sun, novembro de 2003.


Bombeiro do inferno

Um professor de budismo brasileiro comentou após um dos ensinamentos de Dzongsar: “ele resgata os seres que estão prestes a cair no inferno vajra.” Trata-se de um inferno que só existe para praticantes budistas. Um âmbito no qual pessoas utilizaram errado até mesmo os pontos de vista mais sublimes e, portanto, nenhum deles funciona mais. Transformaram toda a estrutura budista numa forma mais claustrofóbica e sofisticada de aprisionamento, em vez de utilizá-la para a liberação.

Outro grande mestre que revolucionou a forma como o budismo é ensinado no Ocidente, Chogyam Trungpa, frequentemente se referia a essa condição como “materialismo espiritual”, e durante grande parte de sua vida lutou contra o que dizia ser uma armadilha, oferecendo aos seus alunos ensinamentos duros, porém de uma grande natureza compassiva e benéfica.

A maior habilidade de Dzongsar está justamente em quebrar qualquer vínculo estereotipado e equivocado com os ensinamentos budistas, através de uma corajosa humildade e uma boa dose de pé-no-chão. Suas referências jocosas e inesperadas atraem a atenção, e então somos fisgados de uma forma inusitada para o caminho da compaixão. Suas histórias são de imediata assimilação, porque falam geralmente de conflitos bastante cotidianos, relacionamentos amorosos, trabalho e, por que não, futebol.

O lama cineasta

Khyentse Norbu, como também é chamado, dirigiu dois filmes depois de trabalhar como consultor de Bernardo Bertolucci em O pequeno Buda. Em seu primeiro longa, A copa, aborda a vida de um mosteiro de refugiados tibetanos na Índia, onde os jovens monges são fissurados pelo esporte. Segundo o próprio mestre, trata-se de uma história real. Os garotos passam a arrecadar dinheiro para alugar uma TV e uma parabólica para que possam assistir a final do campeonato mundial (um dos meninos monges até usa uma camisa da Seleção Brasileira). Trata-se de uma comédia bastante leve e despretensiosa, que agrada pela bela fotografia e temática inusitada.

Seu novo filme, Viajantes e mágicos, recém apresentado ao público brasileiro no Festival do Rio 2003 e n 27ª Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo, agradou a crítica, justamente por ser leve e tratar de temas universais, coisa rara em meio às crescentes narrativas recheadas de violência e roteiros cheios de embromações estilísticas.

Ensinando no Brasil, em 2003. Em 2019, Rinpoche já esteve no Brasil concedendo ensinamentos por seis vezes.


Ensinando a jogar

Dzongsar Khyentse pensa que os filmes são um bom veículo para o ensinamento budista, e podemos nos perguntar que tipo de ensinamento é o de A copa. Certamente não o de um budismo intelectualizado e prepotente como visto por alguns ocidentais, nem mesmo o de uma exótica doutrina. O filme parece querer justamente desmontar as noções pré-concebidas da religião, que geralmente ganha ares de folclore bizarro ou soa para alguns como uma forma embuste. No próprio Oriente existem mistificações, e nada como um veículo tão popular como o cinema para mudar algumas concepções erradas.

Como assim?
Praticar: purificar a mente das aflições mentais: orgulho, raiva, inveja, desejo e ignorância. Ou melhor: depurar e eliminar os condicionamentos da mente.

Tulku: professor que renasce com o único objetivo de ajudar os outros


Publicado pela primeira vez na revista Radar em 02/12/2003

Siddharta’s Intent Brasil, presidida por Dzongsar Khyentse, cujo principal objetivo é preservar os ensinamentos e a cultura budista

Livros e links de Dzongsar Khyentse Rinpoche, artigo em tzal.org

O que não faz de você budista?, primeiro livro de Dzongsar Khyentse Rinpoche publicado no Brasil.

Não é para a felicidade, segundo livro de Dzongsar Khyentse Rinpoche publicado no Brasil


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