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Budismo e mistificação quântica

Buda na bolha quântica.


Quando Gilberto Gil lançou seu disco Quanta, em 1998, uma história circulava em que ele teria perguntado a uma mãe de santo como todo aquele “aché” acontecia, e ela respondia: “física quântica, meu filho”.

Para bem da verdade, a mistificação em torno da física quântica não é apenas culpa dos artistas ou da new age, mas foi em parte inadvertidamente iniciada pelos próprios cientistas, que usaram de metáforas criativas em sua popularização.

Mas o que, de fato, a física quântica tem a ver com o budismo? Quais são as distorções comuns nessa conexão?


A conexão da espiritualidade, e do budismo em especial, com a ciência, e em particular com a física quântica, passa por três dimensões: epistemologia, uso supostamente didático de metáforas, e a efetiva mistificação. Neste texto procurarei argumentar que a conexão com a epistemologia é válida e importante para ambos os lados; que o uso de metáforas é válido, mas muitas vezes intensifica a mistificação; e que a mistificação é a realidade imediata e negativa desse fenômeno. Em outras palavras, não é um argumento simples, não é uma simples questão de “sim, tem tudo a ver” ou “não, estão deturpando isso ou aquilo”.

Além disso, as questões epistemológicas em si são bastante sofisticadas — e é aí que há certa relação de certos modelos da física quântica com o budismo em particular.

Epistemologia em certo sentido é a própria ciência. Hoje chamamos de “ciência” certo tipo de investigação bem sucedida, certo conjunto de padrões que estabelecem o que é rigoroso, o que é uma evidência ou o que pode ser considerado uma teoria. A epistemologia é o estudo desses critérios, isto é, do que se constitui o conhecimento, e em que condições ele é ou não possível.

Essa tarefa não é fácil, e nem é livre de armadilhas, ou algo resolvido. A pessoa que tem uma visão ingênua da ciência — e isso inclui muitos cientistas — acredita que a epistemologia está pronta, os critérios já foram estabelecidos. No entanto, os estudos em filosofia da ciência neste século apontam que há frequentes rupturas no pensamento científico, isto é, de tempos em tempos se mostra necessário fazer uma revisão dos próprios critérios. O que parecia suficiente, se mostra insuficiente, e assim a ciência avança não apenas em seus termos, mas também ao alterar sua definição de si própria.

A cada ponto da história da ciência havia confiança em critérios que se mostraram imperfeitos, e acabaram substituídos. Não há nenhum motivo para pensar que esse processo esteja desacelerado ou não ocorra mais — pelo contrário.

Quando começamos a nos interessar por mecânica quântica, ainda como leigos, muitas vezes ouvimos termos como “paradoxo” ou “estranheza”. Porém, os “paradoxos” da mecânica quântica, coisas como a luz ser onda e partícula “ao mesmo tempo”, não são propriamente paradoxos. Essas supostas “esquisitices” vêm de duas tendências: a reificação de metáforas e a fixação nas perspectivas da mecânica clássica. Em outras palavras, os “paradoxos quânticos” são estranhamentos da visão clássica diante da visão quântica, e não simples esquisitices.

E não é como se a visão clássica se mantenha em conjunto com a visão quântica. A visão clássica ainda é ensinada por questões didáticas, e porque ela é suficiente em termos de, por exemplo, engenharia — não todos os problemas de engenharia, mas boa parte deles. Como ciência, como apresentação de uma teoria que explica o mundo, ela é uma visão que hoje não se sustenta de forma alguma. O que chamamos de “clássico” é o que foi superado, por mais que, no mundo especificamente macroscópico em que seres humanos estão inseridos, funcione como técnica. Não funciona mais como explicação em nenhuma circunstância.

Com relação ao que se estabeleceu, conceitos tais como “partícula” e “onda”, por mais que sejam formalmente redefinidos, vêm de metáforas da percepção humana convencional. Imaginamos imediatamente bolas de bilhar e alterações na superfície da água. Essas imagens servem para falar de coisas que de forma alguma se portam exatamente como bolas de bilhar e alterações na superfície da água — apenas que falar dessas coisas nesses termos tanto nos ajuda a entender certos aspectos como nos dificulta entender outros.

Mas a física sempre usou metáforas. Na era aristotélica, as coisas caiam porque tinham “amor” pela terra, pelo ponto mais baixo. A gravidade tinha essa conotação. Com a física moderna, a associação da gravidade com os movimentos celestiais foi uma grande descoberta, e surgiram em conjunto com a ideia de um universo semelhante a um relógio, em que as coisas estão “ajustadas” para andar em certas “órbitas”. A noção de “órbita”, reparando bem, é ela mesma uma metáfora que vem de ideias teológicas: os corpos celestiais estão simplesmente seguindo a inércia e se adaptando as forças ao redor. Eles não seguem caminhos no céu, esses caminhos são traçados com base numa aproximação do que eles seguem! Mas, a ciência começou com uma noção de órbita que presumia certas noções absolutas sobre tempo e espaço que advém diretamente de crenças teístas, e isso com o tempo foi se modificando.

O “problema de três corpos”, isto é, o cálculo da interação gravitacional entre três corpos, foi matematicamente solucionado em 1912 por Sundman — no entanto, mesmo com a computação de hoje, a convergência e a posição exata dos corpos com o passar do tempo requer tantos passos que não é praticável. A cada corpo a mais interagindo, o problema aumenta exponencialmente, e embora exista solução teórica para n-corpos, o cálculo na prática é impossível. E, como se sabe, há um pouco mais do que três corpos no cosmos. O fato de que um universo clássico com apenas três corpos vence nossa capacidade de reconhecer precisamente órbitas, e o fato de que mesmo assim as projetamos (com rigor matemático), diz mais sobre como encaramos a matemática do que sobre o mundo. A matemática, tradicionalmente, é a “mente divina” se mostrando na criação — e isso absolutiza o mundo ao ponto de que físicos realistas como Einstein não gostaram nada de ter que lidar com probabilidades quânticas.

O grande salto metafórico e criativo da física, no entanto, aconteceu com Maxwell. O cientista inglês precisava de um modelo para lidar com o fenômeno elusivo do eletromagnetismo, e acabou por usar ideias ligadas a fluidos. Pegamos algo que entendemos bem, que é algo semelhante a hidráulica, e aplicamos isso ao fenômeno invisível. Essa analogia foi extremamente bem sucedida, e daí em diante a física sistematicamente usa e adapta perspectivas clássicas ou corriqueiras — coisas da visão “de engenheiro” mesmo — para fenômenos muito mais sutis. O que, é claro, acaba demandando constante revisão.

Então, quando a física quântica mostra que a luz se comporta por vezes como onda, e por vezes como partícula, ficamos em choque, porque evidentemente uma coisa não pode ser duas coisas diferentes ao mesmo tempo. Porém, o que estamos dizendo é que os modelos (ou metáforas!) de onda e partícula são insuficientes, por si só, para dar conta do que é, efetivamente, a luz.

E aqui voltamos à epistemologia. É realmente possível conhecer um modelo “final” que dê conta de explicar o que é luz? Há três escolas principais, e uma delas efetivamente tem a ver com o pensamento budista.

Tradicionalmente, a ciência, e a física em particular, é realista. O realismo afirma que as coisas existem independentes do observador. Essa acepção do termo tem duas esferas, uma é ontológica: como as coisas de fato são (separadas); e a outra é epistemológica — isto é, as coisas só podem ser entendidas como algo separado.

O realismo é popular com bons motivos. É nosso modo de operação usual no mundo: é como usamos a língua, como fazemos café, ou nos dirigimos ao trabalho. De fato, a maioria dos realistas não consegue conceber a viabilidade de uma opção “antirrealista”.

Como isso se problematiza?

Nossa percepção usual e uso da língua são o que chamamos de “realismo ingênuo”, isto é, como não paramos para pensar no que estamos fazendo, seguimos como se as coisas fossem de fato independentes de nossos conceitos, percepções e hábitos. Quando começamos a analisar, porém, surge um realismo qualificado: o observador tende a se enganar quanto a verdadeira natureza dos objetos. Ainda existe uma coisa lá e uma coisa aqui, mas a fronteira se torna nebulosa, nossa percepção e capacidade de nomear, em algum sentido também qualificam o objeto.

O realismo é a estrutura comum da língua em sujeito e predicado e espelha um tanto duas crenças básicas que o budismo desafia: a crença num eu (sujeito) e a crença numa separação fundamental. Mas o budismo reconhece o realismo ingênuo como o modo de operação usual do que o budismo chama de “pessoas normais”, isto é, seres deludidos. O budismo reconhece o realismo[1] como um hábito ou tendência muito forte, ainda que seja enganoso.

O realismo também espelha estruturas cognitivas próprias da crença teísta. A maioria dos cientistas, mesmo quando se dizem ateus, fundamentalmente acredita na possibilidade da perspectiva de “olho de Deus”, uma objetividade absoluta que paira sobre os conteúdos igualmente absolutos no mundo. Isso vale até para alguém como Einstein, que relativizou o tempo, e “curvou” o espaço, mas manteve o “olho de deus”. Quando pensamos no universo, pensamos uma espécie de panqueca rechonchuda no centro, ou numa esfera — ela está lá, dentro do enquadramento visual que nossa mente projeta, na frente de nossos “olhos mentais”. Vemos, mentalmente, limites. E as coisas todas estão ali, dentro de um espaço em que o olho do observador foi posicionado, convenientemente, “de fora”. E o mesmo ocorre com o tempo. Temos um início, um meio e um fim — e olhamos o tempo com uma perspectiva de “fora do tempo”.

Mesmo que falemos, em princípio, em relatividade do tempo, nosso realismo ingênuo frequentemente projeta um modelo semelhante ao de uma fita cassete. Há um início, eventos se sucedem, e há um final — onde se dá um “pléc” e você precisa virar a fita ou a rebobinar. O conceito de “início do tempo”, no entanto, tanto para o budismo quanto para Kant, é autocontraditório.

Da mesma forma, o conceito de espaço ainda segue algumas visões absolutistas assumidas na época de Newton, por mais que tenham sido refutadas mesmo por pensadores ocidentais. A ideia de limite do espaço, igualmente, é autocontraditória. No entanto, postulamos os conteúdos dentro de uma espécie de “caixa” — o próprio espaço é “substancializado” —, posicionamos um olho que tudo vê a uma “distância” conveniente, e observamos os conteúdos da totalidade das coisas dessa perspectiva.

Wittgenstein contava uma anedota sobre o cético que, na hora da morte, passou a aceitar Deus: ele precisava existir, afinal de contas, de que outra forma a língua francesa poderia servir tão bem para descrever o mundo, não fosse um criador adaptar uma coisa para a outra?

O que chamamos de “realismo ingênuo” é o que é reificado pela linguagem e pela percepção usual dos sentidos. No entanto, ambas as estruturas surgiram, de acordo com a própria ciência, por pressões evolutivas. Caso queiramos ser verdadeiramente céticos, precisamos duvidar que as coisas tenham sido “desenhadas” exatamente para que as possamos entender — num nível mais profundo. Acreditar que a linguagem, ou nosso aparato cognitivo, foi feito para compreender o mundo (mais do que para sobreviver), é um salto verdadeiramente teológico. Literalmente teológico: a Igreja Católica vê a inteligência humana como aquilo que é dito “criado à imagem e semelhança” de Deus, e não o corpo, como normalmente imaginamos. Cientistas não deveriam assumir, enquanto cientistas, arroubos religiosos desse tipo. A princípio, nossas ferramentas cognitivas surgiram para a sobrevivência e perpetuação, apenas — esperar que delas brotem naturalmente estruturas capazes de investigar a natureza da realidade é próprio de um salto de fé.

Não é curioso que o próprio ceticismo científico, se examinado de forma radical e apropriada, leve a conclusão de que a compreensão do mundo é algo transcendente ao mundo? E que, portanto, a ciência, enquanto ciência que explica como as coisas são, não é tarefa que pode ser realizada por estruturas cognitivas que não passam de adaptação evolucionária?

Na versão budista dos fatos, meditamos para romper certos hábitos arraigados, tais como estruturas linguísticas e perceptuais, que surgiram da adaptação. Certamente, isso nasce de uma confiança de que, em primeira pessoa, não nos consideramos apenas máquinas darwinistas.

O que é chamado pelos budistas de “percepção ióguica” (após meditar consistentemente por anos ocorre um refino na mente e nos sentidos) é um reconhecimento imediato, não conceitual, de objetos dos sentidos. No caso da percepção visual, é ver cores e formas sem automaticamente lhes atribuir nomes ou fronteiras. Esse é um passo importante no exame da mente e da realidade, e surge de um reconhecimento de que o realismo ingênuo está nos contando apenas parte da história. No entanto, ao contrário do que se pensa, não é o objetivo viver num estado de cognição simplória e não conceitual: refinar a mente significa encontrar uma flexibilidade cognitiva em que não nos vemos presos pelas estruturas que naturalmente criamos.

É semelhante, de fato, ao processo da ciência — mesmo da mais tradicional e realista. Os bons cientistas seguem usando suas teorias, mas qual é o ponto mais interessante de uma teoria, para um cientista? É onde há problemas. O cientista futrica exatamente o ponto em que a teoria não explica tudo, e assim, ele amplia a teoria existente ou até mesmo desenvolve uma nova teoria que explica melhor mais coisas. Se o cientista for apegado à teoria, ele não vai ser um bom cientista. O cientista naturalmente precisa de flexibilidade cognitiva.

Porém, quando a ciência começou a encontrar limites no realismo — e essa foi a revolução quântica — essa concepção metafísica do mundo se mostrou bastante renitente. Embora os fenômenos quânticos tenham sido bem calculados e explicados de acordo com um substrato metafísico antirrealista ainda na década de 30, a devoção da ciência ao realismo é tamanha que não foram poupados esforços para produzir teorias que se adequem a ele. Muita verba e tempo foram investidos para que o realismo não fosse ameaçado, e hoje é possível dizer que há, nos últimos 40 ou 50 anos, modelos realistas que explicam e calculam relativamente bem boa parte dos fenômenos quânticos. De fato, há pelo menos seis modelos bem diferentes que efetuam bem os cálculos, e todos eles variam um pouco em termos de ontologia e epistemologia. Alguns são mais realistas, outros menos — embora, estritamente falando, quem faz essa análise da ontologia e epistemologia subjacente aos modelos não sejam os físicos. Os cientistas geralmente simplesmente presumem pressupostos metafísicos, sem tentar olhar diretamente para eles ou os assumir — geralmente com uma tendência fortíssima ao realismo, que é assumido como parte integral e necessária da ciência.

A relação com o budismo, no entanto, é estritamente com o primeiro modelo quântico desenvolvido — que por acaso ainda é o mais elegante[2], e o que introduz menos “variáveis ocultas” — isto é, remendos conceituais. Esse modelo é chamado de Interpretação de Copenhague, e é uma versão antirrealista dos fatos. Niels Bohr, o principal expoente desta interpretação, está em franca oposição a cientistas como Einstein e Stephen Hawking, realistas de carteirinha.

O termo “antirrealismo” vem da literatura realista, pode ser visto como um pouco pejorativo. A questão é que há várias escolas de pensamento que negam o realismo. Na filosofia ocidental, uma famosa é o idealismo berkeleyano, isto é, aquela visão que se popularizou (injustamente) com a expressão “se uma árvore cai sozinha no meio do mato, e ninguém viu, ela realmente caiu?” O idealismo basicamente propõe que a substância primária do mundo não está no objeto, não é a matéria ou o que quer que os físicos examinem. A substância primária é o observador, isto é, a mente.

Quem conhece o budismo superficialmente imediatamente reconhece algumas ideias semelhantes. O idealismo é, de fato, bastante forte no budismo. Embora não seja considerado a visão suprema, ele é liberalmente utilizado para refutar as visões inferiores, nomeadamente, as visões realistas. O idealismo budista é diferente do idealismo berkeleyano, mas guarda semelhanças com este, e é geralmente chamado de cittamatra[3] — “apenas mente”. Só o que existe mesmo é a mente[4]: o que nós chamamos de matéria, tempo e espaço, são hábitos e estruturas solidificadas da mente.

Basicamente, tudo é como um sonho. Esse sonho dura mais, tem mais consistência, mas não é essencialmente diferente de nossa experiência noturna. E, da mesma forma que com o sonho da noite, temos uma forte tendência a não reconhecer este “tecido onírico” como tal — reificamos nossa experiência corporal e o mundo externo, e passamos a usar a cognição e linguagem próprias dessa separação sujeito e objeto. O cientista, é claro, estuda esse objeto que reifica como naturalmente externo, sem examinar a natureza profunda das coisas, que é onírica — e muito menos sem examinar o viés de seu próprio aparato conceitual e cognitivo.

O ponto de considerar as coisas como um sonho é “acordar”, isto é, ter um sonho lúcido. Dessa forma, não levando as coisas tão a sério, não as solidificando, sofremos menos.

Essas são duas variedades idealistas de antirrealismo, uma ocidental e outra budista. No entanto, Niels Bohr não era um idealista.

A variedade de antirrealismo da Interpretação de Copenhague se aproxima mais da visão considerada superior pelo budismo, a madhyamaka, ou “caminho do meio”. Aqui idealismo e realismo são considerados compromissos metafísicos e ontológicos desnecessários. Caso a flexibilidade mental possa ser mantida, isso é o melhor. O realismo funciona bem no mundo, o idealismo tem sua profundidade — mas não é preciso se comprometer com qualquer das duas visões. É uma forma sofisticada de ceticismo.

Segundo a madhyamaka, o status “definitivo” ou último das coisas, o que elas realmente são — incluindo aí o mundo e todos os seus constituintes, bem como o observador e todos os objetos observados — é “além dos extremos”. As coisas são “meramente designadas”, apenas aplicamos conceitos sobre elas, o que elas realmente são, se é que podem ser ditas “serem alguma coisa”, não pode ser postulado — é indeterminado, e mais do que isso, indeterminável.

A partir da Interpretação de Copenhague, além do realismo, que embora mortalmente ferido, seguiu na física até os dias de hoje, surgiu outra forma de ceticismo radical que é chamada de “instrumentalismo”. O instrumentalismo é semelhante à Interpretação de Copenhagem: a diferença é que em vez de um ceticismo no nível ontológico, o instrumentalismo mantém o ceticismo apenas no nível epistêmico. Ele não é exatamente antirrealista, ele apenas supostamente assume um realismo com limites epistêmicos absolutos.

Em outras palavras, em vez de reconhecer a ontologia e a metafísica como essencialmente indetermináveis e tomar isso como um resultado, o instrumentalismo apenas “não se importa”. Em certo sentido, mais do que transformar toda a ciência numa “fenomenologia”, é um abandono da ciência pela mera engenharia. O instrumentalismo não visa explicar o que acontece, apenas “calcular bem”. Caso calcule, pouco importa o que está acontecendo “de fato” — o cálculo, em si, é “explicação” suficiente.

A princípio pode parecer que a diferença entre as duas perspectivas é basicamente nenhuma, no entanto há uma diferença crucial entre usar modelos com flexibilidade, e simplesmente ignorar a construção de modelos (porque afinal de contas, eles seguem lá, eles apenas estão sendo ativamente ignorados). Na prática budista também existe esse extremo, como um erro da prática: a pessoa aprende a funcionar no mundo, mas não se importa verdadeiramente com nada, nem em termos de sentido, nem em termos de ética — disso resultaram samurais e kamikazes. Parece muito profundo, mas na verdade é apenas um equívoco profundo.

Caso o leitor tenha chegado até aqui, atraído pelo título, terá reparado que não há muita mistificação na relação entre budismo e física quântica. É uma questão epistemológica. E epistemologia é a própria ciência. O budismo não desenvolveu laboratórios para estudar coisas externas, mas desenvolveu milhares de métodos para examinar como a mente se engana — práticas que começam com a depuração da flutuação intensa da mente, e que vão até o refino epistêmico que examina o próprio processo mental. E ninguém jamais foi tão sistemático quanto os budistas, nessa empreitada particular ou em qualquer outra coisa. É uma tradição que efetivamente tem apreço pelo detalhismo, com a estruturação e discriminação de infinitas peculiaridades.

Então, quando as pessoas dizem que o budismo é uma espécie de ciência, elas estão certas — apenas que nosso uso do termo atualmente ficou muito vinculado a certas ciências e certos objetos sob observação, e ao escopo realista.

Ademais, o tipo de isenção epistêmica obtido pelas práticas budistas pode ser muito útil até mesmo para os cientistas que seguem o estereótipo usual de examinar “essas coisas aí fora”, como pedregulhos, tecidos conjuntivos ou galáxias. A pessoa pode se perguntar: mas se o budismo é tão bom com esse tal refino epistêmico, porque a ciência budista não é tão avançada quanto a ocidental? E a resposta é simples: nós não a consideramos avançada porque nos focamos no “mundo natural”, e não na mente. Aqui no ocidente por esse ou aquele motivo, acabamos preferindo usar uns barbantes, arames e pesos e nos focar externamente.


Mas a mistificação existe. E é forte.

Quando as pessoas em geral falam sobre física quântica, hoje em dia, já dá vontade de esconder a cabeça num buraco embaixo da terra.

Há, é claro, as mistificações mais grosseiras, como “nossa mente faz a realidade”, ao estilo de O Segredo. Se você desejar bem forte, ele vai pedir você em casamento. E então você ganha na loteria. E, é claro, isso no limite se torna um sintoma psiquiátrico: pensamento mágico.

Quando o budismo diz que a mente molda a realidade, está querendo dizer que nossos hábitos mentais, inclusive os desejos, ocultam de nós mesmos coisas que estão na nossa frente e que poderiam muito bem ser melhor usufruídas — para nosso benefício e dos outros. Jamais se quer dizer algo no sentido de pensamento mágico — apenas pensar algo não produz essa coisa. Em certo sentido, pode-se dizer que fica uma marca mental, e daqui há muitas vidas você vai se encontrar preso nas mesmas mesquinharias que desejou nesta — em vez de efetivamente romper suas limitações. Nesse sentido, até pode ser.

Mas, ademais, se a pessoa quer viver bem, ela deve praticar ética. É assim que a mente transforma o mundo: você evita fazer o mal, você traz benefícios para os outros e assim sua experiência tende a melhorar.

Além disso, transformar a mente não é tão fácil quanto simplesmente “pensar forte” algo. Reconhecer nossos hábitos de reificação, nossas crenças metafísicas arraigadas, nossos preconceitos e vieses, e se esforçar por se libertar deles, não é tarefa exatamente trivial. Requer muito autoexame e muitos milhares de horas de prática formal sentado na almofada.

Mas há mistificações mais sutis. Por exemplo, na física há esse termo “entanglement”, algumas vezes traduzido como “embaraçamento”. Duas partículas seguem com propriedades casadas mesmo a uma grande distância. Se você afeta uma, afeta a outra. Mais rápido que a velocidade da luz, instantâneo. E aqui a metáfora faz o caminho inverso. A ciência usou todo tipo de metáfora hidráulica para falar de eletromagnetismo, mas ela não engole bem quando se usa coisas que se fala na mecânica quântica para dizer coisas “sobre o coração”.

No fundo, isso não é um conhecimento exatamente quântico. Apenas se está usando algo que tem (ou já teve!) certa respeitabilidade para dar mais peso as próprias afirmações. A mecânica quântica não está falando de telepatia ou de pensamento mágico, mas as pessoas que querem dar seriedade para suas visões — sejam elas pobres intelectualmente, ou efetivamente profundas — algumas vezes usam o imaginário da física quântica para dar respaldo ao que estão dizendo.

E isso causa muita irritação — embora os cientistas também adorem uma metáfora, e particularmente na mecânica quântica, eles gostem de gatos semi-vivos e semi-mortos e outras imagens criativas para explicar suas descobertas e dificuldades.


Outro elemento comum é achar que a física está próxima de reconhecer a vacuidade porque o átomo é feito principalmente de espaço.

Num nível muito primitivo, é importante reconhecer que o que vemos como sólido é, no fundo, a repulsão entre elétrons na superfície de moléculas e átomos, que de fato são feitos principalmente de espaço. Mas isso é um pouco parecido com dizer que seres humanos e pepinos são parecidos porque são compostos principalmente por água.

Vacuidade e uma simples ausência, um simples espaço vazio, não são a mesma coisa. Vacuidade é a insubstancialidade do que tomamos por substancial. O espaço é algo que usamos como metáfora para tentar aproximar o que se quer dizer por “ausência de essência”, ou “ausência de existência inerente/independente”. De fato, o espaço é tão vazio quanto a matéria ou energia que o podem preencher. Ambas as coisas, todo tipo de aparência, são vazias. Aquele espaço absolutizado que existe dentro dos limites do “olho de deus”, por exemplo, ele é um espaço que reificamos como uma substância — e que portanto não vemos como vacuidade. Mesmo que não haja “nada” ali, se nossos conceitos ou cognição transformam aquilo num objeto, nós não o reconhecemos como efetivamente vazio.

Em outras palavras, vacuidade não é bem assim.


O argumento, portanto, é que a epistemologia da Interpretação de Copenhague tem de fato a ver com a madhyamaka. As outras duas escolas de epistemologia ainda existentes na ciência hoje — realismo e instrumentalismo —, não. Não é toda a física quântica, é um modelo particular — que ainda se sustenta bem, com todos os ataques realistas que recebeu. De fato, essa disputa entre realismo e antirrealismo é o ponto de profundidade epistêmica, e a relação disso com o sofrimento estabelecida pelo budismo é que é o crucial. O fato do realismo estar também naturalmente associado ao teísmo, e à injustificação, é importante entender e ressaltar.

Depois, há a mistificação e a metáfora. Há abusos, e há criatividade. Hoje, pega mal porque saiu de moda, e quem fala nisso, sem ser especialista, geralmente fala bobagem. Mas, daqui a pouco, quem sabe, volta a ser moda — ou ainda mais relevantemente, quando outra ciência peitar o realismo, é bom que estejamos com nossa epistemologia budista bem afiada.


1. Estritamente falando, há formas realistas de budismo, como as duas escolas extintas usadas como exemplo nos debates da Índia Clássica e posteriormente no Tibete: a vaibhasika e a sautrantika — que acreditam, respectivamente, em unidades essenciais (separadas, independentes) de matéria e tempo. O mahayana, no entanto, é universalmente antirrealista.

2. O Teorema de Bell — para o qual foi estabelecido um experimento — confirma que a mecânica quântica não pode estritamente ser realista.

3. Cittamatra é um termo mais utilizado quando esse sistema budista está sendo refutado (pelo “caminho do meio”, a madhyamaka). O nome mais conhecido e usado pelos próprios proponentes do sistema é “yogachara” — isto é, “praticantes”, “meditadores”, aqueles que fazem “yoga”.

4. Estritamente falando, a cittamatra não afirma a existência da mente, mas a existência da mente é uma consequência lógica inevitável das afirmações cittamatrins — pelo menos de acordo com os seus principais refutadores, a madhyamaka.

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