41. Bhusuku (Shantideva)
O Monge Preguiçoso
No samsara eu desconhecia o Buda
E vivia apenas para saborear gostos diferentes
Então a realização unificou samsara e nirvana em êxtase,
E eu brilhei como uma joia no grande oceano.
O filho mais novo de uma família real chegou à famosa academia monástica de Sri Nalanda para ser ordenado na ordem mahasanghika. Mas ele tinha sido muito mimado enquanto criança, e achou não só difícil como pouco razoável abandonar suas idiossincrasias anteriores. Enquanto seus amigos monges estudavam, ele ficava deitado na cama. Enquanto seus amigos passavam horas em meditação, ele passeava pelo jardim do mosteiro para fazer a digestão. Seu outro grande prazer era a hora da refeição, onde ele saboreava cada grão de suas cinco porções de arroz.
Seu jeito preguiçoso irritava profundamente seus companheiros, e eles passaram a chama-lo Bhusuku, “O Indolente”. Por trás faziam fofocas sobre ele sem remorsos, diziam coisas igualmente rudes na sua cara, e alimentavam o desejo de que logo fosse descoberto.
Era costume em Nalanda que as escrituras fossem lidas todo o tempo, pela manhã, pela tarde e pela noite, em todas as estações. Para manter essa tradição, cada monge pegava seu turno sentando no templo sob o dossel de monges recitando sua parte memorizada dos sutras. Cada um fazia seu turno, sem exceção, menos Bhusuku, é claro. Como ele não tinha memorizado nada, ele geralmente perdia o turno. Numa instituição tão santa a perturbação e inimizade que surgiram disto foram realmente surpreendentes.
Finalmente o comportamento escandaloso de Bhusuku gerou uma severa advertência do abade. Foi-lhe dito que se não tomasse jeito e pegasse seu turno como todos os outros, ele seria expulso do mosteiro. Vários monges taparam o sorriso com as mãos ao ouvirem isto, evidentemente esperando pelo pior.
"Mas eu não rompi nenhum voto," Bhusuku argumentou em defesa própria. "Sou apenas um mau erudito. Isto é razão suficiente para me expulsar?"
O abade foi irredutível. Cedo pela manhã seu turno chegou. Se ele perdesse sua recitação dessa vez, ele estava fora. Os monges se deleitavam. Muitas fofocas mesquinhas sobre a iminente queda de um certo preguiçoso inútil corriam pela academia.
Apesar de sua advertência, porém, o abade era um homem muito gentil, e tinha certa simpatia pelo malfeitor. Naquela noite, depois de todos irem para a cama sonhar com a gloriosa comédia que aconteceria na aurora, o abade foi até a cela de Bhusuku para dar alguns conselhos.
"Bem, meu filho,” disse o abade, “tu estás bem enroscado por tua própria culpa. Gastastes muito tempo favorecendo teu estômago e sendo um vadio, tu certamente não aprendeu mais que uma meia dúzia de linhas de um ou outro sutra. Certamente falharás amanhã, ao menos que sigas meu conselho."
Bhusuku prostrou-se aos pés do abade e implorou por ajuda. "Qualquer coisa, senhor. Diga e farei."
"Muito bem," disse o abade, adicionando severo, “mas isso significa que não dormirás esta noite."
"Mesmo isto, senhor," disse o abalado monge.
"A única esperança para ti," disse o abade, "é passar a noite recitando o mantra de Manjusri, o Bodisatva do Intelecto. Deves recitar o arapacana mantra até os galos cantarem, e esperar pelo melhor." Ele então deu a Bhusuko os preceitos secretos da sadhana de Manjusri, e a bênção do mantra, e deixou o arrependido com sua tarefa.
Conhecendo bem sua fraqueza, Bhusuku tomou a precaução de amarrar a gola de seu robe ao teto com uma corda forte para que não tombasse de sono durante a noite. E toda a noite ele recitou o mantra que o abade havia ensinado - muitas e muitas vezes, até que ficou num estupor de fadiga.
Logo antes da aurora, sua cela repentinamente encheu-se de luz. Bhusuku sacudiu-se e decidiu que deveria ser o nascer do sol, e ali ele estava, nem um pouco mais esperto do que na noite anterior. Então, uma grandiosa voz ecoou do teto: "O que pensas que estás fazendo!"
Olhando para cima, o exausto monge viu uma figura enorme flutuando no ar sobre sua cabeça. "Estou invocando a ajuda do Senhor Manjusri para ajudar-me a recitar um sutra hoje mesmo, e não aprendi nenhum. Mas quem és tu, e o que queres de mim?"
"Que pergunta idiota," respondeu o incomum convidado. "Tens estado me invocando por metade da noite."
"T-t-t-tu és o próprio Manjusri!" gaguejou o surpreso monge.
"O próprio. Agora me diz o que tu queres e me deixa continuar com as minhas coisas."
Bhusuku teria ido ao chão se pudesse, mas ainda estava amarrado ao teto, então colocou as mãos juntas no gesto de súplica, e implorou, "Por favor, grande senhor, garanta-me o poder e realização de cada qualidade da perfeita sabedoria."
"Feito!" disse Manjusri. "Recita teu sutra quando fores chamado." E ele desapareceu tão repentinamente quanto tinha surgido.
O boato era de que hoje Bhusuku estava prestes a fazer um papelão, e o Rei Devapala e toda sua corte vieram para o show. No altar haviam grandes pilhas de flores cheirosas que todos os visitantes haviam trazido com eles.
A plateia estava cheia de risinhos e cochichos quando Bhusuku chegou no grande auditório. Eles surpreenderam-se quando ele caminhou confiante pela passarela e sentou-se no trono do templo - todos esperavam que ele caísse de cara no chão. Em vez disso, ele chamou o dossel de monges e sentou-se em posição de lótus. Olhou para a plateia com grande calma e esperou que fizessem silêncio. Quando ficou claro que ele ao menos tinha chamado a atenção de todos, ele levitou no ar sobre o trono, e seu corpo começou a brilhar com grande força, iluminando todo o grande auditório.
Aqueles que vieram rir ficaram bobos de perplexidade. Se entreolhavam apavorados.
Bhusuku cumprimentou o rei e perguntou, "Devo recitar um sutra tradicional, vossa majestade, ou preferiríeis algo de minha própria autoria?”
O rei começou a sorrir. "Disseram-me que teus hábitos alimentares são muito incomuns," ele disse, "e que teus hábitos de sono e tua predileção por passeios são objetos de grande maravilha para teus companheiros monges. Parece-me de acordo que mantenhas teus padrões de originalidade e recites um sutra de própria autoria."
Ao que Bhusuku começou a compor e recitar o sublime e profundo discurso que veio a ser chamado Bodhicaryavatara, "O Caminho para a Iluminação." Quando ele completou o décimo e último capítulo, ascendeu aos céus numa altura de sete palmeiras, inspirando renovada fé naqueles que estavam reunidos aquele dia.
"Este não é Bhusuku, ‘O indolente’", exclamou o rei. "É um grande sábio". E renomeou o monge Santideva, "Divina Paz."
As pessoas começaram a cobrir com flores os lugares onde os pés de Santideva haviam tocado, e os eruditos humildemente requisitaram um comentário sobre seu discurso. Santideva o concedeu, mas quando os monges pediram para que fosse seu abade, ele recusou.
Naquela noite, ele deixou seus robes, sua tigela de esmolas, e todos os seus artefatos sagrados sobre o altar como oferendas, e partiu secretamente.
À noite, ele deixou seu manto, sua tigela de esmolas, e todos os seus artefatos sagrados sobre o altar como uma oferenda, e partiu secretamente. Viajando por muitas terras, ele finalmente chegou em Dhokiri, uma cidade de cerca de duzentas e cinquenta mil famílias. Ali ele fez para si uma bela espada de madeira e pintou-a com alguma tinta dourada. No dia seguinte ele seguiu até a corte, prostrou-se diante do rei, e pediu um lugar como espadachim na guarda do palácio. O rei decidiu que era um rapaz bem-apessoado e contratou-o sem hesitar, ao bom pagamento de dez "tolas" de ouro por dia.
Santideva serviu o rei fielmente por doze anos. De dia vivia como qualquer outro soldado. À noite praticava sua sadhana, constantemente atento à natureza última da realidade. Todo outono, durante o grande festival da Deusa Mãe, Umadevi, ele acompanhou os guardas ao templo, como se ele mesmo fosse um devoto.
Ninguém havia percebido nada a respeito de sua verdadeira natureza até uma tarde quando todos estavam no depósito de armas polindo suas armas e reparando seus equipamentos. Um dos guardas olhou atentamente para a espada de Santideva. Parecia ser feita de madeira! Pensando no próprio benefício, o guarta foi imediatamente relatar sua descoberta ao rei e expor o impostor. Santideva foi requisitado à sala do trono.
"Mostra tua espada," pediu o rei.
"Estaria satisfeito em fazê-lo, senhor," disse Santideva, "mas causarei um grande dano a ti se obedecer."
"Faz como digo!" ordenou o rei. "Que eu mesmo preocupe-me com os resultados."
Enquanto Santideva buscava pela bainha, ele implorou, "Ao menos cubra um olho, senhor."
Rindo-se entre si, o rei e todos que ali estavam reunidos, cobriram um olho com a mão. Ao que Santideva desembainhou a espada do estado desperto. Enquanto ele a apontava para cima, uma luz tão intensa quanto a de e dez sóis preencheu todo o recinto, cegando cada olho desprotegido. Cada um ali, incluindo o rei, caiu de joelhos perante Santideva, implorando o perdão e misericórdia do iogue.
Santideva foi a cada pessoa na sala, começando com o mais baixo servo, e cuspindo em seu indicador, ele esfregou sua saliva curativa em cada olho machucado, restaurando magicamente a visão perdida. O rei implorou para que ele ficasse como seu sacerdote do palácio, mas Santideva recusou e partiu de Dhokiri naquele mesmo dia.
Ele tomou residência numa caverna nas montanhas isoladas e viveu ali praticando sua sadhana por algum tempo. Mas sempre acabava um objeto de curiosidade para caçadores e lenhadores que viviam nas redondezas, e eles mantinham-se atentos a suas atividades.
Um dia, um caçador real chegou à corte com um jogo raro para presentear ao rei e deixou dito que, com seus próprios olhos, ele havia visto Santideva caçando e matando gazelas e comendo sua carne assada no espeto.
O rei imediatamente seguiu para as montanhas com um vasto séquito para investigar essas sérias acusações. Eles chegaram à Santideva sentado em uma pele meditando em frente ao que parecia ser um simples muro de pedras.
O rei contou ao iogue o que havia ouvido, adicionando, "Tu que ensinastes o rei de Nalanda a engolir o próprio orgulho e que restaurou minha visão e a de minha corte, por que com tal poder a seu dispor tu machucas os seres vivos?"
"Eu não mato," disse Santideva, "Eu curo." Ao que gesticulou com a mão no ar, e a parede de pedra atrás dele abriu-se, revelando a entrada de sua caverna. Dali saíam todos os tipos de animais imagináveis. Enquanto eles iam pulando para a floresta, eles pareciam se multiplicar perante os olhos perplexos do rei e do séquito até que as criaturas cobriram cada colina e encheram cada vale. E então elas desapareceram como se nunca tivessem existido.
"Todos os elementos da experiência são apenas sonhos e ilusões," explicou Santideva. "Compreenda que todas as coisas são apenas produtos insubstanciais da imaginação, projeções da mente. Entra no caminho da liberação." E então recitou esse verso:
As gazelas de que me alimentei
Nunca existiram nessa terra
Ainda assim nunca deixaram de existir.
Se não há o que definimos como substância,
Então não pode haver caçador, nem caçado.
Não sou eu o preguiçoso por aqui.
Ao que Santideva converteu o rei de Dhokiri, e colocou todo o seu povo no caminho da verdade. Ele serviu-os fielmente por cem anos antes de ascender ao Paraíso das Dakinis.
Traduzido por Padma Dorje em 1999, a partir de Masters of Mahamudra e Legends of the Mahasiddhas: Lives of the Tantric Masters, de Keith Dowman, Buddha's Lions: The Lives of the Eighty-Four Siddhas, de Abhayadatta, traduzido por James B. Robinson e Empowered Masters, de Ulrich Von Schroeder. Por favor envie sugestões e correções para padma.dorje@gmail.com. 02/07/24
Mahasiddha Kanhapa
O de Pele Negra // Assim como não é possível conduzir uma carroça sem rodas, A prática de generosidade e conduta moral — sem um guru — não leva ao siddhi supremo.
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