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16. Nagarjuna


Filósofo e Alquimista

Quando o homem comum finge ser um siddha
é como um rebelde tentando usurpar o rei.
Quando o homem realizado persiste na tolice
é como um elefante preso na lama.

Muitos anos atrás, em Kahora no reino setentrional de Kanci, havia um jovem brâmane de surpreendentes poderes intelectuais. Quando chegou aos vinte já conseguia recitar de cor todos os textos brâmanes conhecidos e tinha até mesmo alcançado o dom mágico da invisibilidade.

Apesar disso, ele acabou entediado e insatisfeito com sua vida de erudição; ela acabou se revelando vazia e estéril. Ele então se entregou a uma vida de prazer sensual. Em pouco tempo não havia homem de família em Kahora que não houvesse visto seduzidas suas filhas donzelas e jovens esposas.

As explorações libertinas de Nagarjuna se tornaram tão audaciosas que ele acabou achando interessante se infiltrar no palácio do rei com três amigos, apenas de forma a se divertirem com as favoritas reais. Infelizmente, foram descobertos e perseguidos. Nagarjuna escapou permanecendo invisível ao lado do próprio rei, mas os três amigos acabaram decapitados.

O distrito inteiro ficou em polvorosa. Os brâmanes de Kahora se reuniram para decidir o que seria feito a respeito. Discutiram muitos planos, mas chegaram ao desespero sem encontrar solução para o touro descontrolado entre eles. Tristemente, decidiram que deveriam eles mesmos emigrar para outra região e deixar o povo com seu inimigo.

Naquela altura, Nagarjuna se via torturado numa tempestade de autocomiseração. A decisão dos brâmanes foi a última gota.

Todos respiraram aliviados no dia que Nagarjuna foi, de própria vontade, mas com muita vergonha, para o exílio. Frustrado e insatisfeito com a vida, ele aplicou na busca espiritual a mesma energia que antes havia investido na devassidão.

Viajando até o lado mais longínquo do Cemitério de Cremação do Frio Jardim, ele buscou e recebeu iniciação na doutrina do Buda. Em seguida viajou para a famosa academia monástica de Sri Nalanda, onde estudou as cinco artes e ciências até ser capaz de recitar de cor a biblioteca inteira da academia.

Ainda assim, sempre crescente no centro de seu ser, sua insatisfação espiritual novamente começou a manifestar arroubos de inquietação. Os livros não eram mais suficientes. Ele então começou a praticar a meditação que propicia Tara, a Salvadora. Quando a face dela lhe apareceu na prática ele abandonou a segurança do mosteiro e tomou a vida de monge mendicante.

Viajou muito por terras longínquas, esmolando em cidades e vilas. Mesmo assim, Nagarjuna ainda não estava em paz. Quando se deitava à noite, pensava para si mesmo “sou apenas um desviado sem valor. De que sirvo para quem quer que seja?”

Ele então decidiu fazer um retiro em Rajagrha. Ali começou a propiciar as dakinis dos elementos por meio da força do mantra. Ele começou propiciando as doze dakinis principais.

No primeiro dia do retiro, um terremoto sacudiu o pais.

No segundo dia, um rio transbordou e causou uma grande enchente.

No terceiro dia, um holocausto de fogo desceu dos céus.

No quarto dia, surgiu um tremendo furacão.

No quinto dia, caiu uma chuva de flechas do céu.

No sexto dia, raios vajra colidiram no solo.

No sétimo dia, as doze consortes se reuniram com toda sua força para vencer o meditador. Porém, nada do que fizessem conseguia distrair Nagarjuna mesmo por uma fração de segundo. Ele se manteve imperturbável em seu compromisso inviolável.

Reconhecendo sua maestria, as dakinis se aproximaram. “Peça o que quiser e lhe será concedido,” disseram humildemente.

“Na verdade, não preciso de nada,” Nagarjuna respondeu. “Exceto, talvez, um suprimento diário de comida para meu sustento durante o retiro”.

A partir disso, a cada dia, por doze anos, as dakinis lhe trouxeram quatro punhados de arroz e cinco punhados de vegetais. Ao fim da sadhana, todas as cento e oito dakinis ficaram submetidas ao poder de sua meditação.

Renovado e imbuído de um novo sentido de vida, Nagarjuna se encaminhou na renovação de um firme propósito de servir a todos os seres sencientes. Como seu primeiro ato, decidiu transformar a Montanha Gandhasila em ouro puro. Passo a passo, ele primeiro a transformou em ferro sólido. Em seguida, a transformou em cobre brilhante.

Exatamente quando estava prestes a transformá-la em ouro, a voz do Bodisatva Manjusri veio do alto. “O que te faz pensar que todos os seres sencientes seriam ajudados ao se transformar montanhas em ouro?” perguntou o bodisatva. “Isso só causará grande conflito e disputa. Como você pensa poder ajudar a seres comuns lhes dando ouro? Isso somente provocará maiores sofrimentos e negatividades.”

Nagarjuna reconheceu a sabedoria do Bodisatva e abandonou o projeto. Até os dias de hoje a Montanha Gandhasila tem uma coloração dourada.

Enfim viajou muito longe até o sul e chegou as margens de um grande rio próximo a Montanha Sri Parvata. Quando perguntou a alguns camponeses a direção do ponto mais seguro para cruzar, eles o guiaram para a parte mais perigosa do rio. Era cercada de acentuados bancos pedregosos e infestada de crocodilos. Ainda assim, os camponeses insistiram que era um lugar seguro para cruzar.

Mas assim que o iogue botou o pé na água, outro camponês se compadeceu e o avisou do grande perigo. Era um homem grande e forte, com uma voz compassiva, e Nagarjuna imediatamente confiou nele.

“Vou levar você para o ponto seguro, santo senhor,” disse o camponês, e assim levou o iogue para outro lugar. “Suba em meus ombros,” disse ele, “e o entregarei à outra margem completamente seco.”

Foram surpreendidos, no entanto, pois no meio do rio se viram cercados por crocodilos furiosos, que se debatiam e faziam a água espumar muito.

“Enquanto eu estiver vivo, o senhor não precisa temer nada” afirmou o confiável camponês, que seguiu impávido e determinado em meio à confusão, finalmente deixando o passageiro do outro lado, são e salvo.

“Por acaso não ouviu falar de mim?” perguntou o iogue para o camponês, “sou Arya Nagarjuna.”

“Sim, realmente ouvi!” respondeu o camponês, tomado de espanto.

“Peça o que quiser por ter me levado a outra margem desse rio,” disse Nagarjuna, sem mencionar fora ele mesmo que invocara os crocodilos como teste.

Sem hesitar, o camponês respondeu, “Quero ser um rei.”

Então o mestre jogou alguma água do rio em uma árvore sal e ela se transformou imediatamente num magnífico elefante branco com montaria real. Ele se curvou perante o novo rei e ajudou-o a montar com sua tromba.

“Que tal um exército?” o rei berrou a Nagarjuna no chão.

“Quando o elefante berrar, o exército aparecerá, O' rei,” o iogue respondeu.

Então, o trovão da chamada do elefante sacudiu a floresta, e num piscar de olhos, um exército inteiro apareceu, magnificamente trajado e armado, pronto para marchar.

Em algum tempo o camponês veio a ser conhecido como Rei Salabandha. Com sua esposa, Rainha Sindhi, ele reinava sobre oito milhões e quatrocentas mil famílias com grande sabedoria e benevolência.

Mas ele também foi infligido pela mesma insatisfação que atacava seu mestre. E depois de alguns anos, o camponês que virou rei foi em peregrinação atrás de seu guru. Quando encontrou-o, prostrou-se perante Nagarjuna e caminhou a seu redor propiciando círculos por algum tempo antes de ousar abrir seu coração.

"Esse negócio de governar não é nada como eu pensei que seria," ele confessou enfim. "É meu desejo do coração renunciar ao meu reino. Por favor, me deixa ficar contigo de agora em diante."

"Não," disse Nagarjuna. "Não posso permitir que faça isso. Porém, pegue esse Rosário Precioso como sua ajuda. Protegerei-te e a seu reino. E também te darei o néctar divino que confere tanto a imortalidade quanto destemor frente a morte naqueles que experimentam sua melífera doçura."

"Se me prometeres que um tempo chegará em que possa ficar contigo aqui o tempo todo, então aceito teus presentes e retorno a meu reino. Mas se me responderes não, não quero nenhum deles."

"Veremos," respondeu Nagarjuna, desfazendo todas as reclamações do discípulo com instruções na arte da alquimia, a fonte do néctar da imortalidade. E enviou-o de volta para seu povo por mais cem anos.

Durante esse tempo, o reino de Salabandha prosperou. As colheitas eram abundantes, e todas as pessoas e criaturas desse reino prosperavam e multiplicavam-se. Durante esses dias felizes, Nagarjuna espalhou os ensinamentos do Buda de um extremo ao outro do pais.

Mas, quando o tempo terminou, a Roda da Existência virou mais uma vez. Logo quando parecia que a era de ouro duraria para sempre, o espírito mal conhecido como Sundarananda ficou invejoso e ressentido do rei. Ele alimentou suas inquietações até que seu poder ficou tão grande que surgiram presságios de maldição no país. Mesmo a luz e o calor do sol começaram a diminuir, e a face da lua abençoada sumiu do céu noturno. As frutas caíram das arvores antes de ficarem maduras. As chuvas vinham nos momentos errados, e a fome assolou a região. Os campos e as florestas definharam e ficaram amarelos. E uma era de doença e guerra começou.

O Rei Salabandha interpretou esses acontecimentos como sinais de que seu guru estivesse em perigo mortal. Confiando o trono a seu filho mais velho, ele viajou com alguns de seus servos mais fiéis para sentar aos pés de Nagarjuna. Quando o mestre perguntou porque havia vindo, o rei cantou em lamento:

"Por que as dificuldades caíram sobre nos? Porque a doutrina de Buda nos deixou na mão? Porque crescem os poderes da escuridão? Porque as mas nuvens da tempestade ofuscaram a brancura da lua, a compaixão de Mahakarunika? Por acaso meu guru, o Diamante Indestrutível, caiu presa da decadência e da morte? Sinais muito ruins me fizeram vir aqui. Eu rogo a ti, por favor conceda-nos sua benção compassiva."

O mestre cantou em resposta:

Todo nascimento termina em morte.
Toda criação termina em dissolução.
Toda a acumulação termina em dispersão.
Tudo que parece real é transitório.
Ignore esses presságios.
Vem, beba o elixir do destemor!

Mas não muito depois das últimas notas da canção de Nagarjuna se irem, o maior medo do rei começou a realizar-se: O guru deu todos seus bens mundanos e preparou-se para a morte. O grande deus Brahma apareceu disfarçado de brâmane para pedir a cabeça do mestre. Mas quando Nagarjuna concordou, o coração do Rei Salabandha se partiu. Tomado de dor, ele jogou a própria cabeça aos pés do mestre e morreu.

O povo reunido amaldiçoou o brâmane por seu pedido. Todos recusaram-se a decapitar o mestre. Finalmente, Nagarjuna foi forçado a pegar uma folha de grama kusa e fazer o dever ele mesmo. Quando terminou, o mestre pegou a própria cabeça cortada com as mãos e entregou-a ao brâmane. Todas as coisas verdes embranqueceram, e a virtude e o mérito dos homens sumiram da terra. Oito yaksis, as elementais fêmeas tão fiéis a seu serviço, vieram permanecer de guarda sobre o corpo de Nagarjuna. Elas permanecem ali.

Depois da morte do mestre, uma grande luz entrou no corpo de Nagabodhi, o sucessor e filho espiritual de Nagarjuna. Até este dia, aquela luz radia como os raios de uma lua cheia na mais clara das noites. Quando os ensinamentos e compaixão de Maitreya, o Buda Ainda Por Vir, preencher a terra, Nagarjuna ascenderá novamente para nos servir.


Traduzido por Padma Dorje em 1999, a partir de Masters of Mahamudra e Legends of the Mahasiddhas: Lives of the Tantric Masters, de Keith Dowman, Buddha's Lions: The Lives of the Eighty-Four Siddhas, de Abhayadatta, traduzido por James B. Robinson e Empowered Masters, de Ulrich Von Schroeder. Por favor envie sugestões e correções para padma.dorje@gmail.com. 02/07/24

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