03. Virupa
O Mestre das Dakinis
A realidade espontânea disposta pelo Mahamudra é minha.
O meramente permanecer nas coisas como elas são, sem fabricar, sem atingir, sem um "eu".
Salvo do poço do niilismo pela experiência do autodespertar,
Salvo dos céus do eternalismo pelo desapego definitivo,
Esta realidade é consumação de imaculado deleite e plena consciência.
Quando o rei Devapala reinava sobre o antigo império de Bengal, Virupa nasceu na província oriental de Tripura. Foi ordenado monge ainda bem jovem, e vivia na grande universidade monástica de Somapuri, onde estudava e meditava juntamente com mil outros monges.
Quando ainda jovem, Virupa recebeu iniciação da Dakini Vajravarahi, a Dakini com um rosto de javali pretuberante na cabeça. Constantemente esforçado na direção de resultados meditativos, ele recitou dez milhões de mantras de Vajravarahi duas vezes ao longo de doze anos. Mesmo com toda essa acumulação ele não teve nem mesmo um sonho significativo, e isso o incomodou muito. Um dia ele ficou tão deprimido que jogou seu mala numa latrina. "O que essas contas tem a ver com a felicidade?" se perguntou. Na noite daquele dia auspicioso, no momento da prática da noite, exatamente quando ele estava se dando conta que não tinha um mala, uma Dakini apareceu e colocou um mala em sua mão. Ela então lhe deu esse conselho: "Filho afortunado, não fique assim. Continue sua prática. Livre sua mente do hábito de pensar nas coisas como sendo isto ou aquilo, e abandone toda divagação e pensamento crítico. Desenlace sua mente das ficções."
A pureza inata que é a natureza da mente,
Esta é a Vajravarahi essencial.
Ela está aí mesmo,
Então não procure noutro lugar,
Esta atitude é tola e infantil.
A natureza da mente, uma joia que realiza desejos,
Desembaraçada de todas as ficções mentais,
Esta é a realização que importa.
Virupa praticou a disciplina espiritual de Vajravarahi por mais doze anos, e atingiu a realizaçõa de Mahamudra. Já que assim ele concomitantemente atingiu o poder sobre a vida e a morte, habituou-se a beber álcool e comer a carne que seus criados lhe traziam e cozinhavam. Um dia um de seus criados apanhou alguns pombos que viviam no mosteiro, torceu seus pescoços e os preparou para a mesa. Ao perceber o sumiço dos pombos do mosteiro, um monge observador tocou o sino e convocou uma reunião.
"Quem entre nós está comendo pombos?" Demandou resposta.
"Certamente nenhum de nós mataria pombos," respondeu o venerável aos monges reunidos. "Tal ato seria inimaginável!"
Durante uma busca por todas as celas do mosteiro, um monge olhando pela janela de Virupa o viu sentado à mesa com uma torta de pombos e um copo de vinho. Em uma nova reunião, os monges decidiram que Virupa deveria ser expulso do mosteiro.
Virupa tomou suas roupas monásticas e sua tigela de mendicante e as deixou perante uma imagem do Buda no templo do mosteiro. Por uma última vez ele se prostrou perante o Buda que ele havia cultuado por mais de 24 anos, e então se foi. No portão do mosteiro, ele foi interrompido por um monge que lhe perguntou sua destinação.
"Vocês me expulsaram do mosteiro," respondeu Virupa, "seguirei a estrada que me sustente."
Perto do mosteiro de Somaputri havia um grande lago, e a superfície do lago estava coberta de folhas de lótus. Ao aproximar-se do lago, Virupa colocou um pé sobre uma das folhas, e percebendo que ela não submergia, ele cruzou todo o lago pisando de folha em folha, e com o nome do Buda em seus lábios, ele atingiu a outra margem. Quando os residentes de Somaputri viram tal milagre, eles se encheram de remorso. Foram até Virupa e se prostraram a ele, tocando seus pés com a maior devoção.
"Mas porque você matou nossos pombos?" eles perguntaram humildemente.
"Era uma ilusão, como todos os fenômenos temporários," respondeu o mestre. Ele instruiu os criados a trazer a ele os ossos de pombo e então, segurando-os no alto, estalou os dedos e os pombos voltaram à vida e revoaram, maiores e mais belos do que eram antes. Este milagre foi observado por todos ali presentes.
Assim Virupa abandonou a vida de monge e se tornou um iogue. Ele realizou seu próximo milagre nas margens do Ganges. Tendo pedido por algo de beber e comer à deusa do rio, Ganga Devi, ela lhe recusou. Esta recusa enfureceu Virupa, e com um comando irado ele partiu suas águas e cruzou para a outra margem.
Na cidade de Kanasata, Virupa entrou numa taberna. Sua anfitriã lhe serviu uma jarra de álcool e um prato de arroz, que muito o deleitaram. Então ele pediu mais bebida, e repetiu o pedido várias vezes, até esgotar a taberna. Quando a anfitriã pediu que pagasse a conta ele enterrou sua p'hurba entre a luz e a sombra, parando o sol no céu — ele pagaria quando a luz acertasse a p'hurba. Pelos próximos dois dias e meio Virupa seguiu bebendo, consumindo quinhentas cargas de elefante de destilados. Neste momento o rei de Kanasata, sem saber da presença de Virupa, estava apavorado; seus ministros não sabiam o que fazer, sem entender a causa desse desastre que se abatia sobre o seu reino. Finalmente a própria deusa do sol apareceu ao rei em sonho, revelando que era o débito de Virupa a uma mulher numa taberna que a havia atado. O rei pagou a dívida, e então Virupa desapareceu.
Virupa viajou pelo reino de Indra, uma terra habitada por brâmanes extremistas. Ali ele se deparou com uma estátua de Mahadeva, o Grande Deus Shiva, esculpida num bloco único de pedra de seissentos e oitenta pés de altura. Os brâmanes que cuidavam da estátua ordenaram que Virupa se curvasse à estátua.
"Não é adequado que o irmão mais velho se prostre ao irmão mais novo", disse o mestre.
O Rei de Indra, que por acaso havia passado por ali para cultuar a imagem, deu seu apoio aos sacerdotes. "Se você recusar-se, nós o mataremos." Ameaçou o rei.
"Seria uma ação negativa eu me prostrar a essa deidade," insistiu Virupa.
"Então que o carma ruim recaia sobre mim!" disse o rei.
Virupa colocou suas palmas em homenagem e a grande imagem de pedra se quebrou ao meio, e uma voz que veio do céu ressoou, "Mestre, estou às ordens!"
"Jure que protegerá o ensinamento do Buda!" ordenou o mestre.
Fazendo o juramento de proteger os ensinamentos, a estátua se restaurou. As oferendas feitas pelos devotos de Shiva foram então entregues a Virupa, que repassou aos devotos de Buda naquele local, e se diz que estas oferendas sustentam os budistas até hoje.
Depois de Indra Virupa perambulou até Devikotta na Índia oriental. As pessoas nas redondezas de Devikotta haviam tornado-se feiticeiros comedores de carne humana. Eles costumavam deixar um "recepcionista" na entrada da cidade para jogar feitiços sobre viajantes incautos, de forma que eles pudessem ser capturados facilmente quando chegasse a noite. Virupa, e também um menino brâmane que havia passado antes, foram enfeitiçados na estrada em direção à cidade, onde ambos esperavam encontrar alojamento e comida. O menino encontrou comida, e então foi direcionado por um prestativo budista até um templo nas cercanias da cidade, onde poderia dormir.
"Todos aqui são feiticeiros," o budista o advertiu. "Não sobraram seres humanos. Todos eles causam dificuldades, mas você pode dormir ali no templo."
Virupa encontrou o garoto no templo e o abençoou com um mantra de proteção antes de ir dormir. Enquanto isso as bruxas se reuniram para realizar seu rito sanguinário de sacrifício. Elas haviam obtido carne de animais, mas nenhuma "carne de primeira" dos seres humanos. O feiticeiro que havia enfeitiçado os dois viajantes na estrada, informou o grupo de seu sucesso, e imediatamente dois foram destacados para apanhar as vítimas. Apesar de seus esforços persistentes, o menino brâmane protegido pela reza de Virupa não podia ser movido, mas o próprio Virupa havia dormido numa placa de madeira, e assim foi transportado pelos feiticeiros sobre ela. O agradando com álcool, eles prepararam seu banquete e então, prontos a matá-lo, afiando as facas em prontidão, eles começaram a rir cada vez mais. Nesse momento Virupa também começou a rir, mas ele riu o som terrível de doze tons do Heruka, um som que fez as gargalhadas dos feitiçeiros parecer como o riso de crianças brincando, e eles todos desmaiaram de pavor. Quando acordaram, o iogue lhes obrigou a fazer o voto de refúgio no Buda, e de dai em diante seguir seus ensinamentos.
"Se vocês mantiverem a fé que despertei em vocês," Virupa disse a eles, "vocês não serão prejudicados. Mas se vocês fracassarem em renovar seu voto diariamente, e se vocês negligenciarem a prática do voto de bodisatva, vocês perderão um copo de sangue de suas veias, sem dano a seu corpo. Se vocês voltarem-se a qualquer outro deus como refúgio, desvinculando-se do ensinamento do Buda, este disco cortará suas cabeças, e o Demônio do Norte chupará suas veias até que fiquem secas."
Diz-se que até hoje o disco e o Demônio são visíveis como constelações de estrelas no céu. Tendo convertido os feiticeiros de Devikotta em protetores dos ensinamentos do Buda atados por juramento, Virupa se realocou para outro país, mas foi numa visita a Devikotta alguns anos mais tarde que Mahadeva, o Grande Deus Shiva, e Umadevi, sua consorte, criaram a ilusão de uma cidade de quatro milhões e meio de habitantes os quais honraram Virupa e lhe fizeram oferendas. A comida para o festim que celebrou sua vinda foi trazida do Reino dos Trinta-e-Três Deuses, e de todos os palácios dos deuses.
Virupa deixou estes versos autobiográficos:
Na grande academia monástica de Somaputri
Fui ordenado e levei uma vida de disciplina silenciosa.
Pela virtude de minhas ações passadas uma emanação divina
me concedeu iniciação, bênção e votos,
Mas pratiquei minha instrução com uma mente deludida,
E por doze anos, sim, doze anos, não tive nem sequer um sonho auspicioso.
Finalmente, entediado, joguei meu mala numa latrina, xingando alto,
Mas uma Dakini me concedeu uma visão de instrução,
Que me deu novas forças, e segui na prática
Até a realização da perfeição intrínseca da roda da vida.
Então depois de me treinar na ioga de uma mente livre de conceptualizações,
Os monges de Somaputri, da ordem dos Mahasanghikas,
Totalmente deludidos, me expulsaram do mosteiro,
E de forma a dissipar seu equívoco,
Em meditação caminhei sobre as águas.
Me voltei ao Ganges e comi um fruto proibido;
Entreguei o sol como garantia para patrocinar meu deleite dos sentidos;
Quebrei a estátua dos brâmanes e assim reduzi seu orgulho;
E depois de converter os feiticeiros de Devikotta
Mahadeva reconheceu meus muitos poderes e qualidades,
Criando uma cidade para prestar honras e oferendas a mim.
Se você não acredita em minhas histórias,
porque ter respeito pelo Darma do Buda?
Virupa viveu por setessentos anos, e então, finalmente, ele atingiu a liberação última no reino puro das Dakinis.
Traduzido por Padma Dorje em 2010, a partir de Masters of Mahamudra e Legends of the Mahasiddhas: Lives of the Tantric Masters, de Keith Dowman, Buddha's Lions: The Lives of the Eighty-Four Siddhas, de Abhayadatta, traduzido por James B. Robinson e Empowered Masters, de Ulrich Von Schroeder. Por favor envie sugestões e correções para padma.dorje@gmail.com. 02/07/24
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