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O Rei dos Fantasmas


Chogyur Lingpa e Dza Patrul eram jovens contemporâneos de Jamgon Kongtrul e Jamyang Khyentse Wangpo, que fizeram uma renascença budista no Tibete oriental do século dezenove. Ambos os mestres iluminados estudaram de uma forma não sectária sob a orientação de muitos dos maiores mestres de seu tempo, recebendo transmissões de todos os ensinamentos sobreviventes e linhagens orais.

Diz-se que monges malvados renascem, em alguns casos, como reis fantasmas. Samaya refere-se aos votos e compromissos tântricos.

CERTA VEZ CHOGYUR LINGPA DISSE AO abade Khenpo Rinchen Dargyé, um de seus principais discípulos: "Deverias ir a Dzachuca e receber ensinamentos de Patrul Rinpoche, especialmente o Bodhicharyavatara, de Shantideva, que ele sabe de cor. Ele é um professor inesquecível, transborda sabedoria e bênçãos".

O Mestre dos Tesouros graciosamente deu a seu erudito discípulo uma carta de recomendação pessoal, dirigida a Patrul, dizendo: "Por favor, dê roupas, alimento e Darma a este meu orgulhoso discípulo".

Khenpo Rinchen Dargyé era um monge completamente ordenado, um exemplar detentor dos três veículos da tradição Budista: hinayana, mahayana e vajrayana. Pela sua aparência externa era um renunciante desapegado, um desabrigado monge seguidor do caminho, enquanto sua atitude interna era a de um bodisatva compassivo, cujos votos altruístas infalivelmente colocavam as necessidades dos outros diante das suas. Secretamente, ele era um desinibido praticante dos ensinamentos não duais do tantra budista, o vajrayana.

Carregando seus imaculados trajes monásticos num ombro, sua grande vasilha de esmolas nas costas e sua bengala de mendicante na mão, finalmente o khenpo, depois de muitos dias a pé, chegou à presença de Patrul. Enquanto o venerável abade prostrava-se perante Patrul, este exclamou: "Ah-yii! Aqui está o rei dos fantasmas!".

Então levantou-se rapidamente, sem dar chance a Khenpo Rinchen Dargyé de oferecer as três prostrações formais. Rinchen Dargyé mal conseguiu apresentar sua carta de apresentação, que Patrul jogou num canto escuro, antes de ser expulso da cela espartana do lama.

No outro dia, reunindo sua coragem, o khenpo novamente apresentou-se a Patrul, o vagabundo iluminado. Ele pediu instrução espiritual e orientação, especialmente ensinamentos sobre a "Entrada no caminho do Bodisatva", o Bodhicharyavatara, como seu professor Chogyur Lingpa havia instruído.

Patrul replicou: "Não posso dar-te estes ensinamentos. Não sou professor; não há nada que eu possa fazer por uma pessoa importante como tu. Que queres de um velho tolo que nem eu?". E o khenpo foi novamente expulso do recinto.

Na manhã seguinte, Rinchen Dargyé renovou seu pedido. Patrul disse a ele: "Bem, fique por aí; então veremos". Por um mês, o implacável Patrul não pronunciou uma palavra sequer de instrução na presença do khenpo. Rinchen Dargyé aparecia diariamente, prostrava-se ao mestre e sentava alimentando esperanças e bebendo chá fraco - finalmente ia embora.

Sendo uma das mais altas regiões de Kham, Dzachuka era fria e assolada por ventos. O rigores incomuns da montanha rugosa de Patrul provaram-se inconfortáveis para o elegante abade. Finalmente Rinchen Dargyé confessou ao mestre: "O Mestre dos Tesouros Chogyur Lingpa enviou-me para receber ensinamentos de ti. Mas se não vais me conceder nem uma palavra de conselho ou instrução, devo retornar a ele de mãos vazias. Porém, se, por preocupação compassiva, tu gentilmente consentires em me ensinar, por favor saibas que tenho fervorosa fé tanto em ti quanto na linhagem impecável que representas e corporificas. Eu realmente desejo praticar teus ensinamentos ao ponto mais alto. Não tenho votos monásticos quebrados, nem samaya vajrayana danificado, e tenho purificado todos os pensamentos invertidos. Por favor, ensina teu servo humilde!". O famoso abade e erudito continuava a assediar o mestre vestido em trapos de ovelha.

Sem dar muita atenção a esta fala elaborada, o lacônico Patrul replicou despreocupado: "Tá, volta amanhã". Na manhã seguinte, quando Rinchen Dargyé apareceu, Patrul deu a ele um robe monástico dizendo: "Aqui está a roupa". Então presenteou o abade com uma perna de carneiro. "Aqui está a comida", ele disse. Enfim, Patrul presenteou o khenpo com um volume do Bodhicharyavatara, dizendo: "Aqui está o Darma".

Então o provocativo mestre concluiu: "Pois é, agora tu já recebeste roupa, comida e Darma, como queria o Mestre dos Tesouros. Amanhã deves ir".

Profundamente desapontado, Rinchen Dargyé prostrou-se perante Patrul no chão de terra, curvando-se várias vezes, fervorosamente gritando: "Por favor, dá-me ensinamentos!".

Patrul disse impassível: "Chogyur Lingpa disse para te dar roupa, comida e Darma. Já te dei; é isso". Porém, Rinchen Dargyé persistiu implorando a Patrul para libertá-lo da ilusão através dos preciosos ensinamentos, para benefício dele e dos outros.

Finalmente, quando intuiu que Rinchen Dargyé estava maduro, o mestre sutilmente começou a ensinar. Continuou por muitos meses. Khenpo Dargyé rapidamente progredia, finalmente tornando-se um dos grandes mestres de seu tempo.

O khenpo ficou eternamente grato a Patrul pelas lições pessoais que recebeu - não somente pelos ensinamentos formais, mas também pelos modos bruscos e dureza que o mestre continuou a mostrar, de forma a eliminar o orgulho e pretensão de Rinchen Dargyé.

O khenpo sempre contava que Patrul o havia chamado de "Rei dos Fantasmas" no primeiro encontro e que o havia purificado por fazê-lo esperar tanto, porque percebeu que Rinchen Dargyé estava afetado por um resíduo oculto de autoestima, por ser um erudito e monge exemplar.




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