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Budismo e Palavras Carregadas

Alguns temas de debate internos ao budismo são recorrentes, muitas vezes ocorrendo por mera inexistência de uma nomenclatura livre de equivocidades, visto que os signos são os mesmos ainda que os sentidos variem de contexto para contexto — e isto ocorre não só entre linhagens diversas, mas mesmo entre diferentes conjuntos de ensinamentos numa mesma linhagem. Além disso, a variedade de traduções e o caráter difícil destas traduções para línguas ocidentais—devido às dramáticas diferenças culturais — cria um jargão específico, e muitas vezes debatedores habituados com os usos muito peculiares destas palavras traduzidas no contexto do budismo não conhecem a história ou sentido comum destes termos dentro da cultura ocidental.

Algumas questões disputadas em particular são muito comuns — e mesmo a tarefa de descrevê-las com uma terminologia direta não é fácil, já que elas ganham miríades de formas dentro de um conteúdo que no fundo muitas vezes se resume a alguns poucos pontos. Ainda assim, parece ser necessário delinear do que tratam estes problemas tão comuns para evitar que eles sejam banalizados, particularmente porque eles supostamente estão no cerne da definição do que seja ou não darma do Buda.

Tendo isto em vista, a primeira questão que podemos levantar é a do “eternalismo versus niilismo”. Na verdade esta questão vai desde um cunho emocional, que podemos dizer seja semelhante a uma dicotomia ingênuo/mau humorado, passando pelas noções de ir além de apego e aversão, esperança e medo etc. Mas ela ganha contornos mais intelectuais na discussão sobre substância, isto é, o que seria uma “ontologia” budista.

Na verdade, o budismo não poderia ter uma ontologia, já que o aristotélico “ente enquanto ente” é exatamente o objeto da negação dos ensinamentos budistas — isto é, quando se fala em “não eu” ou “não existência inerente” ou ainda “não existência independente” de qualquer objeto, em termos dos ensinamentos budistas, está se negando a existência exatamente do “ente enquanto ente”, e portanto da substância. E, exatamente por isso, muitas vezes nos ensinamentos budistas se usa o termo “insubstancialidade”, e pelo mesmo motivo se fala da qualidade onírica de todas as coisas — todos os sete símiles famosos usados pelo Buda apontam nessa mesma direção. Segundo o budismo, todo sofrimento advém da reificação do ente, isto é, uma justificativa para uma existência separada.

Bom, mas o problema começa aqui. Isto seria até mesmo simples, o budismo seria uma mera negação de uma tendência arraigada de nossos sentidos, tendência esta ainda mais fortemente incutida em nós pela linguagem e pela filosofia. Parece mesmo que boa parte do budismo está neste nível de “mau humor”, e algumas vezes os professores de fato brincam: é apenas porque nossa tendência ao eternalismo é tão forte que, antes de entender o que está além de eternalismo e niilismo, é talvez preciso negar um pouco. Isto é, é preciso aprender a inverter a tendência arraigada antes de ir além de tanto a tendência natural quanto da tendência adquirida pelo próprio budismo.

É nesse sentido que os ensinamentos budistas são concedidos, e algumas vezes nos parece haver contradição entre os métodos. Um exemplo que surge é o de uma cartolina enrolada que desejamos plana, primeiro enrolamos a cartolina na direção oposta, depois a deitamos num lugar plano com algum peso sobre ela. Alguém nos observando na fase de enrolar a cartolina no sentido oposto poderá entender que nosso objetivo nunca poderia ser deixá-la plana.

Assim, para eliminar o apego ao padrão usual, afirmamos que a ontologia não é possível. Não há, de fato, justificação nenhuma para a substância. Dissolvemos um por um os fenômenos na vacuidade, isto é, a ausência de um lastro ou substrato para o surgimento, cessação e desaparecimento deles. Isso é o enrolar da cartolina no sentido oposto.

Porém, a cartolina plana não nega nem afirma os seus possíveis enrolamentos. Isto é, quando falamos da vacuidade da própria vacuidade, percebemos a qualidade luminosa ou presença espontânea das coisas que se apresentam, exatamente como se apresentam. Não é necessário transformar alguma coisa, a cartolina repousa além dos extremos.

Esta expressão “além dos extremos” parece bastante importante. Quando falamos em “caminho do meio” a primeira imagem que nos vêm é a da moderação, isto é, o jovem Buda tinha sua cartolina enrolada no palácio com suas mil esposas e seu filho, e depois enrola para o lado oposto, comendo só sementes e cocô de passarinho sob uma árvore no meio do nada, e enfim atinge o caminho do meio, onde as cordas da vina não são nem tesas demais, nem soltas demais. Ou seja, ele come direitinho, conversa com as pessoas e leva uma vida de sanidade básica livre de incessantemente buscar novas experiências. Pelo contrário, relaciona-se com o que aparece, usufrui com prudência e se abstêm com prudência. Este certamente é um dos aspectos de “ir além dos extremos”, e é certamente virtuoso lembrar a todos que o Buda era como nós, nada tão especial.

Porém aqui precisamos introduzir uma palavra pouco entendida, mas bastante relevante para este conceito: transcendência. Essa é uma palavra carregada em nossa cultura ocidental, muitas vezes com conotações indesejáveis, e até mesmo naturalmente pejorativas. Para os cristãos, ou pelo menos a maioria deles, Deus transcende porque precisa ao mesmo tempo estar separado de sua criação e ser capaz de intervir nela. Essa é uma ideia partilhada pelo neoplatonismo, ainda que possa surgir a ideia de que o sujeito (ele mesmo ou um princípio dele) poderia estar além do mundo sensível, meio que olhando com desdém para estas formas corrompidas e temporárias, ele mesmo em contato com a atemporalidade. Enfim, Kant vai dizer que a coisa em si (aquele mesmo tal ente do qual tudo é vazio para os budistas), por estar além da experiência sensível, é transcendente. E, por extensão, ele vai dizer que todas as ideias racionais humanas que não estejam vinculadas a um dado sensível são também transcendentes. Já os existencialistas vão falar de uma transcendência bem mais humanista, ou seja, quando o sujeito se percebe em seu contexto real, em termos do passado e do futuro, ele é livre nos atos de transcendência que realiza — isto é, ele age livre dos condicionamentos impostos por uma contextualização equivocada de sua existência. Porém, tudo isto está bem longe dos ensinamentos budistas.

No budismo não temos criador, a linguagem não é lastro da realidade e a liberdade não é contextualizar a existência (ou pelo menos não apenas isto). Aliás, Kant e a maioria dos filósofos veriam um grande problema com as afirmações budistas sobre o inefável; é considerado um contrasenso a linguagem indicar com sentido algo a respeito do qual não tem acesso racional — isto é, nem mesmo a existência ou inexistência de algo desse tipo. Para o primeiro Wittgenstein, no entanto, lógica, ética e estética são transcendentes. E parece que ao fim do Tractatus ele chega numa espécie de negação parecida com o enrolar da cartolina para o lado oposto. Isto é, se é que algo está além da evidência empírica, não há porque falar disso. Filosofia construtiva, conhecer um dado novo a respeito da realidade através da filosofia, é, portanto, impossível. A única coisa que podemos fazer é enrolar a cartolina para o lado oposto. Em vez de construção de conhecimento, terapia.

Porém os budistas nunca se envergonharam do “nonsense” do Buda, que falou de muitas coisas sobre as quais normalmente não seria possível falar. Isso porque a fala do Buda não está dizendo coisas a respeito de coisas, mas sim ativamente nos engajando no reconhecimento da experiência do próprio Buda. Nesse sentido, ela á transcendente, porque a experiência do Buda não é transmissível, e num outro sentido, também não poderia ser privada, interna apenas ao próprio Buda. Assim, que o Buda surja e fale o que fala não é algo tão convencional quanto o “além dos extremos” mais simples poderia indicar.

As pessoas mais simplórias, porém, usam o termo “transcendência” num sentido particularmente estranho. Primeiro elas imputam ao termo uma visão dualista, e curiosamente não é nem a questão de uma substância mais um não-sei-o-quê, como os neoplatonistas, mas sim, incrivelmente, duas substâncias. Temos uma mais grosseira, sólida, aquela da mesa de trabalho, telefone e levar as crianças para a escola, e uma sutil, onde moram espectros, mortos, deidades. Esses dois mundos são claramente um o espelho do outro, e isso vem lá de Platão ou dos vedas, e muitas vezes é onde as pessoas acham que reside a espiritualidade—conhecer e relacionar estes dois mundos.

A noção de “matéria” por exemplo, é bastante curiosa. Há formas de budismo que sustentam uma postura realista, ou seja, que existe uma pessoa, existe o budismo, e existe mais um monte de outras coisas acontecendo, num mundo um pouquinho separado, e que de vez em quando nos afeta aleatoriamente—ou seja, ele está lá fora, mas de vez em quando, interfere de algum jeito. A ciência ocidental sustenta uma visão semelhante, só sem o budismo. Então há toda esta matéria com que a pessoa pode, ou não, se relacionar, e que pode, ou não, afetar a pessoa—que a ciência quer conhecer e que o budista quer deixar onde está. De fato estas formas de budismo chegam a falar de partículas, e até mesmo unidades discretas de tempo (quase como se o mundo operasse em quadros por segundo, como um filme). As formas de vacuidade que estas escolas ensinam consistem em falar sobre a composição das coisas e o fato de que elas são impermanentes. O além dos extremos deles é meramente a moderação e a prudência. Ainda assim, considera-se meritório estudar isto, porque se acredita que certas pessoas não conseguem penetrar nos ensinamentos que descreverei a seguir.

É preciso no entanto deixar claro que as noções populares e as primeiras noções de vacuidade não são rechaçadas pelas visões superiores, e sim aproveitadas por compaixão. Então quando ocorre de criticarem o budismo ou algumas de suas formas por guardarem noções folclóricas ou visões incompletas em suas formas, isso é perder de fato a grandiosidade do escopo da mente do próprio Buda. Os ensinamentos que transcendem a mente simplória de fato começam com essa perspectiva de ir além do mau humor. Em vez de rechaçar visões, estudar as propriedades e armar um leque de possibilidades de relacionamentos com os mais diversificados seres. E talvez por isso as formas de budismo que se fixem nessa atitude pluralista cutuquem as outras com a ideia de que é necessário focar mais na compaixão.

A mente do Buda é como um diamante lapidado em supersimetria, isto é, cada uma das facetas reflete todas as outras, sem exceção e completamente. Assim, todo e qualquer fenômeno apresenta o ensinamento do Buda em sua inteireza. Que ele tenha surgido com uma cabeça, dois braços e duas pernas e falado palavras, que ele seja humano, isto é miraculoso, esotérico, sobrenatural! O objetivo de reconhecer alguém como especial só pode ser o de gerar mérito. A mente que se fixa ao convencional, e prefere não se maravilhar, possui certa mesquinhez com relação à gama de possibilidades. É como uma criança mimada que rejeita participar da atividade desafiadora por preguiça. Se ela apenas olhasse pela janela, veria o quão divertido é.

A maioria das pessoas considera sobrenatural o Buda ter uma aura, ou o budismo acreditar em seres de outros tipos de materialidade, uma materialidade mais sutil, “reinos dos deuses”. Mas estas são extrapolações ainda dentro do óbvio, ou pelo menos, nada disso precisa ser tomado literalmente. O que surpreende as pessoas é que os seres sutis do budismo estão todos no samsara, e em geral estão em situação pior do que a humana, pelo menos no que diz respeito a praticar o darma. Surpreende ainda mais o Buda dizer que ele não pode ser reconhecido pela sua aparência externa, extraordinária que possa parecer, e que quem se prostrar a ele pelas suas características é um herege!

Então o que o Buda quer que reconheçamos senão aquilo que é natural? Porém, quando falamos deste natural de dentro da artificialidade da linguagem, ele, curiosamente, surge como transcendente. Porque transcendente? Porque a pujança de naturalidade não permite que a linguagem opere de forma a convencer ou explicar, e sim apenas no demonstrar, no mostrar. A outra margem é aqui, e ainda assim dizemos “outra”. O rugido do leão paralisa os corações das vítimas pela intensidade e a baixa frequência em que opera. Toda a artificialidade é devorada pelo darma, não sobra coisa alguma.

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