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Buda Rebelde: minha experiência de tradução do livro e algo sobre as quatro confianças


Nos círculos budistas a publicidade em torno do lançamento do livro de Dzogchen Ponlop Rinpoche foi intensa. Um lama de linhagem relativamente próxima – o clássico ka-nying, uma mistura das tradições nyingma e kagyu, como a exposta por Trungpa Rinpoche, Tulku Urgyen e tantos outros lamas de quem somos fanboys – mas também bastante moderno em sua abordagem geral, e com muita presença nas redes sociais (na época, 2007-2008, particularmente o Twitter), lançando um livro com esse título sensacional: Rebel Buddha. Frisson total.

O livro virou sonho de consumo dármico imediato, não só por essas qualificações do autor e pelo título, mas também pela capa – fielmente reproduzida na edição brasileira – a silhueta de um Buda composta por colagens de ícones da modernidade e da cultura pop. Com tudo isso os conteúdos tinham que ser bombásticos. A expectativa era algo como um Além do Materialismo Espiritual para millennials – ou até Shantideva para a geração das redes sociais.

Com uma expectativa tão grande, era difícil não se decepcionar com um ou outro aspecto do livro – e ainda assim, aqui temos um clássico inconteste. Para um livro com o título “Buda Rebelde”, minha única crítica seria a de que ele preenche muito as expectativas daqueles que anseiam por um budismo livre das “armadilhas culturais”. E isso porque essa “rebeldia” é já hoje um tanto institucional no budismo, e mais ousado agora talvez fosse justamente incorporar elementos culturais: isso sim seria chocante, inusitado e contracultural. Mas que tipo de crítica é essa? Como William Blake disse, “a reprovação do tolo é um sábio elogio”: a maioria das pessoas anseia exatamente esse tipo de liberação do darma perante as amarras culturais. Quem sou eu para me meter com essa química que as pessoas têm com a perspectiva de Dzogchen Ponlop Rinpoche?

Não sou ninguém! Quer dizer: fui eu quem sugeriu o livro para a Lúcida Letra, e quem o acabou traduzindo. E na verdade é tão mais fácil se engajar em atividades que reconhecemos como fontes de vasto mérito que a chance do trabalho ficar bom aumenta muito. E creio que acabou se mostrando uma tradução fluida e cuidadosa, que agora está na segunda tiragem.

A Lúcida Letra me convidou para escrever algumas palavras sobre um ensinamento contido na pág. 168 do livro, As Quatro Confianças. Não lembro se cheguei a comentar com o editor na época, mas ao reler agora, já reconheço o diferencial que me chamou a atenção, e que pode também lhe ter saltado aos olhos.

Como você já deve ter o livro em mãos, ou o terá em breve, vou fazer outras opções de tradução e usar paráfrases (outras palavras). Assim, este texto se torna um contraponto justamente ao que há de tão especial na perspectiva usada por Dzogchen Ponlop Rinpoche.

As quatro confianças (catuhpratisarana em sânscrito, tonpa shyi em tibetano) são:

1. Confie na mensagem dada, não na personalidade do mensageiro;
2. Confie no sentido, e não apenas nas palavras;
3. Confie no sentido real, não apenas no sentido expediente;
4. Confie na sabedoria, não apenas na mente comum.

Se você tem o livro em mãos, em primeiro lugar você vai perceber que o fraseamento de Rinpoche é muito mais simples. E o motivo é claro: ele é o mestre cheio de compaixão, eu estou apenas impondo minhas viagens intelectuais sobre seus impecáveis ensinamentos diretos.

Esse ensinamento das Quatro Confianças foi concedido pelo próprio Buda, e está presente no cânone em sânscrito e tibetano, embora em essência não seja muito diferente do conselho que o Buda dá também em páli no Mahaparinirvana Sutra. Muitos grandes mestres efetuaram comentários sobre esses quatro pontos, e em particular podemos destacar o comentário pelo mestre nyingma Mipham Rinpoche em seu A Espada da Sabedoria, e, mais modernamente, além de Dzogchen Ponlop Rinpoche, temos um ensinamento sobre esses pontos no clássico de Sogyal Rinpoche, O Livro Tibetano do Viver e do Morrer.

Voltando para o mero papagaio em questão aqui (eu mesmo), em primeiro lugar, vamos considerar o termo “confiar”. No original, “rely”, que está também próximo de “depender”, no sentido de buscar como apoio – o formato seria “prefira tomar por base isso, não aquilo”. Sustente sua prática com isso, não com aquilo. Matthew Kapstein, um tradutor bastante elogiado, usa a opção “quatro orientações”.


A primeira confiança é focar no ensinamento, não no professor. O Mahaparinirvana Sutra implica que, das Três Joias – Buda (professor), Darma (ensinamento) e Sanga (comunidade) – se precisamos dizer que alguma tem precedência sobre as outras, devemos dizer que a Joia do Darma tem precedência.

Algumas vezes isso é utilizado como um argumento contra o grande valor que depositamos no mestre espiritual, em particular no vajrayana (tantra budista, o veículo que pretende produzir a iluminação da forma mais urgente para benefício dos seres). Porém, Ponlop Rinpoche deixa bem claro: “há muitos professores de valor cuja aparência e estilo de vida não correspondem às nossas expectativas.” Devemos então “confiar mais no ensinamento do que em nossa percepção da pessoa que os concede”.

Por exemplo, quando eu usei o termo fanboy no início dessa resenha, há nesse uso algumas perspectivas inusitadas que precisam ser entendidas. O estilo da cultura tibetana (veja aí as armadilhas!) é considerar bela a expressão humilde, mesmo que um tanto fabricada (isto é, mesmo que, em certo nível, se trate de falsa humildade – é parte de um treinamento). Dizer que temos devoção, devoção verdadeira, por um professor – pela devoção ser algo incomum – é um tanto se gabar. Assim, dizer que somos fanboys, quer dizer que, óbvio, temos lá uma devoçãozinha imperfeita, cujos defeitos humildemente confessamos. A expressão "fanboy" é pejorativa, e eu estou a aplicando a mim mesmo principalmente.

E porque fanboy é justamente uma expressão pejorativa? Porque implica algum tipo de devoção cega, curtir algo por razões superficiais. Qual é o único motivo de prezar um professor? Seu exemplo e seus ensinamentos. Porém, o seu exemplo, caso trate-se de um grande mestre, está completamente além de nossa compreensão. Então, confiamos nos ensinamentos – não em nossas projeções sobre a pessoa que nos leva até eles. Isso está de pleno acordo com todos os níveis de ensinamento, do hinayana mais voltado a um Buda no passado distante, ao vajrayana mais voltado à mosca que nos incomoda como manifestação pura de Guru Rinpoche. O que importa é o que o fenômeno nos diz, não a nossa tietagem.

Isso não implica evitar procurar professores qualificados, não examiná-los e não receber ensinamentos orais, e ficar apenas com ideias que lemos em livros. Isso significa exatamente o oposto: se abrir mais ao que os mestres estão dizendo, e se focar menos em mera idolatria. Devoção verdadeira significa encontrar uma corporificação do darma, não um sujeito apenas superpoderoso que vai supostamente validar sua existência através do mero relacionamento com ele.

A segunda confiança é não ficar preso nas palavras, mas olhar o que está sendo dito em termos de intenção, aplicação e resultado. Que finalidade tem essas palavras? Como posso relacionar isso com minha circunstância? De onde elas brotam?
Caso nos foquemos nos conceitos que geramos em torno das palavras, entramos no que se chama “samsara do darma”. Parece que há algo profundo ocupando nossas mentes, mas estamos apenas jogando “Super Trunfo” com conceitos. Precisamos reconhecer que estamos doentes e seguir imediatamente o tratamento. Reconhecendo a circunstância atual como a de alguém que tem uma flecha enfiada no olho, não debatemos (interna ou externamente) nada que não seja imediatamente relevante para nossa circunstância. Em outras palavras, é se focar em olhar para a lua que o dedo aponta, e não fitar o dedo que é mera indicação.

A terceira confiança separa dois âmbitos do discurso do Buda, ou de qualquer mestre realizado. Em tudo que ele fala há algo que se aplica a circunstância atual, e algo que se aplica de forma atemporal, a qualquer circunstância. Algo que se aplica a uma pessoa e um momento no espaço e no tempo, e algo que revela a natureza da realidade além do tempo.
O sentido expediente do ensinamento de um Buda pode ser algo como se focar em praticar virtude para atingir melhores condições, enquanto que o sentido definitivo pode ser algo como praticar virtude sem expectativa nenhuma. Algumas pessoas, por algum tempo, necessitam operar em termos de suas expectativas de melhorar condições – sem tais expectativas, naquele momento, não praticariam virtude, e o melhor é se engajar em virtude de todo modo –, devido a essa necessidade particular e momentânea o Buda ensina um método que acomoda essas necessidades temporárias e peculiares à ignorância adventícia do ser a ser beneficiado.

Já o sentido definitivo é que a virtude se coaduna com a realidade independente de seus resultados, e conhecer a realidade é praticar virtude. Quem reconhece o sentido mais profundo do ensinamento precisa se ater a ele, e não ficar fixado no que foi temporariamente estabelecido para o benefício de alguns em algum momento ou lugar.

Só porque existem ensinamentos expedientes para lidar com necessidades específicas e momentâneas, isso não quer dizer que devamos confiar neles em detrimento daqueles ensinamentos que funcionam além dos extremos de passado, presente e futuro, e em quaisquer circunstâncias. De fato, mesmo em meio aos ensinamentos expedientes – e no fundo tudo que está em palavras tem um grau de expediência – precisamos reconhecer aquilo que está operando além das circunstâncias particulares do ensinamento.

É como se o dedo estivesse apontando para um desenho da lua, e enfim, para o reflexo da lua num lago – e então agora podemos reconhecer o objeto que ele aponta no céu, e que é a fonte daquelas representações conceituais (convencionais, o desenho) e relativas (o reflexo).

Enfim, a quarta confiança nos leva a confiar na mente de sabedoria, e não na mente comum. Na nossa tradição, a sabedoria não é uma mente adquirida, mas um estado natural que sempre esteve presente (mas que muitas vezes não reconhecemos). Assim, muitas vezes não vivenciamos o sentido final das coisas, e sim, vivenciamos meramente o que “lembramos” em termos das palavras que ouvimos, e dos sentidos dessas palavras. É preciso confiar na experiência do sentido vivencial último que as palavras e seus sentidos convencionais apenas evocam.

É nossa mente convencional que se trata de uma construção elaborada, e que ocasionalmente desvia nosso foco de nossa verdadeira natureza para sua expressão dinâmica na forma de eventos externos e de nossos próprios pensamentos. A fonte derradeira de refúgio e de todos os ensinamentos é essa base sem dono, perfeitamente contente no resplendor de todas as possibilidades. Confiamos justamente nisso, e não na profusão de reflexos parciais – ainda que sejam nada mais do que expressão de sua liberdade.

(Para adquirir o livro, vá ao site da Lúcida Letra.)

Possam Dzogchen Ponlop Rinpoche e todos os lamas ka-nying, bem como todos os demais professores budistas, e todas as pessoas que coerentemente produzem benefício no mundo, vindo elas de uma tradição espiritual ou não, terem longa vida e verem suas aspirações e atividades se realizando sem esforço. Que possamos estudar e colocar em prática os ensinamentos de Rinpoche, e que seus ensinamentos se espalhem sem limites, e que todos atinjamos prontamente as quatro confianças.

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