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Além do Certo e do Errado


Pema Chodron é uma monja estadunidense da linhagem Kagyu do Budismo Tibetano, e é diretora da Abadia Gampo, em Cape Breton, Nova Scotia. Foi aluna do falecido Chogyam Trungpa Rinpoche e em 1974 recebeu ordenação como noviça de Sua Santidade Gyalwa Karmapa. Tomou ordenação completa como monja em 1981. É autora de “The Wisdom of No Scape” e “Be Grateful to Everyone: A Guide to Compasionate Living”, ambos da Shambala Publications. A editora Helen Tworkov conduziu esta entrevista para a Tricycle em Nova Scotia em Junho de 1993.

Tricycle: Pema, sua vida se desdobrou num paradoxo interessante. Sendo a diretora da Abadia Gampo, um dos poucos centros budistas na America do Norte a manter preceitos monásticos tradicionais, e porque tem sido uma monja celibatária por vinte anos, você é considerada eminentemente confiável, uma professora além de qualquer reprovação em termos de conduta ética; ao mesmo tempo, você tornou-se uma das principais representantes da linhagem vajrayana de Trungpa Rinpoche, um professor que ficou lendário tanto por seu comportamento pouco convencional — especificamente o fato dele beber e fazer sexo com alunas — quanto por sua grande realização espiritual. Desde sua morte em 1986, tem crescido a preocupação sobre o uso impróprio da autoridade espiritual, particularmente com relação a sexo e poder. Hoje, mesmo alguns dos alunos que no passado devotaram-se a Trungpa Rinpoche, têm reconhecido dúvida em seus corações. O comportamento que eles um dia consideraram iluminado agora talvez considerem errado. Com relação a sua própria visão, houve alguma mudança?

Pema Chodron: Minha inesgotável devoção a Trungpa Rinpoche vem dele ter me ensinado, de todas as formas que foi capaz, que nunca conseguimos fazer as coisas certo ou errado. Considero grande sorte minha que de alguma forma tenha sido jogada numa compreensão do budismo que a tradição zen costuma chamar “mente do não saber”: apenas não saiba. Não saiba o correto. Não saiba o errado. Minha própria opinião é a de que se você vai fazer as coisas certo ou errado, você nunca vai sequer poder falar em cumprir seus votos de bodisatva.

Tricycle: Como você compreende o voto de bodisatva?

Pema Chodron: O voto de bodisatva tem algo a ver com ficar gelado, nú, sem roupa alguma, em qualquer situação que se apresente a você, e perceber como você odeia certas pessoas, como elas lhe incitam de todas as formas possíveis, como você quer ainda assim se manter, como você quer ir para casa ficar debaixo das cobertas. Ver tudo isto apenas aumenta sua compaixão pela situação humana. Somos todos basicamente contra não nos descobrirmos perfeitos, e ainda assim queremos estar abertos e estar disponíveis para os outros. Minha sensação do que significa ser um bodisatva no caminho, um aluno-guerreiro-bodisatva, é que você está constantemente preso em "não saber." Não pode dizer que sim, não pode dizer que não. Não pode dizer “certo”, não pode dizer “errado”. Trungpa Rinpoche era muito provocador. Em “Além do Materialismo Espiritual” ele diz que a tarefa do amigo espiritual é insultar o aluno, e esse era o tipo de sujeito que ele era. Se as coisas ficavam muito suaves, ele criava o caos. Tudo que posso dizer é que eu particularmente precisava disto. Não gostava de ser queimada e provocada, mas era disso que eu precisava. Ele me mostrou como eu estava presa a padrões habituais. Quando mais próxima dele ficava, mais minha confiança nele crescia.

Tricycle: No que essa confiança se embasava?

Pema Chodron: Não era uma confiança em sua previsibilidade, ou a crença de que ele seguia algum tipo de regra estabelecida. A confiança era a de que sua única motivação era ajudar as pessoas. Todos seus ensinamentos diziam respeito a fazer as pessoas abandonarem o apego a algum tipo de segurança. E eu realmente queria romper minhas fundações. Eu queria ser livre dos padrões habituais que mantém o chão sobre meus pés e que mantém a segurança falsa que nega a morte. As coisas não são permanentes, elas não duram, não há nenhum tipo de segurança final. Ele estava sempre tentando nos ensinar a relaxar na insegurança, na ausência do chão. Ele me ensinou como viver. Dessa forma sou incondicionalmente grata a ele.

Tricycle: As histórias dos encontros sexuais de Trungpa Rinpoche com suas alunas ainda perturbam muitas pessoas. Elas alguma vez a perturbaram?

Pema Chodron: Não. Mas ele me perturbava. Ele me perturbava um bocado. Eu não conseguia enganá-lo, e isso era desagradável. Mas era exatamente o que eu precisava. Algumas vezes, em certas situações, consigo me ver como a grande mentirosa que sou, uma verdadeira artista, e posso ver como estou apenas tentando tornar tudo bonitinho e agradável, e tudo que tenho que fazer é pensar em Rinpoche e acabo tendo que ser honesta. Ele tinha o efeito de incessantemente — de uma forma dedicada — manter-me honesta. E isso nem sempre é agradável.

Tricycle: Como ele respondeu a sua escolha pelo celibato?

Pema Chodron: Ele me encorajou a cumprir os votos muito estritamente.

Tricycle: Ele nunca provocou ou alfinetou você com relação a apego a votos?

Pema Chodron: Bem pelo contrário. Ele sempre foi muito respeitador e costumava dizer, “Você sabe que as pessoas estão vigiando, as pessoas olham o jeito que você caminham, como você se move. Você deve manter-se uma representante fiel dessa tradição”. Em suas descrições sobre como é ser um monge, seus ensinamentos sempre foram muito diretos, muito puros. Ele me alfinetava a respeito de outras coisas. Lembro de uma vez dizer algo a ele sobre sentir que eu era uma pessoa legal. Eu usei a palavra “legal”, e lembro do olhar que cruzou sua face — como se tivesse acabado de comer algo realmente estragado. Ele fazia essa outra coisa que muitos outros alunos também me relataram, onde você ficava falando e falando no seu estilo mais sincero e ele apenas bocejava e olhava pela janela.

Tricycle: Você diria que a intenção por trás de seu comportamento pouco convencional, incluindo suas explorações sexuais e o fato de beber, era ajudar os outros?

Pema Chodron: Durante muitos anos senti como se tudo que ele fizesse fosse para ajudar os outros. Mas também diria que agora talvez minha compreensão seja ainda mais profunda, e parece mais adequado dizer que não sei. Não sei o que ele estava fazendo. Sei que ele mudou minha vida. Sei que o amo. Mas não sei quem ele era. Talvez ele não estivesse fazendo tudo que fazia para ajudar a todos, mas ele certamente me ajudou. Aprendi algo dele. Mas quem era afinal aquele camaleão?

Tricycle: Nos últimos anos as mulheres têm cada vez mais articulado-se com relação ao sexismo. Sabemos mais hoje sobre o abuso infantil e o quanto ele ocorre e sobre quantas pessoas chegam ao darma realmente machucadas. Se você soubesse dez anos atrás o que você sabe hoje, você teria sido tão otimista a respeito de Trungpa Rinpoche e de sua sexualidade? Tendo em vista as histórias de abuso sexual de algumas das mulheres com que você tem trabalhado, você as teria encorajado a serem alunas dele?

Pema Chodron: Eu teria dito, “Você sabe que ele adora as mulheres, é um homem muito passional, e tem muitos relacionamentos com mulheres. Se você quiser ser aluna dele, esses aspectos podem tomar parte desse relacionamento, e você deveria ler todos seus livros, ir a todas suas palestras, e realmente ver se você é capaz de se aproximar dele. Você deveria fazer isto sabendo que poderá ser convidada a dormir com ele, então não seja ingênua a respeito disso. Não pense que você tenha que fazer isto, ou que tenha que não fazer. Mas apenas você mesma poderá decidir quem você pensa que é esse sujeito.”

Tricycle: Houveram mulheres que recusaram seus convites sexuais e mantiveram um relacionamento próximo como alunas? Havia esta opção?

Pema Chodron: Sim. Definitivamente. Geralmente eram as outras alunas que faziam as pessoas sentirem-se “quadradas” e conservadoras por não dormirem com Rinpoche, mas o ensinamento do próprio Rinpoche era de acabar com a festa. Apesar disto, geralmente estamos contra a natureza humana. O professor diz algo, e então todo mundo faz como ele diz. Houve uma época que ele fumava cigarros e todos começaram a fumar. Então ele parou e todos pararam. Era ridículo. Mas somos apenas pessoas com padrões humanos habituais, e você pode ter certeza do fato de que os estudantes vão querer tornar tudo uma grande festa, era o que nós tentavamos fazer. A única coisa previsível a respeito de Rinpoche é que ele sempre puxava o tapete, não interessa o que fosse. Era assim que ele era.

Tricycle: E a sua própria devoção nunca oscilou?

Pema Chodron: Demorei muito para sentir devoção real por Trungpa Rinpoche. Por dez ou quinze anos senti que tinha pouca devoção, mas então, quatro anos após sua morte, isto mudou. Digo isto aos estudantes mais novos que tem o mesmo problema. Lhes digo, “apenas fique por aí e seja honesto com o que você pensa que está aprendendo”. A ausência do chão é o nome do jogo, não se trata de apego. Se a devoção começa instantaneamente, pode ser uma sensação de que agora você tem um novo papai ou uma nova mamãe, e há este sentimento agradável a respeito disto. Porém, ao nos tornarmos budistas, não ganhamos outra família. Tornar-se um budista é não ter mais casa. Mas no meu caso finalmente a devoção surgiu, e foi extremamente forte e eu sou grata.

Tricycle: Agradecida a Trungpa Rinpoche?

Pema Chodron: Você sente gratidão que alguém tenha apontado a natureza de sua mente e lhe dado instruções que realmente o encorajaram a ser corajoso e compassivo e a abandonar os velhos modos de pensar e as velhas seguranças. Mas eu diria que aquela devoção a Rinpoche foi ainda além disto, desde sua morte. Estou realmente começando a brincar com a ideia de que ele talvez não fosse perfeito, talvez nem tudo o que ele fez tenha sido para beneficiar as pessoas. Em outras palavras, agora meu foco de não ter que tornar tudo certo ou errado é mais forte. Posso realmente manter minha devoção pura e completa em meu coração e ainda assim dizer, “talvez ele fosse apenas um louco”. Isto não muda minha devoção porque ele me ensinou algo sobre não dizer “sim” ou “não”, mas sim sobre relaxar sem chão algum. E isso é mais profundo do que dizer, “Oh, não, ele nunca fez nada para machucar ninguém”, porque o que eu sei é apenas minha projeção. Fazer dele alguém que errou também seria projeção.

Tricycle: Você algumas vezes refere-se a si mesma como uma professora-aluna. Porque?

Pema Chodron: É um tipo de mentalidade voltada para o conforto dizer, “Oh, não sou uma professora, sou antes disso uma aluna no caminho.” É muito ameaçador realmente pensar em ser uma professora. Mas então, claro, há pessoas que me consideram uma, e eu tenho que tomar esta responsabilidade. Mas se você fica orgulhoso porque é professor e diz, “Não se meta comigo, não diga que não sou um professor ou meus sentimento serão feridos”, isso certamente é um problema. Este outro aspecto é não querer encarar os fatos. Há um tipo de falsa humildade que pode surgir. Então de alguma forma você está novamente preso na ausência do chão, a confiança no darma, que em si não tem nada a ver com sua pessoa, mas que pode sair de sua boca e beneficiar os seres sencientes. A confiança aumenta na medida em que você sai da linha de frente, mas ainda assim provendo a verdade. E ao mesmo tempo trata-se desta experiência humilde de estar exatamente onde você está e saber quais são algumas de suas limitações. Esta tensão entre confiança e humildade é o que você consegue se você se relaciona honestamente com a realidade. Você não obtém uma segurança de cem por cento de confiança, que se tornaria orgulho, e você não tem o sentimento oposto de que você é apenas um nada. Você é grande e pequeno ao mesmo tempo.

Tricycle: Fala-se muito nos círculos budistas de locais “seguros” para praticar, de professores “seguros” e mesmo ambientes “seguros” nos quais manter conferências para professores budistas. Há uma ideia de segurança que concede garantias e previsibilidade, que garante que as coisas ocorram de acordo com o planejado. Isto parece muito diferente do seu próprio treinamento. Como você lida com os desejos dos alunos estarem num “local seguro” enquanto na Abadia?

Pema Chodron: Nós apenas elaboramos um programa para as pessoas em crise. Frequentemente os alunos dizem “bem, este local parece seguro”. Então o ambiente é seguro, mas os ensinamentos são ameaçadores. Todos estão sendo encorajados a relaxar e abrir-se ao que quer que surja, e isso implica que algumas memórias possam surgir para algumas pessoas e as levarem a chorar. Assim outras pessoas tem que trabalhar com a irritação, talvez até com a raiva, pelo fato de haverem pessoas chorando. De certa forma, é uma situação muito pouco segura. Numa situação em que ninguém sacudisse o barco, a coisa toda criaria muito pouca compreensão e alimentaria o ignorar da dor, a principal causa do samsara.

Tricycle: Que finalidade tem o amor e a bondade nesse tipo de situação?

Pema Chodron: Trungpa Rinpoche costumava dizer que o primeiro passo no treinamento do guerreiro, ou seja, daquele que cultiva sua coragem, é colocá-la num berço de amor e bondade. Isto é realmente assim. Nos ensinamentos budistas falamos sobre o cultivo de maitri, amor e bondade, com relação a si mesmo. Isto parece necessário de forma a termos enfim boa vontade de lidar com todas nossas partes confusas e sadias. A segurança real é a boa vontade de não fugir de si mesmo. Em termos de criar um ambiente seguro, você quer criar um espaço no qual as pessoas possam olhar a si mesmas e onde isso vá ser aprovado pelos outros e dessa forma tornar-se seguro. Ninguém vai rir delas por chorarem ou se desestruturarem. Agora, esta é uma primeira fase, já que o que estamos focando é como viver neste mundo onde as pessoas realmente riem e ridicularizam você. Então não queremos apenas criar um bando de praticantes que apenas possam existir numa situação “segura” onde não há insulto, onde não há grosseria. O berço do amor e da bondade não é um nocaute. É mais um desenvolver da amizade consigo mesmo de forma ampla. O sentido real de segurança que as pessoas precisam é saber que as coisas não serão escondidas. O problema não é o sexo ou mesmo os professores. É a hipocrisia, porque é muito difícil suportar mentiras. É importante criar uma situação onde as pessoas não estejam mentindo.

Tricycle: Você acha que certas práticas são mais perturbadoras do que outras?

Pema Chodron: Certas práticas revelam muito material emocional — por exemplo, o tonglen. Tonglen é uma prática onde você trabalha com sua respiração. Você inspira o sofrimento e conecta-se com ele completamente – tanto o seu quanto o de outras pessoas. É uma abertura a sentir o que machuca, a não se esconder, a não rejeitar. Você está aberto a tomar sobre si o sofrimento e desenvolver compaixão através dele ou mesmo relaxar com ele. E quando você expira, você devolve alegria, inspiração, deleite. Assim você acostuma a compartilhar e dar aquilo a que normalmente você está apegado. Torna-se uma prática muito avançada se o faz realmente trabalhar com as outras pessoas, porque aponta cada momento em que você se fecha, se resguarda, cada pequeno instante em que você fecha seu coração. Se você é um praticante do darma, você quer estar ciente disto e fazer amizade com este aspecto. Acho que, se você realmente quer se iluminar, de alguma forma vai ter que se expor. Se você já é um aluno e quer despertar completamente, então você vai receber os testes e desafios de que precisa, e todos virão de outras pessoas. Assim, a segurança torna-se apenas o querer evitar tudo isso.

Tricycle: Recentemente um grupo de professores ocidentais reuniram-se na Índia com Sua Santidade o Dalai Lama para debater as diretrizes do budismo no ocidente. [Pema Chodron foi convidada a esta conferência, mas não pode comparecer.] Ao fim da conferência os participantes compuseram — e imediatamente divulgaram-–uma "Carta Aberta" que descreve as diretrizes para a conduta ética dos professores, e que encorajava alunos a confrontar os professores em circunstâncias de comportamento inadequado e "tornar público qualquer comportamento não ético do qual haja evidência irrefutável." Você concorda que isso seja benéfico?

Pema Chodron: A preocupação aqui é obviamente quanto a evitar que os alunos se machuquem. Uma vez que você se torne um professor — da mesma forma como quando você se torna um monge — você não pode cegamente continuar fazendo o que você sempre fez. Você tem que ser mais atento e perceber como seu comportamento afeta os outros. Esta é uma faceta da questão, e fico feliz ao ver este assunto ser discutido. É importante que os alunos percebam que os professores do darma tem temperamentos, agressão e paixão. Em termos de budismo não se trata de ver um mundo todo limpinho ou pensar que o mundo possa vir a ser totalmente limpo. A outra faceta que percebo é que isto traz a tona o moralismo das pessoas, sua mente convencional. Me preocupa que diretrizes como estas possam tornar-se algo como uma lei ou emenda governamental de um país. Até agora, todo meu treinamento no budismo tem me mostrado que não há forma de ajeitar todos esses aspectos mal-acabados. Essa noção vem dos meus professores e dos ensinamentos. Você nunca vai eliminar a ausência do chão. Você nunca vai ter uma paisagem bonitinha sem nenhuma complicação, não interessa quantas regras você faça. Assim, é importante ter todas as diferentes posições expressas, da esquerda à direita, do mais liberal ao mais conservador.

Tricycle: Você não pensa que seria útil dar nomes aos bois, tornar públicos os incidentes onde os professores budistas tem sido repetidamente acusados pelos alunos?

Pema Chodron: Isso me parece verdadeiro McCarthyismo. Eu não gostaria de ver uma lista dos professores ruins e não gostaria de ver uma lista dos bons – aqui estão todos os santos, ali todos os pecadores. Para tantos de nós esta é a herança, tornar as coisas cem por cento certas ou cem por cento erradas. Tem sido grande alívio para mim vagarosamente relaxar na coragem de viver na ambiguidade. Eu sei que essas diretrizes estão sendo criadas por boa motivação, mas estão simultaneamente vindo da má motivação, da indignação moralista de que “eles” estejam fazendo algo errado. Gosto da frase "que aquele que não tenha nenhum pecado atire a primeira pedra." Você não pode fazer certo, você não pode fazer errado.

Tricycle: Essa visão evoluiu a partir de sua própria prática budista?

Pema Chodron: Muito dela. Mas também nunca conheci ninguém que estivesse completamente certo ou completamente errado. Muitas pessoas me veem como alguém muito confiável, e isso me leva a muito discernimento, porque sei quem sou. Talvez numa escala de um a dez eu até seja bastante respeitável, mas ainda assim, apenas isso já confirmaria que não há um “correto” absoluto. O que isso significa? Meus herois são Gurdjieff e Chogyam Trungpa Rinpoche e Machig Labrum, a louca iogue butanesa. Gosto dos selvagens. Provavelmente isso ocorra porque eu investi muito em ser uma boa menina, e sempre obtive grande recompensa disso. Mas meus amigos e professores tem sempre sido os selvagens, e eu os amo. Os bonzinhos me chateiam. Não exatamente chateiam, mas eles não chamam minha atenção. Sou o tipo de pessoa que apenas aprende quando está sendo jogada da prancha e os tubarões estão vindo em minha direção.

Tricycle: A carta aberta também diz que "não interessa qual o nível de conquista espiritual que um professor tenha, ou diga ter, nenhuma pessoa pode estar acima das normas da conduta ética."

Pema Chodron: Como uma mulher eu não gosto quando os homens usam suas posições para passar cantadas nas mulheres. Mas sou levada a dizer algo do tipo, “quando um professor é muito realizado é de fato diferente de quando não é.” Mas quem vai decidir? Ninguém pode decidir exceto o aluno que está relacionando-se com aquele professor. Este é um relacionamento incondicional. Fazemos um voto para estarmos ali um para o outro não interessa o que ocorra. E isso ensina algo sobre incondicionalmente estar presente em nossas próprias vidas. Quando as coisas nos revoltam e assustam, elas apenas estão apontando partes em nós mesmos que rejeitamos.

Tricycle: Você não é capaz de apoiar o conceito de normas éticas como sugerido na carta?

Pema Chodron: Meu professor pessoal não mantinha normas éticas e minha devoção por ele é inabalável. Então fico com um grande koan.

Tricycle: Você pensa que o budismo em nossa sociedade foca-se demasiado na moralidade?

Pema Chodron: Não sei. Mas há previsões do tempo do Buda que dizem que quando as regras e regulamentos forem mais enfatizados do que liberação ou realização, que este seria um sinal do declínio do budismo. Historicamente sempre houve tensão entre as coisas ficarem muito soltas ou muito apertadas. Do meu ponto de vista, não interessa o que aconteça, desde que tudo continue aberto e não estejamos nos alimentando da fonte fundamental de sofrimento que é a ignorância. Enquanto houver muito diálogo e todos os diferentes sentimentos e visões forem apresentados e estiverem em debate, então não se torna uma espécie de McCarthyismo onde você tem que manter um ponto de vista particular, caso contrário se cuide... Seria muito infeliz imaginar que possamos suavizar todas as asperezas. Caso acabe sendo desconfortável ou perigoso para as pessoas manterem pontos de vista opostos, isto seria a morte do espírito do budismo.

Tricycle: A carta também diz que "é necessário que todos os professores vivam de acordo com pelo menos os cinco preceitos leigos."

Pema Chodron: Eles devem estar referindo-se aos cinco preceitos monásticos: não matar, roubar, mentir ou ter relações sexuais, o que eu pressuponho neste caso seja interpretado não como celibato mas como fidelidade no relacionamento em que você está, e não beber álcool. Ser assim estrito sobre álcool e sexualidade parece um bocado rígido enquanto uma diretriz. Tenho debatido com amigos que sentem que manter estes cinco preceitos é o que define um budista. Há muitas visões diferentes, tais como se você não mantiver estes preceitos, você não poderá se dizer budista, ou que se você comer carne não poderá se dizer um budista. Eu mesma não mantenho estas visões mas aprecio um debate vigoroso com as pessoas que as mantém. Não me interessa tanto quais sejam as visões, desde que as pessoas as estejam debatendo abertamente.

Tricycle: Você mesma tem mantido estes preceitos?

Pema Chodron: Completamente. Não é como se eu não gostasse deles.

Tricycle: E por cerca de vinte anos você nunca abandonou seus votos de celibato?

Pema Chodron: Não.

Tricycle: E estes preceitos a ajudaram a cultivar sua própria sensação da ausência do chão?

Pema Chodron: Sim. Estes preceitos não representam qualquer saída, "a sabedoria Sem Saída" ["The Wisdom of no Escape" título de um dos livros de Pema]. Eles mostram que não há como você se livrar de você mesmo – não há como seguir os subterfúgios que você geralmente usa para construir a estrutura do seu ego ou que o distraem da ausência do chão. Os preceitos dão um espelho claro para percebermos como tentamos conseguir um chão sob nossos pés e como nos esforçamos para não sentir sua ausência. Sigo estes preceitos e vivo com pessoas que seguem estes preceitos, e os vejo beneficiar amplamente as pessoas. Mas o debate que algumas vezes tenho com outros amigos monásticos é o de que todos os budistas devam necessariamente seguir estritamente estes preceitos ou não.

Tricycle: Isso seria porque há pessoas que podem melhor expressar a compaixão sem eles, ou porque talvez seja possível que quebrá-los possa, em si, beneficiar alguém?

Pema Chodron: Não podemos julgar isto. Mas os preceitos não funcionam se eles forem impostos de fora como uma camisa de força. Você tem que querer estabelecer os limites de outra forma para que eles produzam benefício. Se você força alguém a manter os preceitos quando eles não o desejam ou quando ainda não estão prontos para fazê-lo, então é como se os colocássemos numa prisão.

Tricycle: Tem havido muita confusão sobre quais seriam as qualidades que definiriam um professor genuíno. A “carta” parece sugerir que manter os preceitos define um professor bastante confiável para alguém que esteja iniciando no darma.

Pema Chodron: Muitas pessoas pensam que porque mantenho estes preceitos, eu esteja algo acima da política e do escândalo. Assim posso entender que os alunos desejem estas figuras paternas e maternas de “barra limpa”. Mas, para mim, estas figuras nunca foram úteis. Os meus modelos foram sempre as pessoas que saltaram fora da mente convencional, a abriram completamente e a libertaram, mesmo que por um momento, de um padrão convencional, habitual, de ver as coisas. Parece que as pessoas buscam coisa diferentes. Mas procurar por “segurança” numa figura desse tipo, alguém que nunca o alfineta e que sempre está de acordo com você, é algo muito duvidoso. Se você está realmente preparando-se para a ausência do chão, preparando-se para a realidade da existência humana, você está vivendo no fio da navalha, e você precisa se acostumar com o fato de que as coisas mudam. As coisas não são certas e elas não duram e você não sabe o que vai acontecer em seguida. Os meus professores sempre me jogaram do precipício, e foi isto que despertou minha compaixão pelas coisas que os seres humanos normalmente condenam. Temo que devido ao local de onde viemos, o ocidente, e com nossa herança judaico-cristã, acabemos focados demais na doutrina, ou na criação de regras, ou na ênfase demasiada à ética – assim tudo se torna apenas um julgamento impiedoso. E então não há verdadeira compaixão.

Tricycle: O que gera a verdadeira compaixão?

Pema Chodron: A verdadeira compaixão vem do fato de que você reconhece suas próprias limitações: você deseja ser bondoso e descobre que não é. Então, em vez de se autoflagelar, você percebe que essa é uma dificuldade que todos os seres humanos encontram, e assim você começa a ter algum tipo de compaixão genuína pela condição humana, você percebe o quão desafiador é ser um ser humano. Você tenta ser pacífico e nunca alterar o tom de sua voz e descobre que na verdade tem muita raiva. O darma diz respeito a tornar-se amigo da ausência do chão e o desconforto que surge com todos estes sentimentos. Não diz respeito a fazer regras de forma que essas emoções nunca surjam. A compaixão não surge de tentarmos limpar a coisa toda.

Tricycle: Uma visão muito mantida é a de que quando os europeus e americanos começaram a praticar o darma, nos anos sessenta, a ênfase era na iluminação. Da mesma forma, a ética da contracultura ensejava o abandono de todas as convenções. Algumas pessoas pressentem que a combinação desses dois aspectos resultou num desentendimento proposital da importância do estudo de preceitos, e que agora talvez precisássemos de algum tipo de ação corretiva para restaurar o equilíbrio.

Pema Chodron: Para mim aquilo que podemos chamar de “mente grandiosa”, ou “mente de sabedoria” ou “iluminação” ou “visão pura” é a coisa principal. Não necessessariamente precisa ter algo a ver com religião ou filosofia. As pessoas têm padrões habituais humanos e acabam presas em visões de realidade extremamente mesquinhas. Não tão pequenas quanto as de um rato ou pulga, mas realmente limitadas. E, de fato, há uma outra forma de percepção integral que poderia ser vivida por qualquer um. Na minha própria sanga o que não foi muito enfatizado no passado – ou para o que talvez só agora estejamos preparados – foi a compaixão. Agora enfatizamos a importância de nossa interligação com cada outro ser. Isto por si só substituiria ou manteria todas estas regras. As pessoas precisam ver que se você prejudica outra pessoa, você se prejudica, e se você se prejudica, você prejudica outra pessoa. A partir disso começamos a ver que não estamos sós. Estamos juntos. Para mim, é disso que a verdadeira moralidade surge. Esta moralidade é baseada numa visão muito mais profunda. Aquela outra moralidade diz respeito a ME proteger. Esta não é a intenção verdadeira dos preceitos, mas eles podem facilmente ser mal utilizados, tornando-se apenas uma redoma de segurança. Codificar as coisas em larga escala é muito moralista, muito baseado em certo e errado, muito baseado no medo e em querer fincar seus pés no chão.

Tricycle: É possível que o tipo de manutenção estrita das regras e o tipo de controle que alguns professores estão propondo possam funcionar bem para alguns alunos, mas não para outros?

Pema Chodron: Bem, certamente. Este é sempre o melhor enfoque, ter muitas diferentes formas que sirvam para diferentes alunos. Mas se perdemos o foco do que realmente estamos fazendo, então temos um problema. Se perdemos de vista o fato de que tudo deveria dizer respeito a relaxar na ausência fundamental do chão, a natureza básica não substancial, então isto poderia ser um problema. Mas podemos dizer que realmente diferentes alunos necessitam de coisas diferentes de forma a penetrar nesse âmbito. Se você já é um aluno e deseja acordar completamente, você vai receber os testes e desafios de que necessita, e todos eles surgirão no lidar com as outras pessoas. E a segurança tornar-se-á uma tentativa de evitar isto tudo. Eu não iria atrás dos obstáculos, mas a grande piada é que os obstáculos sempre vem bater na nossa porta. Se você começa a ter um relacionamento honesto com a realidade, você sabe que está de fato intimando os obstáculos, porque ela nem sempre vai nos apoiar, e realmente não vai ser conivente com coisa alguma, e não vai ser conveniente. E é com este processo que você aprende como a própria vida puxa o tapete.

Tricycle: A vida pode fazê-lo por si só, sem um professor?

Pema Chodron: Sou da escola de pensamento que diz que é preciso um professor. O professor apresenta o mundo a você. Trungpa Rinpoche me mostrou que a vida nos acorda. Isso é complicado porque o ego é muito escorregadio. E meu ego ainda é muito escorregadio, mas Rinpoche gravou este recado em mim, de forma que a partir daí as pessoas e situações tem me mostrado onde estou presa e reprimida, e quais são meus pontos fracos. Sou constantemente assombrada pelo fato de que nem sempre lembro disso.

Tricycle: Como você sabe, muitos professores do darma estão usando vários métodos terapêuticos em seus ensinamentos. A psicoterapia pode nos ajudar a ver os pontos fracos?

Pema Chodron: A psicoterapia tem muito a oferecer ao budismo em termos de sua linguagem e porque realmente lida com o sofrimento das pessoas. Mas, infelizmente, as pessoas podem fazer mal uso do budismo apenas para tentar alcançar alguma espécie de satisfação. Os ensinamentos sobre a natureza da vacuidade podem ser mal utilizados, nos “dopando” e nos levando a evitar as questões verdadeiras. Mas na verdade o budismo diz respeito a mergulhar nas questões verdadeiras, e destemidamente fazer amizade com as áreas difíceis e bloqueadas, os padrões profundamente arraigados que nos mantém aprisionados na ignorância e na confusão. Sinto que o budismo pode trabalhar em conjunto com a psicoterapia. O budismo pode definitivamente trabalhar com as questões reais das pessoas, e pode ser uma ferramenta extremamente poderosa para talvez trabalhar em equilíbrio com a psicoterapia. Mas se estivermos transformando o budismo em psicoterapia, então nos arriscamos a perder o sentido da vastidão da mente e atemporalidade, o sentido de mágica, de ter sua mente convencional totalmente abandonada e ver as coisas de uma maneira nova, refrescante, de tornar a mente aberta aos discernimentos que cortam completamente as raízes da confusão. A psicoterapia não faz isto. Assim o desafio real de minha geração de professores é não diluir o budismo. Precisamos nos perguntar, “Quantos desta geração de professores realmente reconheceram esta Mente Grandiosa?” Acho que é uma questão pelo qual todo professor devia ser constantemente assombrado.

Tricycle: Porque os professores do darma deveriam ser assombrados constantemente pela Mente Grandiosa?

Pema Chodron: Por causa do sofrimento. Porque estamos numa prisão de nossa própria concepção, uma prisão com uma visão muito estreita. Você sabe quando vai a certos lugares no mundo, locais que algumas tradições chamam de locais de poder, ou entra em certos prédios, ou conhece certas pessoas, e é atirado para fora de sua própria mente usual e percebe que tem estado aprisionado? E então você reconhece que não quer jamais voltar para aquela prisão. Em outras palavras, você percebe que quer enfrentar a limitação. Isto surge em você, em certas situações, e então você está perdido para sempre. [risadas] Você não quer voltar para a perspectiva estreita da mente comum. Mas você também percebe que a perspectiva estreita lhe dá muita segurança. Você sabe que é uma segurança falsa, uma mentira, mas começar a despertar é muito como abandonar um vício. Você certamente vai ter crises de abstinência ao se livrar do vício aos padrões usuais medíocres da percepção. Você poderia dizer que a iluminação é estar livre dos vícios. Você está apenas completamente desperto, completamente ali, sem ter que se esconder.

Tricycle: O contato com essa Mente Grandiosa é essencial aos alunos que estão se conectando com o darma nos dias de hoje?

Pema Chodron: Este é o maior desafio dos professores atualmente – que não fiquemos atolados na mente mundana, na resolução de problemas, em construir, em tentar colocar chão sobre os pés, e que estejamos dispostos a morrer muitas e muitas vezes. De outra forma, nunca seremos capazes de demonstrar a mente da vacuidade para nossos alunos.

Tricycle: Você acredita que as mulheres que estão expressando raiva pelos professores do sexo masculino estão tão aprisionadas a próprias questões, tão focadas em resolução de problemas, que não são capazes de experimentar esta Mente Grandiosa?

Pema Chodron: Mantenho como minha visão que o que vejo nos outros é um reflexo de mim mesma. Apenas posso saber a meu respeito. Quando ouço as pessoas julgando muito duramente, sinto que estou ouvindo tanto sobre suas próprias neuroses quanto sobre a questão em pauta. Estou ouvindo sobre as áreas dessas pessoas com que não são capazes de se relacionar. Não interessa quanta atrocidade exista, se ela está apertando seus botões de forma que cause toda essa confusão em você, então você tem que focar novamente sua própria indignação de forma a ser capaz de se comunicar com a feiura da situação. Nada nesse mundo jamais muda através do ódio por um inimigo. Nada jamais muda através de ódio e agressão. Assim, se está apertando seus botões, seja um Hitler, um pai que abusa dos filhos ou uma guerra imoral – Hitler estava errado, o pai abusivo está errado – você tem que continuar trabalhando com sua própria negatividade, com estes sentimentos que continuam surgindo dentro de você. Também já tivemos a experiência de ver o mal ser feito sem estarmos confusos e indignados, e apenas dissemos “Pare!”. Quando foi assim, nenhum botão foi pressionado. Apenas está errado, mas então pode surgir uma indignação moralista. Quando sinto esse tipo de indignação moralista, sei que há algo errado comigo. De forma a ser capaz de evitar a brutalidade deste planeta, você tem que trabalhar com suas próprias agressões, com o que foi engatilhado em você, de forma que você possa se comunicar de coração com o estuprador, o assaltante, o assassino.

Tricycle: Parece que estamos numa onda de desconfiança com relação aos professores. Mesmo se estudamos por cinco anos com um professor, geralmente o fazemos sem um compromisso real com ele, sem um sentido de voto. Se depois de seis meses ou seis anos a pessoa que você chama de professor lhe deixa numa situação desconfortável, você a abandona. Como podemos ter uma prática de matar o ego se é o ego que está sempre tomando as decisões?

Pema Chodron: Não podemos tê-la. É por isso que é importante conhecer muito bem o professor muito antes de entrarmos nessa área, porque em algum ponto o compromisso tem que ser incondicional. É o mesmo com “até que a morte os separe.” Os votos podem ensinar tudo: podem nos ensinar a permanecer com nossa vida. Você precisa de muito apoio para ir além de quero, não quero e gosto, não gosto.

Tricycle:O que você diz para as mulheres que vem até você com sentimentos de raiva, de terem sido traídas, e reclamações sobre professores do sexo masculino?

Pema Chodron: Quando as mulheres vem a mim com essas reclamações eu nunca digo, “Oh, não há nenhum dano, é apenas uma viagem sua”. Eu pergunto, “Você realmente quer cura para estas coisas? Ou você apenas quer alguém para acusar? Você quer se vingar de alguém que machucou você, ou você quer curar estas coisas?” Esta é a pergunta. A vingança nunca cura nada. E culpar os outros jamais cura coisa alguma. Mas o que acontece quando alguém fala a você de seu coração? Todos respondem com algum tipo de bondade, algum tipo de curiosidade, reagem certamente melhor do que fariam com o ódio. E, certamente, nesta vida não seremos capazes de resolver todos os problemas. Mas se você mesma está trabalhando com não agressão e honestidade, isto pode mudar o equilíbrio da agressão no mundo. O mínimo que um praticante do darma deveria fazer é não se envolver com alguém como se fosse um inimigo externo. Isto apenas aumenta a agressão. Não é darma transformar em inimigo o professor que você sente tenha lhe prejudicado. Você tem que descobrir uma forma de relacionar-se com os sentimentos que esse professor lhe traz e comunicar-se do coração com ele. Se a outra pessoa não está curada, então você não está curada, e se você não está, ela não está. O padrão habitual humano é tentar livrar-se do próprio sofrimento jogando a culpa nos outros, ou pondo a culpa em si mesmo. Em ambos os casos você faz alguém estar em erro. O darma diz respeito ao salto sem chão que não é nem certo nem errado, que é não ter segurança sobre certo ou errado – e esse é o maior desafio, pensar mais amplamente e não apenas em termos de solucionar problemas. O darma não diz respeito a curar. Diz respeito a restaurar a saúde. Essa expressão pode ser um tanto “New Age”. A palavra que Trungpa Rinpoche usava era “trabalhável”. Todas as situações são trabalháveis. Esta é a natureza da realidade — ela é trabalhável.


Dzongsar Jamyang Khyentse Rinpoche em sua página no Facebook em 13 de julho de 2018, comentou o seguinte sobre essa entrevista:

O budismo não é novato no que diz respeito a obstáculos. Obstáculos externos, internos e secretos afligem os budistas desde eras imemoriáveis. E dentre as muitas tradições, caminhos e métodos budistas, o mahayana, e especialmente o vajrayana, se depararam com desafios particularmente difíceis.

Porém, os bodisatvas do passado não se sentiram desencorajados com esses obstáculos por sequer um instante. Pelo contrário, os obstáculos foram o próprio combustível para o entusiasmo, para a determinação e também para as aspirações de muitos grandes mestres, praticantes, alunos e patronos do budismo ao longo do tempo.

Mesmo nos dias de hoje nós mesmos temos testemunhado grandes vidyadharas e mestres tântricos que abdicaram literalmente de tudo para manter acesa a chama do darma.

A visão de Kyabje Dilgo Khyentse Rinpoche ainda escrevendo, ensinando, editando e dando instruções para alunos à luz de velas, muito depois da meia-noite, com já mais de oitenta anos de idade, permanece gravada em minha memória. Ou a visão de Kyabje Dudjom Rinpoche, que mesmo com asma muito forte, ainda conferia iniciações e ensinamentos, e sempre estava atrás da versão correta dos textos, compilando e corrigindo manuscritos. Ou a visão de Kyabje Chatral Rinpoche que nunca se entregava à expectativas sociais ou ao politicamente correto, e que persistentemente encorajava e guiava alunos ao longo de muitos anos de retiro em montanhas e florestas. Todas estas imagens e muitas outras são tão claras em minha mente hoje quanto no momento que as testemunhei.

E como podemos esquecer Chogyam Trungpa Rinpoche se aventurando a lugares totalmente desconhecidos a ele, e se rebaixando ao mais ordinário nível de ser humano para sozinho criar nuanças, termos, língua, atmosfera e disciplina e estágios de prática para alunos novos ao darma? Para tomar apenas um exemplo entre milhares, cunhar o termo “bondade básica” dos seres humanos tocou de forma brilhante os corações e mentes das pessoas nos dias de hoje, sem em nada desviar dos ensinamentos budistas mais tradicionais.

Nada que Trungpa Rinpoche fez foi feito com finalidade comercial ou de entretenimento — nada foi feito se entregando ao clamor popular, diluindo e tornando a verdade rarefeita — mas sim, tudo que ele fez foi sempre feito com o fim de guiar os alunos a um caminho autêntico de liberação.

Agora é a hora de lembrar estes grandes mestres e sua dedicação incansável ao darma, mesmo quando eles perderam tudo e ficaram completamente sem teto! E agora é a hora de imitar sua coragem e fortaleza, e seguir em seus passos.

Como podemos sequer nos dizer praticantes do darma, se não conseguimos lidar com obstáculos temporários? Qual é o ponto de escolher o budismo com seus métodos tão ousados para desmontar todas as fabricações dualistas se tudo que estamos buscando é uma vida segura, um caminho garantido, e confortos materiais e mundanos? As pessoas dizem: "Ser um homem à altura do momento" [ou "Quando a coisa aperta é que se vê quem realmente somos"]. Bem, para cada um de nós, agora é a hora, e cada um de nós é esse homem ou mulher.

Há muitas formas de encontrar encorajamento nesse momento. Quando recentemente li a entrevista de Pema Chodron na Tricycle*, não consegui evitar de sentir calafrios e lacrimejar com o fato de que de um herdeiro de Tilopa, Marpa e Milarpa — Chogyam Trungpa Rinpoche — havia nascido uma neta chamada Pema Chodron. Caso a vida de Chogyam Trungpa Rinpoche inteira no ocidente tivesse sertvido apenas para dar a luz a uma Pema Chodron, isso por si só seria suficiente para ser motivo de reconhecimento e celebração. Pessoalmente, eu nem precisaria olhar para todos os livros e ensinamentos brilhantes de Trungpa Rinpoche: — o mero fato dele a ter deixado como legado seria bom o suficiente para mim. Mesmo na tradição tibetana é tão raro encontrar alguém com a coragem, com o discernimento, humildade e coragem de uma Pema Chodron.

Muitos caminhos são como pacotes turísticos. O vajrayana é uma aventura, e aqueles que se inscreveram nele, têm todo motivo para estar alegres, excitados e sedentos dessa incrivelmente rara oportunidade de bombar adrenalina pelas veias. Ao mesmo tempo, precisamos fazer de tudo para proteger essa herança tão preciosa.


Entrevista retirada de um exemplar da revista Tricycle de 1993 e traduzida para o português por Padma Dorje em 01/02/2002. Texto de DJKR no Facebook traduzido por Padma Dorje em 2018.

Oração de aspiração, e exemplo da prática, por Dzongsar Jamyang Khyentse Rinpochetzal.org

Aspiração

Oração de aspiração, e exemplo da prática, por Dzongsar Jamyang Khyentse Rinpoche
Este é um comentário sobre uma colocação de Dzongsar Khyentse Rinpoche no Facebook em 2019 onde ele trata das distorções nas adaptações do darma à modernidade onde o conceito de “superstição” é aplicado ao budismo sem o contexto cultural adequadamente traduzido. Ele chama essa prática de uma forma de genocídio cultural “pacífico”. Rinpoche critica a atitude subserviente à ciência de alguns budistas modernos.tzal.org

Superstição, imperialismo cultural e reprodutibilidade

Este é um comentário sobre uma colocação de Dzongsar Khyentse Rinpoche no Facebook em 2019 onde ele trata das distorções nas adaptações do darma à modernidade onde o conceito de “superstição” é aplicado ao budismo sem o contexto cultural adequadamente traduzido. Ele chama essa prática de uma forma de genocídio cultural “pacífico”. Rinpoche critica a atitude subserviente à ciência de alguns budistas modernos.
Sobre Dzongsar Khyentse Rinpoche, publicado na Revista Radar em 2003tzal.org

Iluminação? Depois do Futebol

Sobre Dzongsar Khyentse Rinpoche, publicado na Revista Radar em 2003



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